por Patrícia Boreggio do Valle Pontin
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Sobre a autora [1]
I. Introdução
A guerra estava imbuída de um destacado fator religioso, por isso consideramos oportuno fazer uma breve introdução sobre a íntima relação entre guerra e religião na Grécia antiga.
Para os gregos os deuses estavam presentes em qualquer acontecimento da vida, um dos mais cruciais era precisamente o enfrentamento bélico, talvez porque era quando eram mais necessários. Poucas deidades do panteão grego podem ser consideradas alheias da esfera bélica. De fato, para os gregos, todos os deuses e os heróis podiam intervir de uma maneira ou de outra na guerra (Heródoto, VIII, 109). É certo que existem divindades cujo nome evoca guerra, como o Ares homérico (Bruneau, 1984). Porém também outros deuses podem ter destacadas conotações de caráter bélico. Desta maneira, Atena, a deusa da guerra inteligente, frente à guerra brutal e impulsiva de Ares, e a defensora da cidade, se apresenta muitas vezes armada e em atitude de ataque (Pausânias I, 28, 2). Esta deusa só aparece na iconografia com sua lança e casco e vestindo a égide com o chamado Gorgoneion (Il. V, 739-742; Od. XXII, 295-198; Gabaldón Martínez, 2005: 13; Halm-Tisserant, 1986). A aparência da égide causava pânico entre seus inimigos, o que constituía uma das armas principais de Atena.
Tem que se ter em conta que Atena é uma deusa fundamentalmente protetora da comunidade, o igual ocorre com outras divindades, as que se representa em muitas ocasiões armadas, como Hera e Afrodite. Portanto, essa mesma função defensiva e salvadora as converte, sem dúvida, em deidades muito relacionadas com a guerra, ainda que não sejam essencialmente belicosas (Solima, 1998).
II. Função guerreira na mitologia grega
A religião, de fato, demonstra o grau de aceitação desfrutado pela guerra de várias formas (Finley, 1985:68): as divindades guerreiras, como Ares (ou Marte para os romanos) não sofriam a menor concorrência das divindades ligadas à paz. A mitologia está repleta da satisfação demonstrada pelos deuses com a bravura e os sucessos militares dos seus protegidos mortais. Esses últimos presumiam que o auxílio divino estava sempre disponível para as guerras. Sendo assim, os oráculos ou os sinais divinos (isto é, interpretados como tais pelos gregos), jamais recomendavam a paz por si mesma, embora às vezes advertissem contra uma batalha ou guerra específicas por determinados motivos (Souza, 1988: 14-15).
A ideia de guerra e a de religião estavam relacionadas de várias maneiras. Era normal que os homens buscassem a proteção dos deuses e das forças sobrenaturais ao se lançarem em ações arriscadas.
Francis Vian (1968:56-8) observa o lugar secundário reservado a Ares na Guerra de Tróia, em comparação com o destaque outorgado a Palas Atena, que passa a ser a divindade guerreira por excelência. Ares simbolizava unicamente a batalha, no que ela tinha de mais selvagem e brutal, enquanto Palas já representava a ação guerreira em nome de um príncipe ou de um povo.
Segundo Burkert (1993: 331), “Ares” é, aparentemente, um velho substantivo abstrato com o significado “tumulto de guerra”, “guerra”. A ocorrência frequente do adjetivo daí derivado, aréios, é significativa: existe um Zeus Areios (Pausânias V, 14,6), uma Atena Areia (Burkert, 1993: 331), uma Afrodite Areia (Pausânias III, 17, 5), também um Hermaas Areias (Burkert, 1993: 331), aparentemente micênico, e acresce ainda a “ colina de Ares”, “Areios págos”, em Atenas. Em Homero “ares” é utilizado para designar a batalha. Tornaram-se clássicas as expressões como “suportar um áres violento”, “provocar um áres violento”, “medir as forças no áres”, “matar através do áres”.
Simultaneamente, Ares é a designação de um guerreiro armado, um guerreiro com armadura de “bronze”, cujo carro de combate foi aparelhado pelo “medo e pavor”, Fobos e Deimos. Ele é “muito poderoso”, “insaciável na guerra”, “destruidor”, “exterminador”. Mas, uma vez que um herói é um guerreiro, ele chama-se “ramo de Ares”. Os dânaos são “seguidores de Ares”, sobretudo Menelau é “querido de Ares” e na peleja “semelhante a Ares” (Burkert, 1993: 331).
