Clodoaldo Meneguello Cardoso *
Resumo:
A discussão sobre ciência e ética, se colocada em nível radical, necessita previamente passar pela concepção filosófica de ‘ser humano’, ‘ética’ e ‘ciência’. Na perspectiva existencialista, o homem é um ser capaz de autodeterminação, ou seja, ser sujeito do conhecimento e da ação. Em conseqüência, no campo ético, tudo aquilo que tira ou diminui essa dimensão de sujeito é considerado violência. Por sua vez, a ciência moderna ocidental contém em si um amplo projeto de dominação: da natureza, de si mesmo e do outro. Portanto, uma ciência ética só é possível a partir de uma nova postura diante da própria ciência e dos valores da sociedade construída sob seu signo.
Unitermos:
ciência, ética, mudança de paradigma.
Abstract:
The discussion on science and ethics, if placed in a radical level, needs previously to pass for “human being” philosophical conception, “ethics” and “science”. In the existentialist perspective, the man is a being capable of self-determination, which means, to be subject of knowledge and of action. In consequence, in the ethical field, everything that removes or decreases this subject dimension is considered violence. By its turn, the western modern science contains itself a wide dominance project: of the nature, of himself and of the other. Therefore, an ethical science is only possible starting from a new posture before the own science and the society values built under its sign.
Keywords:
science, ethics, change of paradigm.
A recente notícia de que a ovelhinha Dolly era o primeiro clone de um animal adulto provocou em nós um misto de fascinação e pavor. Fascinação, pois a clonagem de Dolly representa uma conquista importante nesses cem anos de pesquisas no campo da biologia molecular, em que o homem tem a sensação de estar brincando de Deus. Pavor, pois ao lado dessa aventura milenar do “conhece-te a ti mesmo”1 o homem vai adquirindo o ambíguo poder da técnica. Nesse sentido, a Dolly faz-nos também lembrar e temer o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley em que a felicidade não rimaria mais com a liberdade. A possibilidade de um clone humano reacendeu o debate sobre a bioética.
A relação ética e ciência é um dos desafios colocado a nós nessa segunda metade de século. A partir da hecatombe de Hiroshima, a ambigüidade do progresso científico-tecnólogico passou do plano teórico para o existencial, ou seja, começamos a perceber na vida cotidiana a deterioração galopante do ambiente físico e social ao lado do mundo estonteante e maravilhoso da tecnologia.
As conquistas tecnológicas nos campos da comunicação, transporte, alimentação, moradia, saúde e lazer convivem ao lado do desequilíbrio ecológico, da miséria, da fome, dos sem-emprego, sem-terra, sem-teto, enfim ao lado de toda sorte de violência que destrói dignidade humana dos excluídos. Por isso, Le Goff (1994: 366) - em sua reflexão sobre o conceito de progresso - conclui que “como não há progresso que não seja também moral, a principal tarefa dos nossos dias (...), na via de um progresso ridicularizado e duvidoso, mas pelo qual se deve mais do que nunca combater, é o combate pelo progresso dos direitos humanos.” Contudo, se reflexões e debates sobre o tema ficarem circunscritos a uma área do conhecimento como bioética, fisicoética, quimicoética corremos o risco de acreditarmos que a superação do impasse se dará por um “código de ética” de pesquisa científica e de manipulação técnica nos moldes do códigos de ética profissionais.
Não estaríamos, assim procedendo, em busca de um receituário que nos determinasse o que pode ou não fazer, e que nos livrasse da responsabilidade ética pessoal inalienável? Dessa forma, perde-se a radicalidade da questão e acaba-se por limitar os problemas éticos no campo das questões mais imediatas. É o que se pode perceber na resposta do biólogo Daniel Drell (1997: 16-19), responsável pelo Projeto Genoma2, quando indagado sobre questões éticas: “Uma das maiores preocupações éticas em relação ao Projeto Genoma é a divulgação dos dados genéticos individuais para seguradoras de saúde e empregadores. As pessoas se esquecem de que, atualmente, os testes médicos são confidenciais. O mesmo acontecerá com os mapas de genes. O problema será a interpretação errônea de testes de DNA”.
