Carlos Eduardo França de Oliveira
Já em seus primórdios nas sociedades antigas – surgimento recorrentemente situado na Antigüidade grega com Heródoto no século V a.c, mas que, no entanto possui um passado ainda mais longínquo, nos impérios do Próximo e do Extremo Oriente –, a história assentou-se em relação a uma realidade que não é nem elaborada nem observada como na matemática, nas ciências da natureza ou nas ciências da vida, mas sim sobre a qual se questiona e testemunha. Esse é o significado do termo grego e de sua raiz indo-européia wid-, weid-: “ver”. Dessa forma, a história se iniciou como uma narração daquele indivíduo que podia dizer “eu vi”, “eu senti” (LE GOFF, 2003, p. 138).
A despeito de nunca ter se extinguido da produção historiográfica, o elemento narrativo foi na maior parte das vezes combatido pelo paradigma moderno de história. Tal refutação não dizia respeito à narrativa em si, mas sim no que se refere a seus conteúdos estéticos e retóricos, elementos esses inerentes ao ofício literário. Conforme observou Hayden White, até a Revolução Francesa a historiografia era vista como uma arte retórico-narrativa, sendo sua natureza literária comumente reconhecida entre literatos e historiadores. O historiador era, em última instância, um narrador de acontecimentos dotado de procedimentos retórico-narrativos. No entanto, em decorrência de sua busca pela objetividade e pela verdade – elementos tidos na época como basilares de qualquer ciência –, boa parte da historiografia do século XIX aboliu dos estudos da história o recurso às técnicas ficcionais de representação. Assim, o próprio nascimento da história enquanto disciplina se pautou naquilo que ela não deveria ser – mito, fábula ou poesia –, já que essas estruturas não trariam, dentro da lógica do século XIX, um conhecimento verdadeiro, esse sim o objetivo maior do historiador. As concepções de neutralidade e de objetividade, vagamente inspiradas nos modelos explicativos oriundos das ciências naturais, eram formas de legitimar a pureza e a imparcialidade da “linguagem científica”, que não deveria se aproximar da narrativa literária (WHITE, 2001).
Embora tenha sido criticado o modo de se fazer história do século XIX – desde o historicismo alemão até suas vulgarizações, como o positivismo francês e norte-americano e o idealismo (de Croce, por exemplo) –, a historiografia do século XX, até pelos menos a década de setenta, majoritariamente não revalidou o estatuto narrativo da história. Aliás, parte desses historiadores, em especial aqueles vinculados ao grupo dos Analles, acentuou as críticas à presença da narrativa na história, inclusive acusando os positivistas de terem-na utilizado à exaustão. Para historiadores como Fernand Braudel, François Furet e Le Rouy Laudurie, a narrativa foi concebida como um mecanismo representacional não científico, cuja eliminação era essencial para o estatuto científico da história. Nesse âmbito, vale notar que a historiografia marxista do século XX também refutou a narrativa, já que esta era, no entender de parte dos historiadores marxistas, insuficiente em termos ideológicos e científicos. No primeiro caso pelo fato da narrativa tradicional ressaltar apenas o ponto de vista das classes dominantes; no segundo, em decorrência da história-narrativa não oferecer subsídios para que o historiador exponha os processos dialéticos das lutas de classes (BENATTI, 2000, p. 79). De modo geral, portanto, a historiografia do século XX, mesmo com sua diversidade ideológica e epistemológica, procurou ocultar e negar a preocupação com a estrutura narrativa na produção historiográfica, em nome da proeminência do conteúdo estudado.
A partir da década de 1970, e principalmente dos anos oitenta, o tema da narratividade voltou à tona no âmbito da história. A idéia de “retorno” da narrativa nasceu com o historiador Lawrence Stone, em seu polêmico artigo The revival of narrative (STONE, 1991, p. 13-46), publicado em 1979, no qual afirmara que os três grandes paradigmas da “história científica” vigentes entre o período de 1930 e 1970 – o modelo econômico marxista, o modelo ecológico-demográfico francês e a metodologia “cliométrica” americana – começaram a ser vistos com uma certa desconfiança, já que em anos de produção acadêmica apresentaram resultados ineficientes em relação às suas expectativas iniciais. Frustrados com os grandes modelos explicativos em voga até então, parte significativa dos historiadores estaria se voltando, ao longo da década de 1970, a uma revalorização dos acontecimentos e da narrativa. Disseminava-se, no entender de Stone, a percepção de que não bastava ao historiador o rigor metodológico; era preciso que ele conferisse um determinado estilo a sua escrita, isto é, que ele soubesse não apenas contar, mas também saber como fazê-lo. Admitindo que na escrita da história a forma é tão significativa quanto o conteúdo, tornava-se necessário reconhecer uma aproximação entre historiografia e ficção. Todavia, no âmbito acadêmico da disciplina histórica, essas reflexões suscitavam – e ainda suscitam – um visível desconforto. Isso porque no século XX, quando a história com “h” maiúsculo finalmente parecia se firmar enquanto saber científico autônomo, a sua comparação com a literatura era de certa forma um mecanismo que deslegitimava a história científica.
