Heródoto lê em público
A carruagem da aurora, a história chega para iluminar |
Como tantos outros intelectuais gregos, ele vivia no exílio, escolhendo a cidade de Turii na Magna Grécia ( sul da Itália) como seu abrigo e local onde encontrara tranqüilidade suficiente para redigir os nove livros que compunham o total do seu trabalho. Entre tantos pensadores, poetas e escritores, só ele foi capaz de captar o sentimento coletivo dos gregos, especialmente dos atenienses, em não deixar que o que ocorrera durante a invasão vinda da Ásia caísse no olvido. A leitura foi um sucesso. Pela cidade inteira comentou-se o acontecimento. Heródoto do dia para noite alcançou a imortalidade e fundou um novo gênero científico e literário.
Um novo gênero
O templo do Partenon ( ainda que não o famoso construído depois por Péricles) que acolhia a deusa protetora da cidade, fora destruído por um incêndio. Durante dois anos eles padeceram de temor e medo devido à presença dos bárbaros ocupando-lhes as cidades, as terras e rondado-lhes as águas.
Um quarto de século antes da leitura de Heródoto, ao redor de 472 a.C., o famoso trágico Ésquilo(525-456 a.C.) levara ao público uma peça intitulada Persai (Os Persas), para apontar as conseqüências da hybris, da soberba desmedida de um déspota, no caso o rei Xerxes, que comandara pessoalmente a campanha contra as cidades gregas, e como isso o levara à perdição e ao desespero.
O autor mesmo era um veterano das campanhas de Maratona, na qual perdeu seu irmão Kynegeiros, Artemísia, Salamina e Platéia, batalhas memoráveis nas quais lutou como hoplita, simples soldado de infantaria.
Mas era uma encenação e, com o tempo, provavelmente seria esquecida ou perdida como foi o caso do drama de Frínico A tomada de Mileto. Daí a importância dos livros de Heródoto, que hoje bem mereceriam ser classificados como história do presente, visto que os assuntos tratados, centrados ao redor das Guerras Medas, ou Guerras Persas (490-478 a.C.), ainda estavam bem presentes na memória da coletividade quando ele os redigiu.
Superando o Ciclo Mitológico (de cultura oral), e o Ciclo Épico (dominado pela Ilíada e a Odisséia), nascia com ele um novo gênero de expressão escrita que, se bem fosse aparentado com a poesia épica, especialmente com Homero, era algo diferente do que os gregos conheciam.
Não se tratava de deuses, de titãs ou de heróis sobre-humanos, mas sim uma escrita em prosa que expunha gente de carne e osso, pessoas com os defeitos e as virtudes comuns aos mortais, Coube a ele, pois, fazer a transição final do plano divino e do plano heróico para o plano humano. Com Heródoto surgiu uma verdadeira dinastia de historiadores gregos que, seguidos por Tucídides, Xenofonte, Políbio e Plutarco, somente se encerrou séculos depois com a obra de Zózimo (historiador bizantino do século V, autor da Historia Nova).
Um método de investigação
Não que ele renunciasse a uma história fantástica desde que ela servisse para esclarecer ou melhor ilustrar algum acontecimento que lhe pareceu fabuloso. Recorreu tanto a testemunhos oculares como escritos, forrando-se por igual da literatura que de algum modo tivesse algo a haver com o que estava pesquisando, não se furtando em fazer suas próprias considerações e observações sobre muitos dos episódios. Intervenção que ele denominou de gnómai.
É de supor-se que os nomes de Milcíades e de Temístocles, vencedores de Maratona e Salamina; de Pausânias, o chefe espartano que derrotou os persas em Platéias; do heróico rei Leônidas que, junto com 300 dos seus, tentou deter os invasores nas Termópilas, fizessem parte da sua infância. Eles, de certo modo, substituíram a altura os mitológicos heróis de Tróia, tão íntimos da maioria dos jovens gregos, com a vantagem de serem de carne e ossos, portanto, mais próximos deles.
Além disso, os heróis retratados por Heródoto não recebiam nenhuma visita alada ou viram-se, num repente, brindados por um impulso divino que os auxiliassem em meio à batalha a dar um fim num inimigo, tal como ocorria com os mitológicos varões de Homero. É o homem enfim, ainda que atormentado por augúrios, sonhos, previsões e assombrações, quem ocupa a posição central da obra dele.O cenário de Heródoto
Para os gregos seus contemporâneos foi uma narrativa maravilhosa, algo assim como o livro de viagens de Marco Pólo fora para os leitores da Idade Média, isolados em suas cidades amuralhadas ou em castelos afastados de tudo. Lendo Heródoto, o horizonte deles alargou-se para os confins do mundo. As fantasias sobre outras terras e nações atiçaram-se, aumentando-lhes a curiosidade e o interesse.
Além das províncias vizinhas à Grécia, ele descreveu a Lídia, a Pérsia, a Mesopotâmia, o Egito, a Líbia, alcançando até a Índia. Para um povo diligente de marinheiros, artesãos e artistas, que agora se vira livre da presença dos persas nas águas do Egeu, com amplas possibilidades de expandir seus negócios e produtos por boa parte do Mediterrâneo, ele descortinou um outro universo. Como se apresentasse a eles a face oculta de Marte.
