Artigo de José D’Assunção Barros
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor de História nos Cursos de Graduação e Mestrado da Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras. Autor dos livros O Campo da História – especialidades e abordagens (Petrópolis: Vozes, 2005) e O Projeto de Pesquisa em História (Petrópolis: Vozes, 2005).
A História, neste início de milênio, divide-se em inúmeras modalidades que fazem do ofício dos historiadores contemporâneos um universo vasto e complexo. Ouve-se falar em História Cultural, em História das Mentalidades, em História do Imaginário, em Micro-História, em História Serial, em História Quantitativa ... o que define estes e tantos outros campos? Quais as possibilidades de intercombinações entre os vários subcampos historiográficos diante da constituição de um objeto de estudo? O que nos habilita a falar em campos intradisciplinares específicos para estas várias modalidades do saber histórico, quais as suas singularidades, suas interpenetrações umas com as outras, suas relações interdisciplinares, suas fontes e objetos privilegiados? Essas questões – que não poderiam ser obviamente respondidas todas no espaço de um artigo somente, principalmente porque seriam muitas e muitas as modalidades historiográficas a serem consideradas – foram recentemente objeto de obra mais específica e alentada1. Contudo, algumas considerações sobre o tema fazem-se oportunas nestes tempos de multiplicação das modalidades historiográficas.
Obviamente que a multiplicação e desdobramento do saber historiográfico em um diversificado e complexo espaço intradisciplinar guarda relações importantes com fenômenos que vão da hiper-especialização dos saberes contemporâneos à crise dos paradigmas totalizantes de compreensão do mundo. Para além disto, no contexto de uma indústria livresca que multiplica seus produtos ao sabor das tendências de mercado, a historiografia também encontra seu espaço multi-fragmentado nas prateleiras de livrarias direcionadas para os diversos tipos de consumidor e para atender às inúmeras demandas e modas editoriais. Mas, à parte estes desdobramentos que se relacionam aos efeitos de mercado, de modo geral pode-se dizer que a subdivisão da História em variadas especialidades internas é essencialmente resultado dos próprios desenvolvimentos da historiografia a partir do século XX, que de fato se tornou mais complexa, mais rica, mais abrangente, mais audaciosa na escolha de seus objetos de estudo e de suas fontes de conhecimento.
Não pretendemos discutir neste artigo esse contexto mais amplo que envolve a multidiversificação interna da História – o que de resto seria uma questão fascinante – mas sim esclarecer os pontos centrais que envolvem a possibilidade de compreendermos com mais precisão e clareza o espaço interno da historiografia nos dias de hoje.
Uma das teses centrais desenvolvidas no trabalho acima citado é a de que existem fundamentalmente três grandes grupos de critérios que presidem a divisão da História em modalidades mais específicas, e de que muito da confusão sobre o que é uma sub-especialidade ou o que é outra, ou sobre como enquadrar uma dada obra historiográfica neste vasto e complexo caleidoscópio de sub-especialidades que coincide com o campo disciplinar da História, está no fato de que algumas coletâneas de balanceamentos historiográficos misturam inadvertidamente tais critérios de classificação sem alertar devidamente o leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior clareza sobre a rede de modalidades que organiza o pensamento historiográfico na atualidade2.
Multiplicam-se nos tempos recentes obras onde são oferecidas aos leitores mais especializados grandes coletâneas de vários ensaios sobre sub-campos historiográficos mais específicos – geralmente constituídas de capítulos escritos por diversos autores – onde são discutidos os fazeres historiográficos, os seus campos de ação, as especializações internas que se abrem ao ofício do historiador moderno. Estas obras – geralmente de grande valor para os estudantes de história, para os historiadores profissionais, ou mesmo para o leitor não-especializado que deseja compreender como os historiadores trabalham – costumam apresentar ao leitor capítulos sobre a História Cultural, a História dos Marginais, a História Urbana, a História Política, a História do Corpo, a História Vista de Baixo, e assim indefinidamente.