Criticado por historiadores como Jacques Le Goff e Eric Hobsbawn (LE GOFF, 2003, p. 142-3; HOBSBAWN, 1998, p. 201-6), o texto de Stone serve aqui como diagnóstico para nossa discussão central: o significado do recrudescimento da narrativa na história no cenário pós-moderno. Mesmo porque, como assinala Chartier (1994, p. 03), a questão da volta da narrativa foi mal colocada, já que não se pode falar do retorno de algo que nunca deixou de existir. Valendo-se da obra Tempo e narrativa, de Paul Ricoeur, Chartier ressalta que o filósofo francês notou que toda produção historiográfica, seja ela “tradicional”, estruturalista ou marxista, é regulada por princípios narrativos, na medida em que os elementos com os quais o historiador trabalha – mentalidades, sociedade, memória coletiva ou eventos pontuais – são como personagens de um enredo. A narrativa é fundamental por ter a capacidade de articular os traços da experiência temporal, isto é, o tempo só se mostra inteligível para o homem na medida em que ele é pensado de modo narrativo. Deste modo, ressalta Chartier, não se trata propriamente de um retorno da narrativa, mas sim de um deslocamento da prática historiográfica para outras estruturas narrativas não consideradas pela história até então, em especial aquelas vinculadas à literatura, além de um distanciamento dos historiadores em relação aos modelos clássicos de narrativa histórica.
Fundamental para a compreensão do cenário contemporâneo da história, essa renúncia pela historiografia de qualquer projeto teleológico de explicação ou compreensão dos fenômenos históricos foi entendida por Jean-François Lyotard (1998) como o declínio das metanarrativascriadas pela modernidade. Segundo Lyotard, a metanarrativa é um discurso que, a partir da elaboração de um telos definido sobre o curso da história, engendra relações lógicas entre a pesquisa, a filosofia, a política e arte, conferindo a essas esferas um sentido unificado. Em outras palavras, as metanarrativas são esquemas retórico-narrativos que, ao longo de seqüências temporais ou argumentativas, encadeiam os fenômenos históricos a fim de buscar um telos previamente determinado. Assim, no entender de Lyotard, o iluminismo, o idealismo e o marxismo seriam grandes exemplos de metanarrativas. O declínio dessas na sociedade pós-industrial advém, assinala o autor, menos do desenvolvimento do capitalismo do que da ineficácia das mesmas no cenário contemporâneo, mesmo porque a aspiração de um saber globalizante atrelado a um modelo único de discurso perde sua força frente a conjuntos de fragmentos de histórias variadas e muitas vezes contraditórias sobre um mesmo assunto.
É pertinente assinalar que a descrença nas metanarrativas faz com que se torne evidente a pluralidade de possibilidades de se narrar os fenômenos históricos. Nesse âmbito, o estilo da narrativa torna-se fundamental para a história, já que ele tanto molda o conteúdo quanto é por este moldado, alterando, portanto, o produto do historiador. Segundo Peter Gay (1990, p. 17-8), o historiador de ofício é ao mesmo tempo um escritor e um leitor que, em ambos casos, é profissional. Em sua função de escritor, sente-se na difícil obrigação de proporcionar prazer ao leitor sem comprometer o conteúdo de sua narrativa. Nesse caso, o estilo serve tanto como uma ferramenta convencional como uma “confissão involuntária”. Enquanto leitor, o historiador valoriza a sofisticação literária, apreendendo os fatos e interpretações contidas no texto. Nessa função, o estilo é um objeto de satisfação, um suporte para o conhecimento ou até mesmo um mecanismo de diagnóstico.
No entender de Gay, dentre os diversos tipos de estilo existentes, aquele que mais importa à história é o literário, mesmo porque a produção do historiador geralmente assume formas literárias. Assim, a maneira de lidar com o encadeamento de frases, com a retórica e com a divisão da narração são competências também do historiador. No entanto, alerta Gay, esses recursos estilísticos não são meros ornamentos do discurso historiográfico, mas elementos constitutivos do próprio conhecimento produzido pelo historiador, como foi ressaltado acima. Dessa forma, num sentido mais amplo, a forma de narrar revela mais do que a cultura em que o historiador está inserido; ela explicita a própria maneira como o historiador concebe a apreensão do real (GAY, 1990, p. 20-1).