Ora, não existe um profissional ético, sem antes um homem ético. Portanto, a discussão sobre a bioética deve ser vista como uma situação-problema que provoca e estimula uma reflexão abrangente sobre a própria na natureza da relação ética e ciência, como é o objetivo desse seminário. Assim também pensava Van Rensselder, criador do termo bioética, em 1971. A bioética é um ponto de partida e não um ponto de chegada. Nosso ponto de chegada é a utopia que temos em comum: a humanidade com vida digna e feliz. Nesse sentido, também a filosofia tem algo a dizer.
A relação ética e ciência é um dos desafios colocado a nós nessa segunda metade de século. A partir da hecatombe de Hiroshima, a ambigüidade do progresso científico-tecnólogico passou do plano teórico para o existencial, ou seja, começamos a perceber na vida cotidiana a deterioração galopante do ambiente físico e social ao lado do mundo estonteante e maravilhoso da tecnologia.
As conquistas tecnológicas nos campos da comunicação, transporte, alimentação, moradia, saúde e lazer convivem ao lado do desequilíbrio ecológico, da miséria, da fome, dos sem-emprego, sem-terra, sem-teto, enfim ao lado de toda sorte de violência que destrói dignidade humana dos excluídos. Por isso, Le Goff (1994: 366) - em sua reflexão sobre o conceito de progresso - conclui que “como não há progresso que não seja também moral, a principal tarefa dos nossos dias (...), na via de um progresso ridicularizado e duvidoso, mas pelo qual se deve mais do que nunca combater, é o combate pelo progresso dos direitos humanos.” Contudo, se reflexões e debates sobre o tema ficarem circunscritos a uma área do conhecimento como bioética, fisicoética, quimicoética corremos o risco de acreditarmos que a superação do impasse se dará por um “código de ética” de pesquisa científica e de manipulação técnica nos moldes do códigos de ética profissionais.
Não estaríamos, assim procedendo, em busca de um receituário que nos determinasse o que pode ou não fazer, e que nos livrasse da responsabilidade ética pessoal inalienável? Dessa forma, perde-se a radicalidade da questão e acaba-se por limitar os problemas éticos no campo das questões mais imediatas. É o que se pode perceber na resposta do biólogo Daniel Drell (1997: 16-19), responsável pelo Projeto Genoma2, quando indagado sobre questões éticas: “Uma das maiores preocupações éticas em relação ao Projeto Genoma é a divulgação dos dados genéticos individuais para seguradoras de saúde e empregadores. As pessoas se esquecem de que, atualmente, os testes médicos são confidenciais. O mesmo acontecerá com os mapas de genes. O problema será a interpretação errônea de testes de DNA”.
Ora, não existe um profissional ético, sem antes um homem ético. Portanto, a discussão sobre a bioética deve ser vista como uma situação-problema que provoca e estimula uma reflexão abrangente sobre a própria na natureza da relação ética e ciência, como é o objetivo desse seminário. Assim também pensava Van Rensselder, criador do termo bioética, em 1971. A bioética é um ponto de partida e não um ponto de chegada. Nosso ponto de chegada é a utopia que temos em comum: a humanidade com vida digna e feliz. Nesse sentido, também a filosofia tem algo a dizer.
A reflexão filosófica não tem a utilidade imediata no sentido do senso comum. Sua contribuição à ciência e à técnica está na explicitação de seus fundamentos epistemológicos e metodológicos e, certamente, éticos. Não se trata, pois, rigorosamente de uma ciência, mas de uma reflexão em busca de uma fundamentação teórica e crítica dos nossos conhecimentos e de nossas práticas (Cf. Chauí, 1994: 9-18). Portanto, a filosofia não oferece soluções imediatas, mas lança luz para elucidar a natureza do problema e, assim, possibilitar a construção de uma superação mais duradoura. É o que pretendemos fazer com essa reflexão.
Explicitar a natureza das questões éticas suscitadas pela biologia molecular, em particular pela possibilidade da clonagem em seres humanos, nos leva necessariamente a uma reflexão sobre o próprio conceito que temos de ser humano, de ética, de ciência e a articulação entre eles. Esse trajeto será feito na perspectiva do quadro teórico existencialista, que parece melhor dar conta dos conceitos que estão na base de nosso problema. Assim também pensou Jean Ladriére em Ética e Pensamento científico: abordagem filosófica da problemática da bioética, obra escolhida como âncora desse texto.