Na Ilíada, Ares contrasta constantemente com Atena, e isto sempre em seu desfavor. Além disso, ele encontra-se do lado que por fim é derrotado, do lado dos troianos. Se Atena eleva o grito de guerra, Ares vocifera como uma nuvem negra carregada de chuva, da cidadela dos troianos e do rio Simoente:
“Mas, quando os deuses do Olimpo na chusma dos Teucros e Aquivos se misturaram, agita a Discórdia os guerreiros, e Atena grita, atroadora, ora junto do fosso, por fora dos muros, ora da banda dos altos penhascos, ao longe ressoantes. Grita Ares forte, também, semelhando bulcão tempestuoso, a concitar os Troianos, já do alto das grossas muralhas, já da Colina Formosa e das margens do Simoente” (Il., XX, 48-53).
Quando Ares é informado no Olimpo de que um de seus filhos foi morto, ele lamenta-se ruidosamente, bate com os punhos nas coxas e quer precipitar-se na luta, mas Atena tira-lhe o elmo, o escudo e a lança, e obriga-o a submeter-se à vontade de Zeus: “O elmo arrancou-lhe, sem mais, da cabeça, dos ombros o escudo; das mãos a lança de bronze tomou, colocando-a departe” (Il., XV, 125-6). Ares e Atena defrontam-se na batalha dos deuses, Ares atira a sua lança contra a égide sem sucesso, Atena porém acerta-lhe com uma pedra na nuca que o lança por terra e o faz rolar sete pletros: “Logo depois de falar, joga a lança contra a égide horrenda, cheia de franjas, que até ao próprio raio de Zeus resistira. Ares, o deus homicida, contra ela atirou a hasta longa. Retrocedendo, com as mãos vigorosas Atena uma pedra áspera e negra levanta do solo, de enorme tamanho, que como marca do campo os antigos ali tinham posto. De Ares em pleno pescoço a atirou, dissolvendo-lhe as forças” (Il., XXI, 400-406). Atena trata-o de modo ainda mais humilhante, ela própria conduz a lança de Diomedes contra o deus e fere-o no baixo ventre, derramando assim sangue divino. “Foi o segundo a atirar a sua lança de bronze o guerreiro de voz possante, Diomedes, a qual, por Atena guiada, no baixo ventre foi dar de Ares forte, onde o cinto o apertava” (Il., V, 855-857). Ares vocifera como nove ou dez mil homens: “Nesse lugar o feriu, tendo a pele macia rasgado, Palas, de novo, a arma extrai; Ares brônzeo soltou tão grande urro como o alarido que soem fazer nove ou dez mil guerreiros, de uma só vez, quando se acham travados em dura batalha” (Il., V, 858-861). Corre até Zeus no Olimpo, mas Zeus dirige-se-lhe zangado: “É, entre todos os deuses, aquele a quem mais ódio tenho. Sempre encontraste prazer em combates, contendas e lutas” (Il., V, 890-1).
Ares é a cristalização de tudo o que há de mais odioso na guerra. O esplendor da vitória, Nike, pertence a Atena. Assim, a pátria de Ares é a terra dos bárbaros, a Trácia: “Tal como ingressa na guerra o deus Ares, aos homens funesto, acompanhado do filho, o Terror, audacioso e potente, que medo infunde até mesmo no herói de maior resistência, e ambos armados, da Trácia partindo” (Il., XIII, 298-301).
Existem poucos mitos dedicados especificamente a Ares. O mito em que Ares se encontra mais especificamente envolvido é o da fundação de Tebas. Vian (1968: 56-8), observa que Ares tinha poucos cultos mas muitos mitos, prova de que ele representava uma concepção primitiva da guerra que aos poucos desapareceu. O papel secundário de Ares na religião grega clássica, onde ele era considerado uma divindade quase marginal, deve ser relacionado à inexistência, nesta mesma época, de uma função guerreira especializada. Nas póleis o exército não se constituía em um corpo especializado, apartado da vida pública, a preparação militar fazia parte da formação do cidadão.