A preocupação de Gay com o estilo literário na história nos remete a uma questão fundamental no interior do debate sobre a narratividade: se uma das principais discussões suscitadas pela preocupação com a linguagem na história se refere a uma aproximação entre o discurso histórico e literário, como foi visto acima, estaria a historiografia fadada a reproduzir esquemas retórico-narrativos originários da literatura? Afinal, ambas se intercomunicam como formas de linguagem, ambas sintetizam e recapitulam, ambas têm como objeto as relações humanas. Como o romance, a história seleciona, simplifica e organiza o conteúdo por meio de uma narrativa. Autores como Hayden White, por exemplo, vão mais longe e pensam em aproximação radical entre história e literatura, na perspectiva da construção de uma poética na história, considerando que o registro do historiador não é essencialmente diferente do da ficção no plano da composição narrativa. A história seria, em primeiro lugar, escritura, isto é, um artefato literário (WHITE, 2001).
É importante notar que autores como Hayden White e Dominick La Capra – colocados muitas vezes no heterogêneo grupo dos “narrativistas” – concebem a história como o produto do trabalho do historiador, cujo texto compõe a própria realidade. Assim, o texto se refere a si mesmo, e não a algo que está fora dele. Decorre daí que o único critério relevante para tais textos é o estético, isto é, o estilo de exposição. São textos, enfim, que não podem ser analisados a partir de premissas epistemológicas; é necessário que o conhecimento histórico seja analisado por meio da constatação dos modos de representação lingüística da narrativa histórica.
Causadores de grandes polêmicas, os estudiosos que colocaram em proeminência os referentes internos do texto, isto é, naqueles elementos dedutíveis da própria narrativa, receberam muitas críticas dos historiadores de ofício, mesmo porque grande parte dos representantes da idéia do texto histórico como algo auto-referente não advém da disciplina história. De modos diferentes, historiadores como Roger Chartier e Carlo Ginzburg acreditam que discutir o conhecimento histórico apenas segundo sua natureza textual é cometer uma considerável redução da história tanto enquanto prática científica como processo real, principalmente quando se busca operar uma aproximação radical entre o produto do historiador com a ficção literária. No entender de Chartier, a busca por um conhecimento é inerente à história, fundindo operações particulares da disciplina, como a análise de dados, a formulação de hipóteses, a crítica e verificação de resultados e articulação entre o discurso do historiador e seu objeto de pesquisa. Assim, nota o autor, “mesmo que escreva de uma forma ‘literária’, o historiador não faz literatura, e isso pelo fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo, portanto em relação ao passado do qual ele é vestígio” (CHARTIER, 1994, p. 110). De maneira mais contundente, Ginzburg acredita que a narrativa histórica se distingue da literária por um motivo de certa forma elementar: enquanto o romancista imagina seus acontecimentos e personagens, o historiador baseia-se em provas, isto é, em vestígios do passado que não podem ser forjados pelo historiador. Essas provas, alerta o historiador Ginzburg (apud BODEI, 2001, p. 67), não são reflexos da realidade e, por conseguinte, não são verdades absolutas; no entanto, elas constituem o elemento empírico de que necessita o historiador para construir sua narrativa.
Segundo Peter Burke (1992), não obstante história e literatura convergirem em diversos aspectos no que se refere ao estatuto narrativo de ambas, a historiografia não avançará muito, caso se engaje no que o autor chama de “experiências literárias”. O proveito da história em buscar na literatura elementos narrativos não reside em uma simples aceitação de técnicas literárias, mas sim na criação de uma consciência de que as “velhas formas” de se construir o discurso histórico não dão conta das atuais buscas dos pesquisadores. Preocupado em discutir uma forma de narrativa histórica que articule a esfera das estruturas com a dos acontecimentos – Burke acredita que as narrativas históricas pós-estruturalismo comumente se situam entre esses dois pólos –, a literatura pode oferecer técnicas que auxiliem essa articulação.
Partindo dessa premissa, Burke expõe algumas contribuições da narrativa literária para o historiador: o método de narração regressivo, muito utilizado nos romances modernos, pode auxiliar ao historiador a ressaltar para o leitor a pressão do passado sobre as sociedades, na medida em que a retomada de eventos e estruturas sociais anteriores reforçam os laços entre o presente e o que aconteceu antes dele. Já romances como O Som e a Fúria, de William Faulkner, podem sugerir que o texto de história busque articular diversos pontos de vista sobre um determinado assunto, isto é, que ele contenha dentro de si uma plurivocidade. A literatura também oferece subsídios para que o historiador mostre ao leitor que sua obra não é reflexo de uma verdade imaculada, e que seu papel enquanto narrador não é inócuo ou neutro.
