Era como se todos os riachos que foram os comícios passados estivessem confluindo em um grande mar de gente. Os mais deslumbrados calculavam cerca de dois milhões no Vale do Anhangabaú (SP) naquele 17 de abril de 1984. Grande, o exagero talvez acompanhasse a expectativa. A Câmara dos Deputados iria votar a Emenda Dante de Oliveira em breve. Prevendo a restauração das eleições diretas presidenciais, o projeto resumia a vontade popular de retorno à democracia. Era a principal esperança daqueles que foram à maior manifestação política da história do país.
Com Brasília sitiada, a maioria dos parlamentares presentes se manifestou a favor da proposta de Dante. Foram 298 votos pró-Diretas contra 65, além de três abstenções. Mas não havia motivo para comemorações. Estrategicamente, nada menos que 112 deputados não foram àquela importante plenária e a proposta não conseguiu a aprovação de dois terços da Casa, exigência requerida para emendas constitucionais. “A pressão militar em Brasília era muito grande. O voto era aberto e foi proibida qualquer manifestação. Eu sabia que mesmo que passasse na Câmara, não passaria no Senado, mas o clima geral era de otimismo”, lembra o ex-deputado Fernando Lyra, que participou da histórica sessão como primeiro secretário da Câmara.
Segundo Lyra, a Emenda foi uma iniciativa pessoal de Dante de Oliveira, que estava em seu primeiro mandato. “Sempre brincava com ele dizendo que ele tinha mau preparo físico no Congresso. Mas, logo no primeiro dia que Ulysses tomou posse como presidente da Câmara, ele entregou o projeto”, diz o autor do livro recém-lançado ‘Daquilo que eu sei: Tancredo e a transição democrática’.
Se o projeto de lei foi uma expressão individual, a luta pelas eleições diretas foi obra de uma multidão. Ela ocorreu gradualmente, começando a ganhar força entre o final da década de 70 e o início dos anos 80, em especial por conta das greves operárias no ABC, o fim do AI-5 e a campanha pela anistia. Nem mesmo a derrota na Câmara foi capaz de parar o movimento.
Um ano depois da rejeição da Emenda, o Brasil voltaria a ter um presidente civil, ainda que eleito indiretamente. “De um certo ângulo, a campanha de Tancredo deslanchou aproveitando a correnteza do rio das Diretas Já. Ele incorporou aquele clima de campanha, foi às ruas e fez comícios em vários lugares”, analisa a historiadora da PUC-MG Lucília Neves.
A abertura premeditada
Porém, o barco da candidatura de Tancredo já estava sendo preparado antes mesmo das águas das ‘Diretas Já’ correrem as ruas brasileiras. Atuando na época como coordenadora da editoria de política do Jornal do Brasil na capital do país , a jornalista Eliane Cantanhêde recorda: - Se a Emenda fosse aprovada, o candidato imbatível seria Ulysses Guimarães, mas uma eleição indireta exige muito acordo, muito conchavo nos bastidores.
Fernando Lyra participou ativamente deste processo, ao lado do futuro eleito. No início de 1983, ambos já trabalhavam na construção de um consenso em torno de Tancredo. A estratégia era procurar uma aproximação com setores de direita favoráveis à abertura. “Meu candidato era ele, independente da eleição ser direta ou não”, afirma Lyra, que tentou a vice-presidência da República na chapa de Brizola em 1989.
Em 1985, a agremiação governista Partido Democrático Social (herdeiro da ARENA) se dividiu e deu origem ao Partido da Frente Liberal, em especial por conta das divergências entre Paulo Maluf e José Sarney. Enquanto o primeiro tentou chegar ao Palácio do Planalto através do PDS, Sarney se desligou do partido e apoiou a aliança que elegeu Tancredo como presidente e a si mesmo como vice. “Parte da direita aderiu porque discordava dos rumos do regime militar e não aceitava a candidatura de Maluf, que já era identificado com o que há de mais corrupto e reacionário”, comenta Cantanhêde.
Com a morte de Tancredo antes da posse, Sarney assumiu a presidência em 1985 e cumpriu com os compromissos de abertura política que assumira, como a convocação de eleições diretas para todos os cargos e a convocação da Assembléia Constituinte.
Onde deságua a foz das Diretas
Mesmo com a abertura, as águas das ‘Diretas Já’ seguiram seus rumos e levaram dois ribeirinhos de destaque à presidência da República. “Naquela época, se alguém falasse que Fernando Henrique Cardoso iria ser eleito e Lula seria seu sucessor, todo mundo riria. Os dois eram bastante avançados. Eu achava que o Brasil demoraria muito mais tempo para ter um processo político capaz de absorver figuras como eles”, diz Eliane Cantanhêde.
Já Fernando Lyra afirma que “a partir do próximo presidente, começará uma nova fase. Para consolidar a democracia ainda precisamos enfrentar algumas coisas, mas a eleição de 2010 é o início de uma nova era”.
A chegada de um ex-líder sindical à presidência parece ser a prova inconteste da solidez democrática brasileira. Porém, se censura e votos indiretos são coisas do passado, isso não significa que não há avanços necessários para garantir a plena participação política de todos. Ainda que sem medalhas militares no peito, velhos coronéis dos tempos da ditadura continuam decidindo os rumos do país em Brasília, como os já citados Paulo Maluf e José Sarney, além de Fernando Collor.
O esquecimento pareceu acometer ainda a Folha de S. Paulo. Reconhecido como o veículo de imprensa que mais apoiou as ‘Diretas Já’, a Folha denominou de “ditabranda” o regime militar brasileiro em um editorial recente com críticas ao governante venezuelano Hugo Chávez. Sobre o assunto, Lucília Neves tece críticas o jornal: - Isso foi uma infelicidade, mas nada é gratuito. Os chamados atos falhos traduzem alguma forma de pensamento mais consolidada. Usar esse termo é qualificar de forma positiva algo que não pode ser admitido como tal. Se há ditadura, não há brandura.