Não se tratava de relatos esparsos de um caminhante andando a esmo ou de um peregrino atrás de um santuário ou de um oráculo, mais sim de um estudioso, alguém sério interessado em levantar as medidas reais das distâncias e descrever o melhor possível, ao longo de quase 1.400 páginas, tudo o que pudera ver ou que ouvira falar em meio a tantos povos estranhos.
Ainda que fascinante, a orbe de Heródoto era simples. No mapa mundi dele só existia a Europa, a Ásia e a África, tudo cercado pela água, sendo que a humanidade, termo desconhecido na época, dividia-se entre gregos, bárbaros e monstros (populações que viviam na periferia da terra sobre as quais pouco se sabia).
A guerra entre gregos e persas era inevitável
Estava condenado pela dinâmica das coisas a sempre buscar a expansão, e, por conseguinte, a colidir com seus vizinhos, ambicionando abocanhar cada vez mais e mais. A guerra que por fim deflagrou-se entre os Grandes Reis e as polis gregas de certo modo foi inevitável na medida em que ambos representavam universos hostis em conflito.
Politicamente nada os aproximava. As polis gregas obedeciam a constituições, sendo que nem mesmo um tirano não ousava ir muito além das normas estabelecidas pela Nous ( Lei). Os cidadãos, os habitantes das polis, sentiam-se livres para fazer o que bem entendessem e podiam mudar-se da cidade quando quisessem, fosse para ir colonizar outras terras ou abrir feitorias comerciais em lugares distantes. O particularismo local, múltiplo, cultivado com ardor, era a tônica da vida na Hélade.
Já os súditos dos Grandes Reis estavam submetidos a um déspota. Não tinham nada de si que não pudesse ser confiscado ou expropriado pelo monarca ou pelo sátrapa que o representava na província. Um Ciro, um Dario ou um Xerxes, formados na escola do despotismo oriental, mandavam em tudo, exigindo obediência irrestrita em todas as partes.
A excessiva autoridade ao dispor deles tornava forçosa a sensação deles sentirem-se deuses onipotentes. Viram-se assim facilmente tentados a incorrer no pecado da hybris, na desmedida, provocada pelo excesso de orgulho. Nada havia legalmente, nem assembléia ou norma constitucional, que pudesse conter ou moderar a vontade do rei. Somente o seu caráter e inclinação o temperavam.
Por conseguinte, o Mundo Grego e o Mundo Bárbaro estavam destinados a se desafiarem numa luta de vida e morte. Não se tratava de uma rivalidade racial ou cultural, mas sim de estruturas políticas e existenciais francamente antagônicas que não podiam ocupar o mesmo espaço.
A dialética do poder dos reis persas, ao mesmo tempo concentracionário e expansionista, chocou-se com a energia difusa da política imigratória e com os negócios lucrativos das polis gregas. A guerra para Heródoto, portanto, tinha motivação claramente humana e institucional. Não era uma desgraça tramada lá do alto do Olímpo por deuses vingativos ou invejosos, tomados pelo phthónos, sempre prontos em querer infelicitar os homens.
No capitulo final da História, Heródoto (Livro IX, CXXII) reproduz uma fala de Artembares, um conselheiro e ministro de Ciro, o grande, que expõe claramente o destino imperialista que governa os reis:
"Já que Zeus deu aos persas o Império, e a ti, oh Ciro (...) te concedeu o mando com preferência a todos os homens, o que fazemos nós que não sairmos do nosso pequeno e áspero pais para nos transladarmos para uma outra terra mais preferível? Temos a nossa disposição muitas províncias vizinhas e muitas outras distantes, melhores todas do que o nosso solo, e está acertado que pela razão as melhores são para quem tem o domínio. E qual ocasião será mais oportuna do que aquela que temos no presente, quando nos achamos mandando em tantas nações da Ásia toda?"
Se Ciro ainda preferiu continuar governando a árida terra da Pérsia, seus sucessores não pensaram o mesmo, lançando seus regimentos e seus generais para todo os cantos que pudessem, indo assim trombar com as falanges dos gregos.