Em comparação, como deusa do burgo e da cidade, Atena manifesta-se na imagem plena de tensões da virgem armada, belicosa e intocável. De acordo com Burkert (1993:279-80), o Oriente também possui deusas armadas: Istar e Anat. Segundo o autor, a imagem da “pequena Palas”, o Paládion, corresponde iconograficamente às estátuas sírias de guerreiros com elmo, escudo e arma em riste. O mito narrava que o destino de Tróia dependia do seu “Paládion”. Só depois de Ulisses e Diomedes terem entrado de noite em Tróia e roubado o seu Paládion, é que Tróia caiu. Posteriormente, várias cidades afirmavam possuir este Paládion, sobretudo Atenas e Argos. Em Argos, a imagem é transportada com o escudo de Diomedes sobre um carro para ser banhada, e, em Atenas, há uma procissão semelhante da Palas até ao mar e de volta ao seu domínio, Atena não transporta as suas armas em vão. Hesiodo descreve-a como “terrível despertadora do tumulto da batalha, chefe das tropas, uma senhora que se deleita com o clamor da batalha, as guerras e os massacres” (Teogonia, 925).
Quando os aqueus partem para a peleja, Palas Atena percorre as suas fileiras com as armas reluzentes, inflama em cada um uma energia inesgotável para a luta e para a guerra: “Os reis, alunos de Zeus, reunidos à volta do Atrida, os ordenavam prestantes, com Palas Atena a ajudá-los; a égide sacra e imortal impunhava, de preço infinito, da qual pendiam cem franjas, trabalho de fino traçado, de ouro sem mescla, valendo cada uma o que valem cem bois. A sobraçá-la, irradiante, atravessa as fileiras Acaias, a estimular os guerreiros, fazendo acordar-lhes no peito o irresistível ardor de aos combatentes, sem pausa, entregarem-se. Para eles todos, realmente, mais doce era entrar no combates do que voltar para a pátria querida nas côncavas naves” (Il., II, 445-54).
Quando Aquiles intervém de novo na luta, a própria Atena lança o grito de guerra, ora da trincheira, ora da costa: “e Atena grita, atroadora, ora junto do fosso, por fora dos muros, ora da banda dos altos penhascos, ao longe ressoantes.” (Il., XX, 48-50).
Assim, nos momentos de maior excitação, o guerreiro crê pressentir a própria divindade no ruído selvagem das armas. Arquíloco também descreve que Atena acompanhava graciosamente os combatentes vitoriosos na batalha real e estimulava os seus corações (Arquíloco, Fr., 94).
O símbolo e a armadura de Atena é a “aígis”, “égide”. Quando ela eleva a aígis, os inimigos entram em pânico e sentem-se perdidos (Od., XXII, 220-2). A aígis, como diz o nome, é uma pele de cabra. Em Atenas, segundo Burkert, 1993: 281), há um sacrifício especial de cabras que faz parte do culto de Atena. O mito narra que esta cabra era um monstro, uma gorgô, que a própria Atena matou e esfolou. A arte plástica converteu a cabeça do animal numa cabeça de Górgona e mostra a égide orlada de cobras, enquanto o poeta da Ilíada, fala de franjas douradas: “a égide sacra e imortal impunhava, de preço infinito, da qual pendiam cem franjas, trabalho de fino traçado, de ouro sem mescla, valendo cada uma o que valem cem bois” (Il., II, 447-9). “A égide ornada de franjas, então, sobre os ombros coloca, coisa espantosa de ver, pelo frio Terror circundada, pela Discórdia, a Violência e, também, pelo Assalto horroroso, bem como pela cabeça da Górgona, monstro terrível, horripilante espetáculo , do Crônida Zeus maravilha” (Il., V, 738-42).
Até mesmo a guerra, conduzida por Atena, não é puro e simples arrojo, isto foi antes cristalizado na imagem de Ares, mas enobrecida de modo peculiar com a dança, a tática, a privação: quando Ulisses, astuto e controlado como era, consegue que o exército dos aqueus, apesar do desgaste da guerra e da nostalgia, avance para a batalha, isso é obra de Atena: “Palas Atena, indomável, donzela de Zeus poderoso, é, então, possível, que fujam, desta arte, os guerreiros Argivos no dorso extenso do mar, para a terra dos pais, estremosa?” (Il., II, 157-59). “A chusma assim se expressava. Odisseu, eversor de cidades, o cetro empunha, de pé. Sob a forma do arauto, ao seu lado, a de olhos glaucos, Atena, ordenava silêncio às fileiras, para que todos os homens Acaios, de perto e de longe, suas palavras ouvissem e, após, orientar-se soubessem” (Il., II, 278-82).