Primeiramente, que ser humano é esse de quem já temos ciência e domínio tecnológico para cloná-lo? Qual é sua natureza? Em que ele difere de todos os outros seres que conhecemos? Segundo o existencialismo, o ser humano está em processo de auto-construção. Em outras palavras, é um agente transformador da Natureza que, ao transformá-la, constrói sua própria essência. A natureza humana vem sendo construída pela própria humanidade no processo histórico atualizando sua potencialidade com agente transformador. Temos uma natureza em devir. “O ser humano é, ao mesmo tempo, um ser atualmente advindo e um ser ainda a vir, apenas prometido a si mesmo. (...) É aqui que se manifesta a estrutura fundamental da ação: de um lado, ela é aquilo em que se tornou, aquilo que ela é agora: do outro, também é uma antecipação de seu ser realizado” (Ladrière, s.d.: 35). Nessa ação de auto-determinar, necessariamente livre, encontra-se a dimensão ética da qual falaremos adiante.
E por ser ação de um agente autônomo, ela implica em si a responsabilidade daquilo que fazemos de nós mesmos. E veremos como “...a responsabilidade de cada ser humano para consigo mesmo constitui, ao mesmo tempo, um responsabilidade que ele tem com todos os homens” (35).
Apesar de toda sorte de condicionamento a que o ser humano está exposto, sua marca fundamental é a capacidade de transcendência do reino da necessidade para o reino da liberdade, onde pode pensar, sonhar e escolher de certa forma sua própria existência. “... O que determina a existência humana como ética é que ela aparece a si mesma como responsável por si mesma. É por isso que ela é sujeito” (134).
Mesmo o corpo humano, nunca é apenas um corpo-objeto (organismo) como pensava Descartes, ou seja, uma máquina, apenas um suporte do sujeito. Para a fenomenologia existencial o corpo do homem é um corpo vivido, isto é, observante, expressivo, enfim, um corpo-sujeito. Este é o sentido da expressão “eu sou meu corpo”, utilizada por Gabriel Marcel e retomada por Merleau Ponty.
A segunda questão proposta diz respeito à origem dos valores éticos, à natureza do campo ético. Em sua origem histórica, os valores éticos estão ligados ao problema da violência, ou seja, “diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupos social” (Chauí, 1994: 336). Violência é toda atitude que fere a dignidade humana de alguém seja de ordem física (assassinato, seqüestro, tortura), psíquica (mentira, calúnia, ma-fé) ou social (injustiça, desemprego, miséria). Ora, a dignidade humana, como vimos, está em ser reconhecido como sujeito do conhecimento e da ação, um ser capaz de autodeterminação, um sujeito. Violência é, portanto, tudo aquilo que tira ou diminui a dimensão de sujeito do ser humano, transformando-o em objeto, em coisa. A partir do conceito de violência, cada sociedade instituiu historicamente seu conjunto de valores éticos, um dos componentes do campo ético.
Porém, para que haja um conduta ética, além dos valores éticos, é necessário que o agente seja um sujeito ético ou moral, ou seja, uma pessoa consciente de si e dos outros, dotado de vontade racional, reconhecer-se como responsável e ser capaz de autodeterminar-se (Cf. Chauí, 1994: 337).
Terceira questão: O que é esse conhecimento denominado “ciência” que nos trouxe tantas maravilhas e que, ao mesmo tempo, produziu uma tecnologia destrutiva em escala planetária?
A ciência moderna ocidental é fruto de um novo paradigma: o saber ativo, cujo objetivo é transformar a natureza, veio superar o saber contemplativo-especulativo medieval, voltado para o significado último do universo e da vida. Surgiu assim o antropocentrismo sob o signo da ambição e da dominação, como exaltou Francis Bacon: “... se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e o domínio de gênero humano sobre o universo, a sua ambição seria, sem dúvida, mais sábia e a mais nobre de todas”(1973: 38). Dominar a natureza significa controlar seus fenômenos, ou seja prevê-los para transformá-los. Como só é possível prever o que é previsível, a ciência moderna abstraiu a natureza singular, concreta, qualitativa apreendendo apenas seu aspecto abstrato, quantificável através da matematização. Por essa razão que o ‘livro da natureza’ está escrito em linguagem matemática, para Galileu Galilei. A dominação da natureza, contudo, pressupõe a autodominação do sujeito. “O sujeito que enfrenta a natureza abstrata é, ele também abstrato, destituído de psicologia e memória, pois as paixões humanas, bem como o mundo cultural e histórico, são fonte de enganos e ilusão” (Matos, 1993: 40). A racionalidade passa a ser vista apenas como identificação entre um sujeito abstrato e uma natureza abstrata.