Fala-se por exemplo em uma História Demográfica ou em uma História Política, noções que se referem a ‘dimensões’ ou a fatores que ajudam a definir a realidade social (a população, o poder); fala-se de uma História Oral ou de uma História Serial, que são classificações da História que remetem ao tipo de fontes com as quais elas lidam ou às ‘abordagens’ que os historiadores utilizam para tratar estas fontes (a entrevista, a serialização de dados); fala-se da Micro-História ou da História Quantitativa, que são classificações relativas aos campos de observação abordados pelo historiador (a micro-realidade, o número); fala-se em uma História das Mulheres ou em uma História dos Marginais, que são classificações relacionadas aos ‘sujeitos’ que fazem a História (a Mulher, o Marginal); fala-se em uma História Rural ou em uma História Urbana, que são subdivisões relativas aos ‘ambientes sociais’ examinados pelo historiador (o Campo, a Cidade); fala-se de uma História da Arte ou de uma História da Sexualidade, que são âmbitos associados aos ‘objetos’ considerados na pesquisa histórica (a Criação Artística, o Sexo). Poder-se-ia falar ainda em uma História Vista de Baixo, para simbolizar uma inversão de perspectiva em relação à tradicional historiografia que partia do poder dominante, e até em uma História Imediata, modalidade historiográfica em que o autor é ao mesmo tempo historiador e personagem dos acontecimentos que descreve ou analisa.
Todos estes exemplos constituem legítimas especialidades da História. Mas as dificuldades começam a se mostrar quando estas várias classificações, oriundas de critérios bem diferentes e estranhos entre si, são misturadas indiscriminadamente para organizar os vários “lotes” da História.
O ‘Quadro 1’ foi elaborado com o intuito de organizar estes critérios – distribuindo-os em ‘dimensões’, ‘abordagens’ e ‘domínios’ da História – e buscando esclarecer as várias divisões que estes critérios podem gerar. De certo modo, as três ordens de critérios correspondem a divisões da História respectivamente relacionadas a “enfoques”, “métodos” e “temas”. Uma dimensão implica em um tipo de enfoque ou em um ‘modo de ver’ (ou em algo que se pretende ver em primeiro plano na observação de uma sociedade historicamente localizada); uma abordagem implica em um ‘modo de fazer a história’ a partir dos materiais com os quais deve trabalhar o historiador (determinadas fontes, determinados métodos, e determinados campos de observação); um domínio corresponde a uma escolha mais específica, orientada em relação a determinados sujeitos ou objetos para os quais será dirigida a atenção do historiador (campos temáticos como o da ‘história das mulheres’ ou da ‘história do Direito’).
A chave para compreender os vários campos da História, conforme a argumentação que desenvolvemos na referida obra, estaria em distinguir muito claramente as divisões que se referem a dimensões (enfoques), as divisões que se referem a abordagens (ou modos de fazer a História), e as intermináveis divisões que se referem aos domínios (áreas de concentração em torno de certas temáticas e objetos possíveis). Vejamos esse grande panorama de possibilidades mais de perto.
Para registrarmos algumas exemplificações, podemos dizer que o primeiro grupo de critérios que gera divisões internas na disciplina histórica – e que se refere ao que chamamos de dimensões – corresponde àquilo que o historiador traz para primeiro plano no seu exame de uma determinada sociedade: a Política, a Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante. Desta maneira, teríamos na História Econômica, na História Política, na História Cultural ou na História das Mentalidades campos do saber histórico relativos às dimensões ou aos enfoques do historiador. Um historiador cultural, por exemplo, estuda os fatos da cultura; um historiador político estuda o poder nas suas múltiplas formas; um historiador demográfico orienta o seu trabalho em torno da noção que lhe é central de “população”.
O segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é o que chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos tipos de fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o historiador. São divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História Serial, a Micro-História e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes orais e depende de técnicas como a das entrevistas; a História Serial trabalha com fontes seriadas – documentação que apresente um determinado tipo de homogeneidade e que possa ser analisada sistematicamente pelo historiador. A Micro-História refere-se a abordagens que reduzem a escala de observação do historiador, procurando captar em uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos historiadores que trabalham com um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou mais distanciado. Também a História Regional poderia ser classificada como modalidade historiográfica ligada a uma abordagem, no sentido de que elege um campo de observação específico para a construção da sua reflexão ao construir ou encontrar historiograficamente uma “região”. Examinando um espaço de atuação onde os homens desenvolvem suas relações sociais, políticas e culturais, a História Regional viabiliza através de sua abordagem um tipo de saber historiográfico que permite examinar uma ou mais destas dimensões nesta região que pode ser analisada tanto no que concerne aos seus desenvolvimentos internos, como no que se refere à sua inserção em universos mais amplos.