Mais do que qualquer outra divindade, Atena acompanha os seus protegidos de muito perto. Onde as dificuldades são resolvidas e algo impossível se torna possível, Atena está presente, embora esta presença não diminua o mérito do agente. Na Ilíada, intervém de modo mais direto para ajudar Diomedes, conduzindo o seu carro e incitando-o a ferir Ares: “O claro filho do grande Tideu, diletíssimo amigo, não tenhas medo nem de Ares, nem de outro qualquer dos eternos deuses do Olimpo, que sempre te assisto por modo eficiente. Vamos, dirige contra Ares os teus ardorosos ginetes, e, bem de perto, o acomete, sem ter complacência nenhuma com esse louco furioso, inconstante, a maldade em pessoa” (Il., V, 826-31).
A intervenção de Atena também pode ser perigosa. A vitória de um lado e a derrota do outro. Ela conduz Heitor à morte, aparecendo-lhe na figura do seu irmão só para, num instante crucial, devolver a Aquiles a sua lança e desaparecendo depois: “Pobre de mim! É bem certo que os deuses a morte me votam. Tive a impressão de que o forte Deífobo estava ao meu lado, mas na cidade se encontra; foi tudo por arte de Atena” (Il., XXII, 297-99).
Para defender os gregos destrói Ájax sem qualquer escrúpulo. É perante Aquiles que faz sua aparição mais notável: quando na luta com Agamenão aquele empunha a espada, Atena, por detrás, puxa-o pelo cabelo. Para o outro, ela permanece invisível, mas Aquiles, “atônito”, reconhece a deusa. Os seus olhos brilham terrivelmente. Ela aconselha-o moderar sua ira, acrescentando com simplicidade, “se me quiseres seguir”; e Aquiles obedece sem mais: “Por trás de Aquiles postando-se, os louros cabelos lhe agarra, a ele visível somente; nenhum dos presentes a via. Cheio de espanto, o Pelida virou-se; porém pelo brilho que se lhe expande dos olhos, conhece que é Palas Atena” (Il., I, 197-200). Segundo Burkert, (1993: 283), os olhos brilhantes de Atena marcam um momento de prudência clarividente na luta obscura.
De fato, apesar de outras deusas, notavelmente Hera e Atena, herdarem o papel de padroeiras do guerreiro, é na maioria das vezes Ártemis quem permanece a deusa selvagem e preceptora dos sacrifícios. Ártemis é só raramente a deusa padroeira das cidades. Ela é, contudo, a padroeira dos varões, especialmente do jovem, do que será guerreiro. Seus santuários são muitas vezes localizados nas margens das cidades onde ela prepara os jovens para virem a ser futuros guerreiros (Marinatos, 2000: 92).
Sabemos que Ártemis era a padroeira dos guerreiros até a Grécia Clássica. Guerreiros espartanos sacrificavam à Ártemis. Depois de Maratona, os atenienses agradeceram Ártemis Agrotera com opulentos sacrifícios. Ártemis Agrotera era a padroeira dos efebos. Em Esparta, ela parece desempenhar um papel até durante a Carnéia, um festival com um caráter militar (Marinatos, 2000: 97).
Em resumo, Ártemis preside sobre as façanhas dos guerreiros, até as que podem ser nomeadas de “selvagem”. Todavia esta selvageria é coagida por rituais e moral guerreira ditadas pelas póleis gregas. Os jovens tinham que aprender a defender sua cidade e isto não podia ser dado sem um austero, até brutal treinamento. A agressão guerreira é iniciada pela deusa – esta é uma necessidade para a preservação da cidade a qual tanto o guerreiro quanto a deusa pertencem (Marinatos, 2000: 109).
III. Guerra agonística, protocolo de guerra e ritual no mundo antigo
O relato de epifanias e prodígios por parte dos autores antigos prova a importância do religioso na guerra. Isto não é impedimento para pensar que a crença nesses fenômenos podia ser utilizada com fins mais profanos, como manter a fé e coesão do exército e inclusive como uma tática militar (Gabaldón Martínez, 2005: 15).