Exemplo evidente dessa aproximação entre história e literatura esteve por conta do aumento dos estudos biográficos nesse período. Giovanni Levi acredita que uma das principais inovações dos estudos biográficos mais atuais é o intercâmbio que a biografia proporciona entre história e literatura. Levi considera que a literatura oferece à história uma série de recursos estilísticos e que a biografia é talvez o tipo de trabalho que mais se aproveita desses modelos literários, da narrativa não-linear, da utilização de flashbacks; enfim, a história pode muito aprender com as características mais sólidas e também com sutilezas da literatura (LEVI, 2000).
Burke acredita que a historiografia vem renovando suas formas de narrar. Tomando como exemplos a micro-história e alguns outros trabalhos, como do antropólogo Marsh Sahlins e do historiador Jonathan Spence, Burke argumenta que, embora não respondam a todas as questões sobre a narrativa, essas tentativas demonstram que há um simples “retorno da narrativa”; as atuais inovações narrativas no campo da história soam mais como uma maneira de regeneração no ato de narrar do historiador.
Ao levar em conta que não há um mero retorno à narrativa, mas sim uma procura por novos caminhos para narrar a história em detrimento de outros, a historiografia contemporânea depara com um problema essencial: a importância da forma no discurso histórico. Importância essa que não surtirá efeito algum caso for reduzida a um esteticismo puro, como afirma Astro Antônio Diehl:
deixar fluir a estética não deve significar a sua autonomia completa, pois isso também a afastaria do cotidiano das experiências, do social e do histórico. Se isso ocorresse, teríamos a ornamentação do texto sobreposto ao histórico e, conseqüentemente, nada mais do que um novo jogo da hostilização ao passado, onde predominariam o gozo das formas do esteticismo técnico e superficial. Em outras palavras, teríamos apenas um paraíso estético de alienação e de escapismo. (2002, p. 107)
A atual ênfase na forma do discurso histórico é melhor compreendida quando o próprio ato de narrar e de se posicionar perante a narração começa a ser analisado historicamente. A passagem de uma recusa de certos elementos da narrativa para uma revalorização da mesma no campo da história, portanto, não é um processo gratuito ou meramente estético; é, sobretudo, resultado de complexos processos históricos que perpassam desde questões epistemológicas acerca da apreensão do real até os pressupostos político-ideológicos do historiador. Deste modo, a conformação da sociedade contemporânea influi na prática historiográfica, sendo que as atuais discussões em torno da narratividade na disciplina histórica têm como elemento subjacente as preocupações e questionamentos da chamada era pós-moderna no que se refere ao estatuto do conhecimento.
Visto por grande parte dos pensadores da pós-modernidade como algo inerente à linguagem – seja em sua criação, usos e deturpações –, o conhecimento científico viu ruir seu estatuto de produto humano verdadeiro, objetivo e inexorável. O conhecimento histórico, por seu turno, que há muito custo conseguira estabelecer um caráter científico à história, sentiu um novo golpe com a crise geral dos paradigmas. Deste modo, as recentes buscas por modelos narrativos que satisfaçam os historiadores surgem como um sintoma da ênfase na pluralidade de significados, da ausência de transcendência na história, da descrença nos grandes modelos explicativos, ou seja, surgem como um demonstrativo da pulverização das esferas da vida humana engendrada na pós-modernidade.
Ao longo do trabalho notou-se que essa revalorização das estruturas narrativas no interior do debate historiográfico não é unânime, fato que pode ser constatado pelas grandes controvérsias entre autores. Não se pretendeu aqui apontar soluções ou encaminhamentos para o tema, mas apenas promover um debate remontando algumas proposições sobre o assunto. De qualquer forma, deixando um pouco de lado aqueles autores que concebem o conhecimento histórico como eminentemente textual e auto-referente, ao final do trabalho ficou a impressão de que a preocupação do historiador com a forma de sua escrita é um procedimento essencial. Se considerarmos as reflexões de Michel de Certeau (1982) sobre as especificidades da narrativa histórica – ou seja, de que essa é, concomitantemente, um relato sobre o passado e um lugar de enunciação vinculado a técnicas de saber vigentes em um determinado corpo social –, essa assume um papel importante na medida em que permite articular o sujeito (historiador) e seu objeto de pesquisa (os fenômenos históricos). Junto a isso, levando em conta também que o ato de relativizar a verdade, sem cair num relativismo simplista, foi uma conquista significativa para a historiografia. As narrativas históricas contemporâneas não podem perder de vista uma certa busca pelo verdadeiro. Não aquela verdade absoluta defendida por muitos durante o século XIX, mas uma verdade passível de alterações. Afinal, a da historiografia pode ser concebida como um movimento constante de releituras do passado, o que não significa que haja um acúmulo ou progresso do saber histórico; há sim uma seqüência de reinterpretações narrativas do passado que são passiveis de perdas, equívocos e revisões.
Bibliografia