Para além das modalidades que se relacionam a dimensões e abordagens, podemos pensar divisões da História que chamaremos de domínios, e que se referem a campos temáticos privilegiados pelos historiadores. Poderemos neste momento refletir sobre os vários domínios da História que têm surgido e desaparecido no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a História. Estamos falando de domínios quando nos referimos a uma História da Mulher, a uma História do Direito, a uma História de Sexualidade, a uma História Rural, ou a uma História da Vida Privada. Tentaremos esclarecer a seguir este grupo de critérios.
Os domínios da História são na verdade de número indefinido. Alguns domínios podem se referir aos ‘agentes históricos’ que eventualmente são examinados (a mulher, o marginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos ‘ambientes sociais’ (rural, urbano, vida privada), outros aos ‘âmbitos de estudo’ (arte, direito, religiosidade, sexualidade), e a outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenas indicativos de uma quantidade de campos que não teria fim, e qualquer um poderá começar a pensar por conta própria as inúmeras possibilidades.
Tal como dissemos, os critérios de classificação que estabelecem domínios da História referem-se primordialmente às temáticas (ou campos temáticos) escolhidas pelos historiadores. São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais se inscreverá o objeto de investigação e a problemática constituídos pelo historiador.
A maioria dos domínios históricos presta-se a historiadores que trabalham com diferentes dimensões históricas, e certamente abre-se às várias abordagens. Mas existem domínios que têm mais afinidade com uma determinada dimensão, dada a natureza dos temas por eles abarcados. Assim, a História da Arte ou a História da Literatura podem ser eventualmente consideradas sub-especialidades da História Cultural (embora se deva chamar atenção para uma História Social da Arte, ou uma História Social da Literatura, que não deixam de ser possibilidades dentro da História Social).
De modo análogo, um domínio como o da História das Imagens (entendida como história das imagens visuais obtidas a partir de fontes iconográficas, fotográficas, etc) é quase que um desdobramento da História do Imaginário. Mas, bem entendido, uma série de imagens visuais tomadas como fontes históricas sempre poderá dar a perceber qualquer das dimensões que discutimos atrás, como a História Econômica, a História Política, a Geo-História ou a História da Cultura Material. Pense-se em uma iluminura de Livro de Oras, [Horas] da qual o historiador lança mão para perceber aspectos da economia rural no ocidente medieval, as suas representações políticas, as relações do homem medieval com o seu meio natural ou traços de sua cultura material; ou pense-se em uma pintura impressionista utilizada para captar aspectos da História Social na Belle Époque; ou ainda nas cerâmicas gregas utilizadas para levantar aspectos da História Política da Atenas da Antigüidade Clássica. Mas de uma maneira ou de outra, em todos estes casos sempre estará ocorrendo um diálogo evidente da História do Imaginário com uma destas outras dimensões.
Também a História das Representações, por motivos análogos, sempre terá intimidade com o campo definido como História do Imaginário, embora também se abra a uma História das Mentalidades e certamente à História Cultural. Já a História do Cotidiano, ou a História da Vida Privada, abrem-se a inúmeros campos de enfoques para além da História das Mentalidades, como a História da Cultura Material, a História Social a História Econômica ou a História Política (neste último caso, focando a questão dos micropoderes). Raciocínio análogo pode ser encaminhado para outros domínios igualmente abertos, como a História das Religiões ou a História da Sexualidade.
Conforme vemos, os domínios tendem a ser englobados por uma dimensão (são poucos os casos) ou então partilhados preferencialmente por duas ou mais dimensões. Mas é possível ainda que algum campo que hoje esteja sendo tratado como ‘domínio’, mas que possua uma abrangência em potencial, possa vir a transformar-se futuramente em uma ‘dimensão’. A História da Sexualidade tem sido pouco estudada em relação à importância da sexualidade para a vida humana na concretude diária, e é talvez isto o que lhe dá um status de domínio. Mas seguramente esta poderia ser vista como uma dimensão tão fundamental como a Economia, a Política ou as Mentalidades. O que ocorre é que estas não apenas são dimensões significativas que definem a vida humana, elas constituem na verdade ‘macro-campos’, ou tornaram-se ‘macro-campos’ devido à atenção que lhes prestaram os historiadores e outros pensadores.