Como indicam muitos autores, especialmente Detienne (1968) e Lonis (1979), a guerra grega, especialmente a hoplítica, estava intimamente relacionada com o agon, a competição, o combate, de tal modo, que se fala inclusive de guerra agonística já desde época arcaica (Brelich, 1961; Lonis, 1979; Popowicz, 1995). Contudo, recentemente, Peter Krentz (2002), assinalou que oagon hoplita foi “inventado” no século V a.C. e não antes, já que os gregos arcaicos combatiam seguindo os protocolos estabelecidos nos tempos de Homero. Não obstante, como cremos, muitas das normas que configuravam a guerra agonística podem ter sua origem em época homérica; basta ler a Ilíada para ver muitos rituais que se realizavam em torno da esfera bélica, que posteriormente vão caracterizar a guerra dos hoplitas (Gabaldón Martínez, 2005: 15).
Na opinião de R. Lonis (1979: 25), na noção de agon predominam duas idéias fundamentais: por um lado, a rivalidade e o combate entre dois adversários no qual o resultado normal é a vitória do mais forte ou do mais hábil, e por outro, as regras, as normas que os competidores devem respeitar. Para este pesquisador francês, tem que se ter em conta ambas as ideias (rivalidade e regulamento) para definir algo que é inerente à mentalidade grega: o espírito agonístico.
Para M. Detienne (1968: 123) a guerra hoplítica e o agon tinham muito a ver. Segundo este autor, o combate entre falanges estava submetido a umas regras que tinham aspectos lúdicos: era um agon, ao mesmo tempo concurso e combate, prova e jogo. Convenções entre os adversários, eleição de um campo fechado, ereção de um troféu; tais eram algumas das regras essenciais do jogo da guerra.
Com o agon, a guerra hoplítica estava formada por uma série de normas e regras, assim como por celebrações e rituais. Assim, “a guerra agonística se traduzia em formalidades oficiais (...). Os deuses e os homens não exigiam só que a guerra fosse justificada, de sorte que se ativesse a uma série de regras; devia respeitar aos heraldos, os santuários, o enterro dos mortos depois de uma batalha, etc.” (Popowicz, 1995: 220-221).
Portanto, o agon pode, de algum modo, significar também “guerra”, já que esta conta com algumas regras, com uma competição e com uma vitória. Por outra parte, os agones atléticos, que se celebravam nos santuários, formavam parte do treinamento para a vida militar (Lonis, 1979: 27-29, 33-35; Cartledge, 1985: 112). Assim, Estrabão (X, 4, 16) considerava que os esportes e as danças armadas eram úteis para o treinamento na arte da guerra.
Portanto, esta guerra regrada tinha muito a ver com o agon. De fato, muitos combates rituais entre duas cidades vizinhas celebrados nos santuários podiam chegar a converter-se em autênticos enfrentamentos desenvolvidos em um campo de batalha. Como assinalou Angelo Brelich (1961: 83-84), em alguns festivais religiosos, celebrados em honra de Ártemis, tinham lugar cerimônias de iniciação, que incluíam combates rituais entre jovens de cidades vizinhas. Estas celebrações que tinham lugar em santuários situados na fronteira entre as poleis que combatiam, podiam chegar a converter-se em contendas reais em torno de uma fronteira e inclusive em autênticas batalhas entre duas comunidades (Vernant, 1991, 246, n. 11).
A guerra como agon tinha, portanto, um destacado sentido ritual, ainda que isto não signifique que a violência do combate fosse algo irreal. Assim, se definimos ritual como uma ação reiterada que tem lugar em um tempo e em um espaço assinalados pela tradição e que conta com algumas normas estabelecidas, podemos comprovar que tanto o agon como a guerra no mundo hoplita tem um espaço e tempo definidos (Políbio, XIII, 3, 6). O agon se celebra em um lugar, em um santuário, e em um tempo estipulado (por exemplo, celebrações dos Jogos Olímpicos, festividades em honra a uma divindade, etc.). A guerra hoplítica dos períodos arcaico e clássico (a agonística) tem também um espaço e um tempo limitados. Desta maneira, os hoplitas, muitas vezes de comunidades vizinhas, se enfrentavam em campanhas curtas e sangrentas, porém em um tempo e em um espaço limitados (Gabaldón Martínez, 2005: 16).