A ciência moderna ocidental é fruto de um novo paradigma: o saber ativo, cujo objetivo é transformar a natureza, veio superar o saber contemplativo-especulativo medieval, voltado para o significado último do universo e da vida. Surgiu assim o antropocentrismo sob o signo da ambição e da dominação, como exaltou Francis Bacon: “... se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e o domínio de gênero humano sobre o universo, a sua ambição seria, sem dúvida, mais sábia e a mais nobre de todas”(1973: 38). Dominar a natureza significa controlar seus fenômenos, ou seja prevê-los para transformá-los. Como só é possível prever o que é previsível, a ciência moderna abstraiu a natureza singular, concreta, qualitativa apreendendo apenas seu aspecto abstrato, quantificável através da matematização. Por essa razão que o ‘livro da natureza’ está escrito em linguagem matemática, para Galileu Galilei. A dominação da natureza, contudo, pressupõe a autodominação do sujeito. “O sujeito que enfrenta a natureza abstrata é, ele também abstrato, destituído de psicologia e memória, pois as paixões humanas, bem como o mundo cultural e histórico, são fonte de enganos e ilusão” (Matos, 1993: 40). A racionalidade passa a ser vista apenas como identificação entre um sujeito abstrato e uma natureza abstrata.
É inerente ao ser humano a ação transformadora da natureza e, por conseqüência, de si mesmo através de conhecimentos e práticas. Todavia, alguns filósofos alemães, reunidos na Escola de Frankfurt, como Adorno, Marcuse e Horkheimer, vêem na modernidade ocidental um processo de instrumentalização da razão. “Na medida em que a razão se torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumentos de dominação, poder e exploração da natureza e dos seres humanos” (Chauí, 1994: 283). A dominação da natureza, de si mesmo e do outro são aspectos de um projeto. Neste sentido, a ciência sofre um processo de ideologização a serviço da sociedade capitalista.
Precisamente nesse ponto, pode-se colocar algumas considerações, alinhavando os conceitos de ciência, ética e ser humano já postos. A razão instrumental distancia a ciência da ética, uma vez que seu objetivo é estabelecer os fins e adequar os meios aos fins. Não há espaço nela para a reflexão sobre os fins da ação em termos de valores e sim em termos de eficiência.
Assim o conhecimento científico, ao invés de estar a serviço da emancipação do homem, suprindo suas necessidades efetivas, voltou-se cada vez mais para os fins de mercado da sociedade capitalista. Que fins são estes? O sistema capitalista, embora fundado na racional-idade científica, coloca fins irracionais: progresso ao infinito, visando ao enriquecimento cada vez maior de uma parcela cada vez menor da humanidade, por meio da dominação da natureza e do outro ser humano a qualquer custo.
A ciência moderna contém uma contradição interna precisamente no âmbito da ética: se, por um lado, o saber científico plenifica no ser humano realmente o sentido de sujeito (agente), de outro, esse próprio saber, que instaura o sujeito, vem destruindo as próprias condições de o ser humano realizar-se enquanto sujeito. Em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer analisa as contradições dessa razão iluminista que potencializa o sujeito e, ao mesmo tempo, empobrece a própria noção de sujeito. Pelo exposto, percebe-se que a possibilidade da convivência entre a ética e a ciência não depende simplesmente de uma decisão de ordem específica, pois essa requer uma mudança global na sociedade humana. Estamos certamente vivendo uma transição entre dois grandes paradigmas do pensar e do viver: um de modelo racionalista-mecanicista construído na modernidade e o outro emergente ainda indefinido, contudo apontando para uma racionalidade que não anule os sentimentos, a sensibilidade e as pulsões como sonhou Marcuse em Eros e Civilização.