Vale lembrar ainda que, quando falamos em uma dimensão historiográfica, teremos sempre em conta aquilo que, de modo irredutível, é intrínseco da vida humana, inseparável e não-casual em nenhuma instância. Ao nascer, um ser humano já se encontra automaticamente inscrito em uma determinada relação com a sociedade. Poderá modificar suas relações sociais com o passar do tempo, menos ou mais rapidamente. Mas para o seu próprio existir em uma coletividade sempre deverá desenvolver relações sociais. Do mesmo modo, ao se relacionar com outros homens, esse ser humano irá afetar e ser afetado por poderes de todos os tipos. A Política será sempre inseparável do seu existir. Também sempre estará produzindo Cultura em suas relações com os homens e com a natureza – ele não pode apagar isso de sua existência, ao iniciar um simples movimento ou a produzir um simples gesto estará automaticamente produzindo cultura.
Contudo, em que pese que boa parte dos seres humanos possua alguma forma de Religião – a verdade é que, no limite, pode-se imaginar perfeitamente um homem, ou até uma humanidade, sem religião. A religião é uma contingência da vida humana, embora uma contingência perene, duradoura, e que pode mesmo se eternizar – mas não é propriamente intrínseca à natureza humana, e é esta uma das razões pelas quais podemos classificar a História da Religião como um domínio, e não como uma dimensão. De mesmo modo, em que pese que metade dos seres humanos seja do sexo feminino, e que uma boa parte da humanidade seja constituída de jovens, não será adequado classificar a História das Mulheres ou a História dos Jovens senão como domínios, e um raciocínio similar poderia ser formulado para a História Rural ou para a História Urbana, apenas para mencionar alguns dos domínios mais abrangentes, já que para os domínios mais específicos o seu nível de restrição e contingência torna-se ainda mais evidente.
As dimensões, deve-se ter percebido, são sempre macro-campos capazes de se desdobrar em ambientes internos, de produzir interfaces mais diversificadas, e de darem margem a um número significativo de obras historiográficas. Além disto, para nos apropriarmos de uma imagem de Fernando Braudel utilizada com um sentido totalmente distinto, as dimensões correspondem ao leito do rio, mais perene e abrangente, que só muda muito lentamente; e já os domínios correspondem às espumas que se fazem e refazem na duração mais curta da superfície, por vezes atendendo a tendências da moda, a determinados contextos, ou a movimentos de ocasião (É verdade, contudo, que há domínios extremamente duradouros, conforme veremos oportunamente).
Uma exceção certamente é a História da Sexualidade, que atrás classificamos como domínio, embora, com bastante razão, possa-se argumentar que ao nascer e ao desenvolver sua vida orgânica e psíquica todo ser humano já se inscreve em uma determinada dimensão de sexualidade. Seria por isso preciso relativizar o problema de que a História da Sexualidade deva ser vista atualmente um domínio histórico, e não como uma dimensão histórica de acordo com o critério que operacionalizamos neste ensaio. Na verdade, há algo ainda que deve ser dito. É claro que um novo giro do caleidoscópio historiográfico pode mudar um dia isto, e a Sexualidade poderá então passar a ser apreendida como ‘dimensão’ historiográfica, inspirando tantas obras como a História Demográfica ou a História Econômica. Mas por ora ela está apenas nos seus primórdios, mesmo que o seu potencial em extensão e capacidade de desdobramentos seja inegável – e para confirmar isto basta lembrar que a primeira História da Sexualidade, definida como uma dimensão mais ampla, foi escrita por Michel Foucault há alguns anos atrás3, sem que haja muitas experiências no gênero.
O giro do caleidoscópio historiográfico, enfim, ocorre em consonância com as motivações de uma época, com as necessidades de uma determinada sociedade, com as suas nem sempre perceptíveis imposições políticas, com a sua capacidade de colocar certos problemas (o que geralmente ocorre quando esta sociedade tem a capacidade de resolvê-los, conforme já se disse alhures).
No século XIX, os historiadores praticamente só prestavam atenção à ‘dimensão política’, e assim mesmo em um pequenino traço da dimensão política. Excepcionalmente no quadro de filosofias da história do século XIX, Marx e Engels começaram a atentar para a dimensão econômica, mas também para a dimensão social. Os Annales, no século XX, reforçaram este olhar pioneiro, no que logo foram acompanhados por todos os historiadores que quiseram acompanhar o movimento da modernidade, isto é, o giro do caleidoscópio historiográfico. Depois os olhares dos historiadores foram se voltando sucessivamente para a Demografia, para a Cultura Material, para a Geo-História, para as Mentalidades, para a Cultura. Nada impede, podemos prever, que novas dimensões apareçam nos horizontes historiográficos das próximas gerações (ou que um domínio migre para o campo mais abrangente das dimensões) e a Sexualidade pode ser uma forte candidata.