Krentz (2002) em sua investigação do estatuto verbal da guerra grega sugere que a ideologia da guerra do hoplita como uma contenda ritualizada não se desenvolveu no século VII a.C., mas só após 480 a.C., quando as armas não hoplitas começaram a ser excluídas da falange.
Reivindicações regulares de vitória na forma de troféus no campo de batalha, e concessões de derrota, na forma de requerimento para recuperar os cadáveres surgem em 460 a.C., segundo o autor.
Numa compilação de ensaios publicados em 1968, Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne e Jacqueline de Romilly falaram da guerra grega como umagon, uma competição, concebida como um torneio com cerimônias e regulamentos. Contudo não era inteiramente nova esta ideia logo difundida entre outros estudiosos franceses tais como Yvon Garlan e Raoul Lonis. Pierre Ducrey e W. Kendrick Pritchett colocam o assunto em base segura devido à meticulosa coleta de evidência de muitas práticas militares gregas, e Victor Davis Hanson descreve a miséria da batalha grega em detalhes, enquanto popularizou a idéia de que a guerra arcaica seguia protocolos verbais.
Josiah Ober fez a mais explícita tentativa de demonstrar as convenções verbais da guerra hoplítica. Em seu artigo “The rules of war in Classical Greece”, Ober lista uma dúzia de “costumes comuns (koina nomina) dos gregos”, que dirigiram conflitos interestaduais. Ele sustenta que estes estatutos desenvolveram-se depois que os épicos homéricos foram escritos por volta dos 700 a.C., e foram interrompidos por volta dos 450 a.C., especialmente durante a Guerra do Peloponeso.
Durante o período arcaico, os estatutos de guerra do hoplita “ajudaram a manter a longo termo o trabalho prático do sistema socio-militar dominante do hoplita” fazendo possíveis as guerras frequentes sem o risco de uma “catástrofe demográfica” (Ober, 1996: 60-61).
“Depois da criação da panóplia do hoplita” escreve Hanson (1995: 241), “por quase dois séculos e meio (700-480 a.C.) a batalha hoplítica foi a guerra grega”. Hanson atribui o colapso deste sistema admirável às Guerras Pérsicas e ao crescimento do império ateniense, uma geração antes da Guerra do Peloponeso.
Krentz (2002), em concordância com van Wees (2000: 155-156), coloca que algumas práticas retrocedem a Homero: juramentos, incluindo o juramentado como parte da negociação da rendição, eram respeitados; mensageiros, sacerdotes e suplicantes em santuários eram invioláveis, assim como os mortos em batalha sendo sepultados também o eram, e que outras práticas são antes consequências de táticas que de convenções, e que vários estatutos e práticas importantes aparecem somente no século V a.C.
Os combates tinham lugar em um momento do ano concreto, geralmente no verão; após decidir-se a batalha, como estava estabelecido, se intercambiavam os mortos de ambos os lados sob uma trégua e o vencedor honrava aos deuses levantando o troféu no campo de batalha e levando parte do botim aos santuários (Gabaldón Martínez, 2005: 16).
Para o hoplita, sua tradição e seu dever era a colisão ritualizada, lançando-se contra o inimigo, para resolver o litígio rapidamente e com eficácia (Hanson, 1989-4). “As batalhas entre hoplitas gregos eram lutas entre modestos terratenentes que por acordo mútuo tratavam de limitar a guerra (e as mortes) a um só enfrentamento breve e atroz” (Hanson, 1989, 4).
A guerra hoplítica do século VII a.C. ao V a.C., na qual a ação se concentrava em tempo e em espaço, contrária, portanto, às guerras totais onde a guerra se estendia a toda a população e durava um tempo ilimitado (Hanson, 1989,25), contava não só com formalidades estabelecidas, como também com um pesado equipamento militar apropriado para este tipo de campanhas breves (em tempo e em espaço), ao mesmo tempo que letais e sonoras (Gabaldón Martínez, 2005: 16).