Embora os problemas ecológicos nos obriguem a repensar o modelo da sociedade atual, a mudança de paradigma não será natural. Estamos em momento histórico de decisões, de escolha de um novo caminho que supere a crise social em que vivemos. É preciso optar por ele e promover profundas transformações em todos os aspectos da vida humana, uma vez que eles são interdependentes. Implementar, por exemplo, uma política de desenvolvimento sustentado, ou seja, um desenvolvimento voltado para as reais necessidades da geração atual e das futuras gerações. As medidas no plano econômico serão eficazes se conseguirmos estabelecer um novo contrato social em que a vida digna seria garantida pela solidariedade entre os contemporâneos e desses com a gerações futuras. A solidariedade presente-futuro é um dos princípios para uma nova ética. O outro, certamente, o da tolerância com o diferente. Uma ética da tolerância não significa aceitar as desigualdades sociais, fruto da dominação, mas aprender a respeitar a diversidade cultural e de posições democráticas a serviço da libertação do homem de todas as opressões.
No plano do conhecimento, uma nova sociedade buscará superar toda forma de dogmatismo seja mítico-religioso, seja científico. A ciência moderna surgiu a partir da postura crítica diante das verdades absolutas da metafísica e da teologia, todavia, ela acabou sendo vista como o estágio de maturidade do pensamento humano, que explicaria tudo pela quantificação da realidade. Hoje, a percepção (e não simplesmente o raciocínio) nos mostra que o pensamento cientifico é ainda a juventude da humanidade. É a fase do guerreiro, das conquistas, do poder que cega a visão dos limites, da contingência da própria condição humana. Estabelecer a ética na ciência é se pôr a caminho da maturidade, a caminho da sabedoria. O que vem a ser a sabedoria? Uma ciência com novos pressupostos epistemológicos que considerem também a natureza plural e qualitativa? É possível uma ciência qualitativa? Não sabemos. O que já visualizamos é a possibilidade de uma nova postura diante da ciência e de outras formas de ‘conhecimento’: a mítico-religiosa, a filosófica, a artística, a empírica. Essa nova postura significa perceber a igual importância de todas elas para o homem como um todo. Nenhuma pode se colocar em detrimento da outra. Cada uma atende a necessidades humanas diferentes. O que é uma árvore? um vegetal? um símbolo? um ente do Ser? uma forma estética? ou simplesmente uma árvore? Tudo isso e muito mais. Para cada necessidade, nós estabelecemos um significado. Todavia, assim como outrora a visão mítico-religiosa, a ciência moderna se colocou como o único conhecimento, capaz de resolver todos os nossos problemas. Os desastres históricos já conhecemos. A sabedoria da humanidade parece depender do diálogo profundo entre as diversas formas de ‘conhecimento’. Nele, certamente, cada uma delas conhecerá melhor sua própria natureza e seus limites. Ainda não temos claramente a metodologia para viabilizar esse diálogo, entretanto, ela será construída no próprio processo. Isso será possível se os interlocutores tiverem um mesmo princípio ético: a valorização da vida e a construção de uma vida digna e feliz para todos os contemporâneos e para as futuras gerações.
Na realidade estamos falando da possibilidade e da necessidade de a humanidade passar por uma transformação qualitativa. Vejamos. Com a razão lógica construímos uma ‘segunda natureza’: a civilização, uma cultura, opondo-se à ‘primeira natureza’, submersa no mundo animal. Porém, a antítese entre a primeira e a segunda natureza está indo para um ponto de tensão máxima, o que poderia resultar, se assim optarmos, numa síntese; uma terceira natureza. Imaginemos uma sociedade que viabilize a harmonia entre o avanço científico-tecnológico e os ecossistemas; entre a razão e as pulsões; entre a felicidade da coletividade e a de cada um; enfim, entre o princípio de realidade e o princípio de prazer. Esse é o sonho principal das utopias contemporâneas.
Poderia ser esta uma fábula para a humanidade. Uma criança descobriu, certo dia, um brinquedo maravilhoso e assustador: movimentos, sons, luzes e cores. Submissa aos encantos e à magia do brinquedo, buscou forças nos deuses para poder brincar.
Poderia ser esta uma fábula para a humanidade. Uma criança descobriu, certo dia, um brinquedo maravilhoso e assustador: movimentos, sons, luzes e cores. Submissa aos encantos e à magia do brinquedo, buscou forças nos deuses para poder brincar.