Voltando ao campo de critérios que estamos categorizando como domínios, podemos dizer que também há aqueles domínios que se conservam como setores mais limitados, ou sob estrita vigilância da racionalidade científica, em função de interditos não declarados. No moderno mundo laico e tendente a uma ciência materialista, a Espiritualidade só pode ser um domínio. É difícil que venha a ser reconhecida como dimensão historiográfica da vida humana enquanto persistir a atual tendência paradigmática de organizar os saberes científicos. Fora dos ambientes científicos e acadêmicos, contudo, grande parte dos seres humanos acredita ou movimenta-se nisto que eles definem como espiritualidade, inclusive os cientistas. Mas para a Ciência oficial de hoje em dia, este território é por demais ambíguo, avesso a comprovações ou experiências diretas. O resultado é que se tem um domínio como a ‘História Religiosa’ – que pode se desdobrar em histórias dos sistemas religiosos, das Igrejas, das formas espiritualizadas de sentir ou das crenças – mas não uma ‘dimensão historiográfica’ Religiosa ou da Espiritualidade, com o mesmo status científico e gerando tantos desdobramentos como a Economia ou a Política. De fato, sequer se fala em uma História Espiritual, o que seria o caso se tivéssemos aqui uma dimensão historiográfica já constituída. Em suma, com a História da Igreja poderemos ter a história de uma instituição, com a História da Religião ou das crenças religiosas poderemos ter a história de uma representação, com a História das práticas religiosas (ou da religiosidade stricto sensu) poderemos ter a história de uma prática ... mas a História Religiosa definida dimensionalmente, do mesmo modo como se define História Política ou História Cultural não existe nos atuais parâmetros disciplinares da historiografia.
Até aqui falamos dos domínios históricos que se referem a âmbitos (Arte, Sexualidade, Religiosidade, Representações). Conforme definimos antes, h outras categorias definidoras de domínios históricos que se referem a agentes históricos específicos (História da Mulher, História dos Excluídos), ou a certos ambientes sociais (História Rural, História Urbana). Naturalmente que, em um caso ou outro, teremos domínios que se prestam a todos os enfoques (dimensões) possíveis – da História da Cultura Material à História das Mentalidades. Os ‘excluídos’ podem ser historiados com a atenção voltada para as Mentalidades, como fez Geremek, com a atenção voltada para a Economia, como fez Kula, com a atenção voltada para a Cultura, como fez Thompson, ou com a atenção voltada para o Social, como fez Michel Mollat. A História Urbana ou a História Rural podem ser avaliadas a partir de enfoques direcionados para cada uma das dimensões que já foram mencionadas neste livro, da Cultura Material às Mentalidades – afinal, estes domínios são rigorosamente ambientes menores dentro do mundo humano que não deixam de ser unidades totalizantes (são mundos humanos específicos, que podem ser examinados na totalidade de seus aspectos).
Vale lembrar também que existem os domínios que são aparentemente sub-campos de um domínio maior. A História das Doenças poderia ser inscrita em uma História do Corpo. A História da Prostituição poderia ser inserida na História dos Excluídos (embora em alguns aspectos também possa ser incluída na História da Sexualidade). A História da Criança, da maneira como têm funcionado até hoje as nossas instituições familiares, poderá ser inscrita sem maiores dificuldades em uma História da Família. Tudo isto, por outro lado, ficará bem se englobado por uma História da Vida Privada.
Para além disto, são inúmeros os domínios que se enquadram opcionalmente como sub-campos em mais de um domínio mais abrangente, ou que se localizam nos interstícios situados entre dois ou mais outros domínios. A História da Medicina, enquadrar-se-á na História das Ciências, na História dos Sistemas de Pensamento ou dos sistemas repressivos (como propôs Michel Foucault) ... estará em afinidade com os já mencionados domínios da História das Doenças ou da História do Corpo? Incluirá como subconjunto a História da Clínica? Temos nestes e em outros casos um entrelaçado de domínios históricos, abrindo espaços por dentro do labirinto do saber historiográfico.
Poderemos também desviar um pouco do campo da historiografia profissional, para vislumbrar este universo ambíguo e limítrofe que espreita o saber histórico, mas que também chama a si de História (e quem poderia convencê-los, aos seus cultuadores, de que não temos aí também uma História, tão legítima como as outras?). Existem assim aqueles domínios que são tão pontuais que praticamente se confundem com um objeto único, não faltando entre eles aqueles que beiram o absurdo e que aparentemente poderiam ser inscritos em um campo novo que poderia ser ironicamente denominado de História das Futilidades. Pense-se na História dos Perfumes, na História das Nádegas, na História do Estupro, ou em uma História do Onanismo, curiosidades que mereceram edições recentes, e que por vezes passam longe da historiografia profissional feita com maior seriedade.