Características gerais da historiografia grega
Heródoto e Tucídides |
De fato, a partir dele – que bem merece estar no Panteão dos grandes literatos de todos os tempos - fixaram-se certas características metodológicas e de apresentação que, tal como o Cânon de Policleto para os escultores e demais artistas, iriam se repetir por todos os livros de história relevantes que lhe seguiram, as quais podem ser arroladas do seguinte modo: a) a historia escrita pelos gregos apresenta uma multiplicidade de gêneros nos quais se misturam a história da Hélade, a local, a universal, com a vida dos personagens, seus discursos e sua ação. A isso se soma a historia constitucional e outros subgêneros que vem enriquecer a narrativa geral, sem omitir relatos particulares, trágicos ou cômicos, que humanizam as ações narradas; b) o conceito de história é para eles muito amplo, abarcando não somente os aspectos político-militares, mas por igual às descrições geo-etnográficas, mitológicas e religiosas; c) seguem uma apresentação própria, com um proêmio, uma apresentação da metodologia e a divisão cronológica dos livros; d) a narrativa é sempre intencional; não somente preocupa-se em registrar os feitos memoráveis do passado para imortalizá-los como usá-los como lições dos tempos, fazendo dela, da história, a disciplina por excelência dos príncipes e dos estadistas, isto é "a mestra da vida"; e) ela era também a sobrevivência da memória, a luz da verdade, motivada pelo afã do conhecimento e da informação, preocupada em relatar o que realmente ocorrera; f) tinha pretensões científicas. Não somente comprometia-se em contar a verdade como expurgar da narrativa o não-comprovado, superstições ou falsidades que não mereciam acolhida, recorrendo sempre que possível a informações diretas de testemunhos confiáveis ou de escritos comprovadamente autênticos; g) mesmo que o autor tivesse posições políticas e ideológicas (palavra inexistente na época) claramente definidas, isto é, eram monarquistas ou democratas, gregos ou romanos, de uma ou de outra cidade, se mantinham firmes no intento de sempre contar a verdade; h) em geral buscava escrever sobre o presente [Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso] ou sobre o passado não muito distante [Heródoto sobre as Guerras Persas]. Não era possível naquele tempo recorrer a fontes muito antigas visto que desconheciam as técnicas da diplomacia, da numismática e da arqueologia que surgiram bem depois; i) pretendiam alcançar as causas ocultas dos fenômenos estudados, buscar o porque das coisas, geralmente o que não era perceptível ao olho e a razão imediata, tanto como apurar as responsabilidades das partes envolvidas nos episódios narrados; j) sentiam-se pertencentes a uma linhagem de historiadores, cada um deles comprometidos em levar a diante a narrativa de onde o anterior parara [Xenofonte segue Tucídides, Políbio completa Timeu, Posidônio leva a diante o que Políbio deixara].
Trata-se de uma história permanente que se ocupa do mundo greco-romano e suas vizinhanças que vai das Guerras Persas até a destruição de Roma por Alarico no ano de 410, narrada na Nova Historia do bizantino Zózimo. Por tanto, são quase mil anos de prosa histórica que cobre desde os primórdios da ascensão de Atenas até o colapso final da civilização pagã.
Os Nove Livros de História
Xerxes assiste o naufrágio da sua esquadra em Salamina |
Livro Dois (Euterpe): Geografia e zoologia do Egito. Costumes, liturgia fúnebre, a mumificação e história do Egito [ logos 4,5 e 6]
Livro Três (Tália): a história de Cambises; a conquista do Egito e a loucura do rei; o mago Esmerdis conspira e sobe ao poder; o golpe de estado de Magiano e Dario; as satrápias do império persa; descrições da Arábia e da Índia: rebelião na Babilônia contra a Pérsia: a crise de Samos [logos7,8 e 9]
Livro Quatro (Melpômene): o país e os costumes dos Citas: a circunavegação da África: a desastrada campanha dos persas contra os Citas: persas conquistam a Lídia[logos 10,11 e 12]
Livro Cinco (Terspsícore): generais persas assolam regiões da Europa: Mileto revolta-se contra eles e pede socorro a Atenas: crise do regime da tirania em Atenas: gregos coligados atacam a ilha de Sardes: Dario jura vingança contra eles(começo das Guerras Greco-Persas)[logos 13, 14, 15 e 16]
Livro Seis (Erato): Pérsia reconquista a Grécia Jônia: deslocamento da esquadra para Atenas: vitória dos atenienses na batalha de Maratona: ascensão e julgamento de Milcíades, o vitorioso de Maratona[logos 17, 18 e 19]
Livro Sete (Polimnia): Dario é sucedido por Xerxes; canal de Atos sobre o Helesponto; a invasão da Grécia Continental;formação da Confederação Helênica defensiva, cidades e ilhas que não ajudam; Leônidas e 300 espartanos na defesa do desfiladeiro de Termópilas[logos 20, 21 e 22]
Livro Oito (Urânia): batalha naval de Artemísia: Atenas evacua a população para Salamina; Xerxes ocupa Atenas e incendeia a acrópole;Temístocles lidera os gregos na vitoriosa batalha de Salamina; general Mardônio assume o comando persa depois da retirada de Xerxes derrotado [ logos 23, 24 e 25]
Livro Nove (Calíope):manobras de Mardônio até enfrentar os gregos na batalha de Platéia; fuga dos persas derrotados; resistência inútil dos persas em Micala; rebelião geral dos jônicos contra os persas: o manto de Xerxes: contra-ofensiva geral dos gregos contra os persas reconquista regiões antes perdidas [logos 26,27 e 28]
(*) Este ordenamento em nove livros, cada um deles com o nome de uma musa, subdivididos em 28 logos, em narrativas ordenadas em parágrafos, não teria sido obra de Heródoto, mas sim de seus admiradores feita bem mais tarde.
Fonte: Voltaire e Schilling
Disponível em:http://educaterra.terra.com.br/voltaire/