Com o tempo, o medo se foi e a criança, já adolescente, passou a conviver naturalmente com o brinquedo. Além de brincar descobrir outra coisas importantes. Queria, por exemplo, saber a origem daquele brinquedo, o significado de seus movimentos harmônicos, de sua beleza e, também, por que ela gostava de brincar. Pensou, repensou e criou teorias e mais teorias para esclarecer suas dúvidas.
Na juventude houve uma grande mudança. Definitivamente não era e não queria mais brincar. Havia coisas mais importantes e mais sérias. Descobriu novos conhecimentos e corajosamente resolveu desmontar o brinquedo com chave de fenda, alicate, martelo, utilizando também régua e compasso. Quis conhecer agora minuciosamente seu funcionamento e todas as engrenagens. Assim, talvez, pudesse aperfeiçoá-lo e, quem sabe, construir novos brinquedos. E o jovem conseguiu! Construiu brinquedos e mais brinquedos. Brinquedos de todos os tipos. Começou a fazer coleção deles. Sentiu-se todo poderoso.
Mais tarde, contudo, surgiram problemas nos brinquedos: alguns movimentos descontrolaram-se, apareceram ruídos desagradáveis, luzes se apagaram e até as cores perderam a vida. Pior do que tudo isso: o jovem foi ficando triste e sério. Conhece mais e mais os segredos do brinquedo, mas não gosta mais de brincar. Não se encanta mais. O brinquedo perdeu a graça.
Agora, de tanto sofrimento, o jovem tem a impressão de que vai morrer. Aí então, bate no peito saudade da infância perdida. Gostaria de voltar a ser criança, de voltar a brincar. Começa a buscar uma saída: não de simplesmente ser criança, mas quer tornar-se um adulto-criança. Quer construir brinquedos e também se encantar com eles. E, finalmente, começa a perceber que ele próprio é parte do brinquedo.
Referências bibliográficas
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. [trad. Guido Antônio de Almeida] Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985.
BACON, F. Novum Organun. In: Os pensadores. [trad. José Aluysio Reis de Andrade] São Paulo: Abril Cultural, 1973.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994
DRELL, D. O homem que lê cromossomos. In: Revista Superinteressante. São Paulo (especial 119-A) 16-19: agosto, 1997.
LADRIÈRE, J. Ética e Pensamento científico: abordagem filosófica da problemática bioética. [tradução: Hilton Japiassu] São Paulo: Letras & Letras / SEAF, s.d.
LE GOFF, J. Progresso/Reação. In: Enciclopédia EINAUDI, vol 1, Memória História, Porto: Inova/Artes Gráficas, 1994.
MATOS, O. C. F. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. Coleção Logos. São Paulo: Editora Moderna, 1993.
Agora, de tanto sofrimento, o jovem tem a impressão de que vai morrer. Aí então, bate no peito saudade da infância perdida. Gostaria de voltar a ser criança, de voltar a brincar. Começa a buscar uma saída: não de simplesmente ser criança, mas quer tornar-se um adulto-criança. Quer construir brinquedos e também se encantar com eles. E, finalmente, começa a perceber que ele próprio é parte do brinquedo.
Referências bibliográficas
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. [trad. Guido Antônio de Almeida] Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985.
BACON, F. Novum Organun. In: Os pensadores. [trad. José Aluysio Reis de Andrade] São Paulo: Abril Cultural, 1973.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994
DRELL, D. O homem que lê cromossomos. In: Revista Superinteressante. São Paulo (especial 119-A) 16-19: agosto, 1997.
LADRIÈRE, J. Ética e Pensamento científico: abordagem filosófica da problemática bioética. [tradução: Hilton Japiassu] São Paulo: Letras & Letras / SEAF, s.d.
LE GOFF, J. Progresso/Reação. In: Enciclopédia EINAUDI, vol 1, Memória História, Porto: Inova/Artes Gráficas, 1994.
MATOS, O. C. F. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. Coleção Logos. São Paulo: Editora Moderna, 1993.
Fonte:UNESP
Disponivel em:http://www2.fc.unesp.br/cienciaeeducacao/include/getdoc.php?id=499&article=155&mode=pdf