Os domínios da História, enfim, multiplicam-se. Para o bem e para o mal, a criatividade dos historiadores sempre poderá organizar mais e mais campos, prontos a acolherem novos objetos ou a receberem no seu seio objetos antigos, deslocados com um novo propósito. O grupo dos ‘domínios’ é a parte mais móvel, mais flutuante, mais diversificada e intercambiante do caleidoscópio historiográfico (com o perdão da insistência nesta metáfora). Assim, enquanto as ‘dimensões’ costumam sofrer alterações em uma duração mais longa (que às vezes pode ser medida em décadas); as ‘abordagens’ costumam surgir, alterar-se ou serem desativadas com uma rapidez maior, cumprindo uma espécie de média duração; já os domínios, por fim, por vezes surgem e desaparecem com a rapidez da curta duração, às vezes perseguindo ditames da moda e caindo para segundo plano tão logo se saturam – embora também haja domínios tão antigos como a própria História, como por exemplo a História da Religião ou a História Militar, e que já existem num quadro de estabilidade.
Para concluir com um retorno às nossas assertivas iniciais, o importante é registrar que a boa História não necessita de compartimentos inter-excludentes, e sim de conexões. História Cultural, História Política, História Oral, História Urbana, Micro-História, História Serial – aqui temos apenas campos de força prontos a entrar em conexão em função de um determinado objeto de pesquisa e de reflexão historiográfica. Para cada objeto de estudo, trata-se sempre de cada historiador encontrar a sua conexão específica, constituída por algumas ou quantas das modalidades históricas forem adequadas ao seu trabalho.
Desnecessário dizer que os historiadores podem unir em uma única perspectiva historiográfica uma dimensão (por exemplo, a História Econômica), uma determinada abordagem (a História Serial), e um certo domínio (a História dos Camponeses). Na verdade, muitos outros tipos de combinações serão possíveis, até mesmo no interior de um grupo de critérios. Em função de determinado objeto de estudo, posso estar unindo em uma perspectiva convergente as dimensões da História Social e da História Cultural, como tantas vezes ocorre, e alternando como abordagens a História Oral e a História Serial (isto é, trabalhando de um lado com entrevistas, e em outro momento analisando grandes séries documentais). Por fim, posso estar aplicando esta convergência para examinar a vida de mulheres operárias em uma determinada época – o que nos colocaria em uma nova convergência entre os domínios da História da Mulher e da História dos Trabalhadores.
Este exemplo, entre uma infinidade de outros que poderiam ser dados, pretende mostrar que fundamentalmente as diversas modalidades historiográficas hoje conhecidas não devem ser tratadas como compartimentos historiográficos incomunicáveis – nos quais cada historiador específico deveria se isolar ou especializar – e sim como campos de força que interagem para a constituição de um objeto de estudo mais específico. Daí a possibilidade de trabalharmos com um novo conceito, o de campos históricos. É a partir deste novo âmbito conceitual que procuramos compreender como se relacionam as diversificadas sub-especialidades da história.
NOTAS
1 - BARROS, José D’Assunção O Campo da História – Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004.
2 - A outra tese desenvolvida neste mesmo trabalho foi a de que as modalidades da história não são compartimentos onde se situariam os historiadores, ou mesmo seus trabalhos específicos, e sim campos de força que se interconectam em função de uma pesquisa ou reflexão historiográfica que está sendo produzida por determinado historiador em um momento específico.
3 - FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I, A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal, 1977-1985, 4 vol.
BIBLIOGRAFIA
BARROS, José D’Assunção. O Campo da História – especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2005.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I, A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal, 1977-1985, 4 vol.
GEREMEK, Bronislaw. A piedade e a forca: História da miséria e da caridade na Europa. Lisboa: Terramar, 1995.
KULA, Witold. Teoria economica del sistema feudale. Proposta di un modello. Torino: Einaudi,1970.
MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
THOMPSON, Edward P. “A História Vista de Baixo” in As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. São Paulo: UNICAMP, 2001. p.185-201 ].
Fonte: Tema Livre
Disponível em:http://www.revistatemalivre.com/historiografia11.html