Quando este modo de fazer a guerra foi substituído por outro no qual a contenda bélica se estendia socialmente e temporalmente, e no que os combatentes entre póleis passavam a lutar pela hegemonia, algumas destas formalidades e regras perderam parte de sua importância e alguns dos rituais inerentes à guerra agonística (como construir um troféu com as armas inimigas ou levá-las aos santuários) mudaram, provavelmente, de sentido. Com isso, não queremos dizer que a guerra deixará de estar caracterizada por um destacado fator religioso e que se deixarão de realizar rituais (que nunca desapareceram). Simplesmente, a guerra, e tudo o que a rodeava (táticas de combate, armamento, rituais,...) foi mudando a partir do século V a.C., especialmente a partir de sua segunda metade, porque as estruturas sociais e políticas também estavam transformando-se (crises da polis). Contudo, na guerra nunca se deixou de contar com os deuses e honrá-los no momento da vitória (Gabaldón Martínez, 2005: 17).
Em geral, a música e os cânticos deviam ser muito importantes no mundo da guerra. Os cânticos (como o pean, o canto apotropaico e de ação de graças), as danças, o ruído provocado com as armas e os gritos de guerra (Xenofonte, Anabasis, I, 8, 18; V, 2, 14) eram, além disso, uma forma de invocar aos deuses, especialmente a Ares/Enialio (Lonis, 1979, 120-121), e inclusive de provocar pânico e desconcerto entre os adversários; efeito psicológico que podia ser utilizado no combate (Pausânias, X, 20, 9).
As fontes iconográficas nos informam bem deste costume de utilizar a música no campo de batalha. Assim por exemplo, contamos com a cena do conhecido vaso Chigi, datada de meados do século VII a.C. do Museu de Villa Giulia em Roma (figura 1), onde um grupo de hoplitas com suas armas marcham ritmicamente ao som da música, talvez entoando algum cântico.
Ao terminar a contenda desenvolviam-se outras cerimônias (cantava-se o pean como ato de agradecimento, construía-se o troféu, recolhia-se os caídos, celebravam-se sacrifícios, etc.), todo o qual convertia, de fato, o campo de batalha em uma espécie de lugar ritualizado (Gabaldón Martínez, 2005: 19).
IV. Conclusão
Como vimos a religião ia de encontro com a guerra de inúmeras maneiras. Com freqüência os comandantes dos exércitos viam-se percorrendo passos simbólicos. Se a mitologia desempenhou sua parte na guerra, o mesmo aconteceu com o ritual. Era impensável iniciar uma expedição ou uma batalha sem realizar sacrifícios preliminares. Os antigos rituais e mitos se integravam e interagiam num contexto social mais amplo da sociedade grega.
A guerra agonística se fundamentava em uma série de regras e formalidades estabelecidas pela tradição. Era, além disso, uma guerra estacional baseada em campanhas limitadas, em espaço e tempo. Aqueles que alcançavam a vitória levantavam o troféu no campo de batalha e consagravam um dízimo do botim, especialmente as armas, aos deuses e o resto era levado para a cidade vencedora.
Vernant (1968: 10) observa que a guerra era vista como parte de um agon, isto é, do espírito de confronto que presidia não só às relações humanas como à própria natureza. O agon estava presente não só na rivalidade que as cidades mantinham entre si, mas nos Jogos, onde havia competições esportivas, musicais e literárias, nos processos do tribunal, nos debates da assembléia. A guerra não era a única ocasião propícia à expressão desse espírito "agonístico" herdado do espírito de competição (agon), mas ela apresenta-se a esse respeito como lugar privilegiado de realização de um ideal que impregnava o conjunto dos comportamentos cívicos.
Os rituais relacionados com a guerra constituem, sem dúvida, uma forma de coesão entre os hoplitas: se unem e cooperam na celebração das cerimônias como também o fazem no combate em formação. De igual modo, os deuses e os rituais são importantes para a integração na sociedade e a legitimação de certos valores e normas (Gabaldón Martínez, 2005: 19).
Portanto o espírito do agon de certo modo é inerente à mentalidade grega, era um modo de conceber a luta como um ritual, uma forma de conceber o mundo bélico. O entendimento da guerra antiga não pode ser separado de um estudo aprofundado da dinâmica social, seu verdadeiro significado deve ser buscado em seu estreito vínculo com quase todas as expressões da cultura helena, incluindo sua religiosidade e sua estrutura social, assim como, seu poder simbólico e suas implicações. A guerra é, portanto, um fenômeno social que têm, como outros aspectos de uma sociedade concreta, componentes sociais, religiosos, econômicos e políticos.
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[1] (Pós-doutoranda em Arqueologia Histórica MAE-USP)
Fonte: História e História
Disponível em:http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=76