Contestado: esta é a história dos que não estão na história. Sob a capa de uma religiosidade aparentada ao catolicismo, mas com tônus e prática regados a procissões, castigos e sacrifícios - cimento místico que unia milhares de despossuídos -, a questão agrária não se escamoteava. Pela terra se sacrificaram mulheres, crianças e homens de todas as categorias sociais e etnias. Quem planta e trabalha a gleba dela é magicamente seu titular. "A terra é como a mãe, depois que se perde, o valor aparece" - uma sabedoria bebida junto aos índios, migrantes nacionais, imigrantes europeus e desterrados de todo naipe, que tiveram seu horizonte surrupiado por multinacionais, "coronéis" e pelo Estado.
Contrastando com o memorial afetivo e o inconsciente coletivo ainda vivos, grande parte da historiografia sobre o Contestado é balizada ora por interpretações ideologizantes, ora por arroubos separatistas e até xenófobos, além de conclusões ancoradas numa discutível similitude com Canudos (1896-1897).
Nos últimos 40 anos - desde a publicação de Messianismo e Conflito Social (1966), de Maurício Vinhas de Queiroz, que veio na esteira da ficção Geração do Deserto, de Guido Wilmar Sassi, seguido do filme A Guerra dos Pelados (1971) - o tema ameaçou entrar em voga, sintomaticamente, entre o rescaldo do golpe de 64 e as primeiras ações clandestinas (no interior dos estados sulinos) contra a autoridade militar. No entanto, nem com o incensado Errantes do Novo Século, de Duglas Teixeira Monteiro (1974), que reinterpretava o caráter milenarista do levante caboclo, o Contestado passou a "existir".
A partir dos anos 1980, o interesse reacendeu com a edição de quase uma dezena de textos que, um pouco mais, um pouco menos, findam por reverenciar os dois estudos que modernamente resgataram o Contestado com o necessário embasamento acadêmico: La Guerre Sainte au Brésil: Le Mouvement Messianique du "Contestado", de Maria Isaura Pereira de Queiroz - tese defendida na França em 1957 e publicada entre nós em 1965, ampliada e com o título O Messianismo - no Brasil e no mundo -, que alude a outros movimentos messiânicos para explicar o surto catarinense; e João Maria, Interpretação da Campanha do Contestado (1960), de Oswaldo Cabral, que remete, pela estrutura, a Os Sertões, de Euclides da Cunha - uma investigação telúrica e apaixonada.
Pesquisadores tão rigorosos quanto Cabral são Marli Auras (Guerra do Contestado: A Organização da Irmandade Cabocla), Jean-Claude Bernadet (Guerra Camponesa no Contestado), Ruy Wachowicz (O Comércio da Madeira e a Atuação da Brazil Railway no Sul do Brasil ), Antonio Pedro Tota (Contestado: A Guerra do Novo Mundo), Paulo Ramos Derengoski (O Desmoronamento do Mundo Jagunço), Beneval de Oliveira (Planaltos de Frio e de Lama) ou Nilson Thomé (Trem de Ferro: A Ferrovia no Contestado). Infelizmente, como o próprio longa-metragem A Guerra dos Pelados, esses trabalhos não tiveram força para ampliar a importância do Contestado nos livros didáticos, na academia e na mídia impressa, nem inoculá-lo na corrente sangüínea das discussões sobre as revoltas populares que tumultuaram a chamada "República Velha"(1889-1930).
Neste início de século XXI, sem nenhuma coincidência, quando os conflitos rurais são tão evidentes quanto candentes, o tema volta à baila com a publicação do vigoroso Lideranças do Contestado, de Paulo Pinheiro Machado. Ainda assim, o Contestado continua um acontecimento zumbi da história do Brasil.
Neste início de século XXI, sem nenhuma coincidência, quando os conflitos rurais são tão evidentes quanto candentes, o tema volta à baila com a publicação do vigoroso Lideranças do Contestado, de Paulo Pinheiro Machado. Ainda assim, o Contestado continua um acontecimento zumbi da história do Brasil.
Fonte: História Viva
Disponível em: http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/o_contestado_na_historiografia_2.html