Com Brasília sitiada, a maioria dos parlamentares presentes se manifestou a favor da proposta de Dante. Foram 298 votos pró-Diretas contra 65, além de três abstenções. Mas não havia motivo para comemorações. Estrategicamente, nada menos que 112 deputados não foram àquela importante plenária e a proposta não conseguiu a aprovação de dois terços da Casa, exigência requerida para emendas constitucionais. “A pressão militar em Brasília era muito grande. O voto era aberto e foi proibida qualquer manifestação. Eu sabia que mesmo que passasse na Câmara, não passaria no Senado, mas o clima geral era de otimismo”, lembra o ex-deputado Fernando Lyra, que participou da histórica sessão como primeiro secretário da Câmara.
Segundo Lyra, a Emenda foi uma iniciativa pessoal de Dante de Oliveira, que estava em seu primeiro mandato. “Sempre brincava com ele dizendo que ele tinha mau preparo físico no Congresso. Mas, logo no primeiro dia que Ulysses tomou posse como presidente da Câmara, ele entregou o projeto”, diz o autor do livro recém-lançado ‘Daquilo que eu sei: Tancredo e a transição democrática’.
Se o projeto de lei foi uma expressão individual, a luta pelas eleições diretas foi obra de uma multidão. Ela ocorreu gradualmente, começando a ganhar força entre o final da década de 70 e o início dos anos 80, em especial por conta das greves operárias no ABC, o fim do AI-5 e a campanha pela anistia. Nem mesmo a derrota na Câmara foi capaz de parar o movimento.
Um ano depois da rejeição da Emenda, o Brasil voltaria a ter um presidente civil, ainda que eleito indiretamente. “De um certo ângulo, a campanha de Tancredo deslanchou aproveitando a correnteza do rio das Diretas Já. Ele incorporou aquele clima de campanha, foi às ruas e fez comícios em vários lugares”, analisa a historiadora da PUC-MG Lucília Neves.
A abertura premeditada
Porém, o barco da candidatura de Tancredo já estava sendo preparado antes mesmo das águas das ‘Diretas Já’ correrem as ruas brasileiras. Atuando na época como coordenadora da editoria de política do Jornal do Brasil na capital do país , a jornalista Eliane Cantanhêde recorda: - Se a Emenda fosse aprovada, o candidato imbatível seria Ulysses Guimarães, mas uma eleição indireta exige muito acordo, muito conchavo nos bastidores.
Fernando Lyra participou ativamente deste processo, ao lado do futuro eleito. No início de 1983, ambos já trabalhavam na construção de um consenso em torno de Tancredo. A estratégia era procurar uma aproximação com setores de direita favoráveis à abertura. “Meu candidato era ele, independente da eleição ser direta ou não”, afirma Lyra, que tentou a vice-presidência da República na chapa de Brizola em 1989.
Em 1985, a agremiação governista Partido Democrático Social (herdeiro da ARENA) se dividiu e deu origem ao Partido da Frente Liberal, em especial por conta das divergências entre Paulo Maluf e José Sarney. Enquanto o primeiro tentou chegar ao Palácio do Planalto através do PDS, Sarney se desligou do partido e apoiou a aliança que elegeu Tancredo como presidente e a si mesmo como vice. “Parte da direita aderiu porque discordava dos rumos do regime militar e não aceitava a candidatura de Maluf, que já era identificado com o que há de mais corrupto e reacionário”, comenta Cantanhêde.
Com a morte de Tancredo antes da posse, Sarney assumiu a presidência em 1985 e cumpriu com os compromissos de abertura política que assumira, como a convocação de eleições diretas para todos os cargos e a convocação da Assembléia Constituinte.
Onde deságua a foz das Diretas
Mesmo com a abertura, as águas das ‘Diretas Já’ seguiram seus rumos e levaram dois ribeirinhos de destaque à presidência da República. “Naquela época, se alguém falasse que Fernando Henrique Cardoso iria ser eleito e Lula seria seu sucessor, todo mundo riria. Os dois eram bastante avançados. Eu achava que o Brasil demoraria muito mais tempo para ter um processo político capaz de absorver figuras como eles”, diz Eliane Cantanhêde.
Já Fernando Lyra afirma que “a partir do próximo presidente, começará uma nova fase. Para consolidar a democracia ainda precisamos enfrentar algumas coisas, mas a eleição de 2010 é o início de uma nova era”.
A chegada de um ex-líder sindical à presidência parece ser a prova inconteste da solidez democrática brasileira. Porém, se censura e votos indiretos são coisas do passado, isso não significa que não há avanços necessários para garantir a plena participação política de todos. Ainda que sem medalhas militares no peito, velhos coronéis dos tempos da ditadura continuam decidindo os rumos do país em Brasília, como os já citados Paulo Maluf e José Sarney, além de Fernando Collor.
O esquecimento pareceu acometer ainda a Folha de S. Paulo. Reconhecido como o veículo de imprensa que mais apoiou as ‘Diretas Já’, a Folha denominou de “ditabranda” o regime militar brasileiro em um editorial recente com críticas ao governante venezuelano Hugo Chávez. Sobre o assunto, Lucília Neves tece críticas o jornal: - Isso foi uma infelicidade, mas nada é gratuito. Os chamados atos falhos traduzem alguma forma de pensamento mais consolidada. Usar esse termo é qualificar de forma positiva algo que não pode ser admitido como tal. Se há ditadura, não há brandura.
Fonte: Revista História