Foi a “alma” que livrou o corpo suplício. Em pouco tempo, relata Foucault, o castigo corporal aplicado como forma de punição aos crimes e más-condutas foi banido da sociedade disciplinar. Deixando o corpo, o castigo é deslocado para a forma incorpórea e espessa da “alma”. É ela que passa a sofrer a justiça punitiva. O ferrão do justo passa a buscar não mais a carne, mas o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Um complexo científico-jurídico (laudos psiquiátricos, teses da criminologia, tipologias da antropologia criminal, avaliações médicas) cria a realidade impalpável da “alma” como objeto da punição. É a consciência abstrata do condenado que deve sofrer, pagar pelo crime cometido ou atribuído, fixando assim a certeza da justiça (FOUCAULT, 1991, p. 11-32). Deve ser convencida de que a punição é o caminho para o intolerável, o bárbaro e infame.
Na Europa, a saída de cena do corpo no espetáculo punitivo teria se dado numa dezena de anos entre o fim do século XVIII e começo do XIX, quando a repressão penal trata de se instalar no consciente e no inconsciente dos indivíduos. A justiça faz lembrar, a qualquer um, que antes de cometer uma ação criminosa é preciso pensar nas consequências, arrepender-se antes de agir, a fim de que o indivíduo fique moralmente convicto de que o crime não compensa. O objeto do castigo se modifica, passa “de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos”. Não é mais o corpo o objeto a ser justiçado, mas a realidade incorpórea criada por esse complexo médico-jurídico-psiquiátrico-antropológico-educacional que busca cientificamente qualificar as predisposições criminosas dos indivíduos e penalizar a consciência do criminoso (FOUCAULT, 1991, p. 24).
Enquanto dura esta “economia do castigo” o suplício toma o corpo enquanto objeto da repressão penal. O corpo supliciado é resultado de um regime punitivo em que nem o capital e nem a produção encontram-se plenamente desenvolvidos; onde estão pouco ou parcialmente implantados, o corpo é mostrado como espetáculo público de uma ordem que faz desse mesmo corpo um objeto de posse. Historicamente, é o momento em que o corpo é um dos maiores bens que um sujeito pode desejar e adquirir. Patriarcal e escravista, a sociedade brasileira que se capitaliza no século XIX faz do corpo sua grande propriedade, "coisa" que deve ser submetida a força de trabalho, que deve ser vergada para ajustar-se à ordem da exploração compulsória.
Décadas antes e após a abolição da escravidão negra, o suplício dos escravos mostra-se ora como barbarismo arcaico, medieval, que logo deverá extinguir-se, ora como profundo atavismo de uma sociedade escravocrata, incapaz de não supliciar os corpos dominados. Na literatura do período, o corpo supliciado aparece tanto como o espetáculo de uma justiça privada e infame, como a viva presença de uma sociedade mortificada pela cultura escravista. Em poemas e prosas, principalmente no “romance de casa-grande e senzala” [*1], o suplício está entranhado na família patriarcal, unindo a todos, ao mesmo tempo em que a envenena.
Submetido ao poder pessoal, o corpo cativo é um território de disputa que deve ser física e ideologicamente posto sob dominação. Ele “está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica” [*2].. A insubordinação é um prejuízo à ordem moral, mas antes de tudo é prejudicial às finanças familiares, à economia escravista. O tempo do escravo é todo do senhor; e este, dele quer dispor em sua integridade. Em A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães [*3]., publicado primeiramente em 1875, as cativas confinadas num barracão a fiar algodão veem, com maus agouros, os tempos sombrios que se aproximam.
– Minhas camaradas, – dizia a suas vizinhas uma crioula idosa, matreira e sabida em todos os mistérios da casa desde os tempos dos senhores velhos, – agora que sinhô velho morreu, e que sinhá Malvina foi-se embora para a casa de seu pai dela, é que nós vamos ver o que é rigor de cativeiro.
– Como assim, tia Joaquina?!...
– Como assim!... vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô velho não era de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado – atrás de mim virá quem bom me fará. Este sinhô moço Leôncio... hum!... Deus queira que me engane... quer-me parecer que vai-nos fazer ficar com saudade do tempo de sinhô velho...
– Cruz! ave Maria!... não fala assim, tia Joaquina!.. então é melhor matar a gente de uma vez...
– Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a pouco nós tudo vai pra roça puxar enxada de sol a sol, ou pra o cafezal apanhar café, e o pirai do feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro. (GUIMARÃES, 1973, p. 74)
O romance de Bernardo Guimarães não vai muito além dos cômodos luxuosos de uma casa-grande ou de um salão de festas da sociedade senhorial, indo vez ou outra à senzala. Indica, quase ao acaso, o que se passa na região de Campos de Goitacases, Rio de Janeiro, à época em que o café fazia a fortuna e os infortúnios dos homens, fossem fazendeiros, escravos, libertos ou capitalistas. É o cenário histórico de um país à beira da capitalização – materializada na construção de ferrovias, estradas, melhores portos, em produtos importados e investimentos financeiros –, mas ainda agrário e escravocrata, monocultor, possuído pelos latifundiários [*4].. Senhores e escravos multiplicam-se à sombra dos cafezais, marcando profundamente o romance, a paisagem e a personalidade de todo lugar a que avançam. A cafeicultura se alastra, fazendo render a propriedade de terras e de homens. E os senhores, embora retratados como seres ociosos e perdulários, sabem do valor que tem cada minuto da vida do escravo.
Em A mocidade de Trajano, do Visconde de Taunay [*5]., publicado em 1871, um escravo larga o ancinho e deita-se furtivamente à sombra de um cafezeiro para acender um cachimbo. Por um minuto rouba o tempo do seu senhor. "Cachorro!... Malandro, sem vergonha!", grita o feitor ao surpreender o ladrão. O escravo estremece, quer fugir, mas o chicote lhe alcança; é facilmente dominado. O feitor ordena a outros escravos que cortem varas... "e boas".
[...] O escravo, amarrado solidamente a um pé de peroba, abarcava o tronco com os braços e pernas distendidos, ficando todo enleado por cordas de embiras e cipós. Chegaram os varapaus e as pauladas começaram a chover sobre o corpo do desgraçado que, ao princípio, procurou não gritar. Gemia surdamente e torcia dolorosamente o pescoço; mas depois, vencido pela dor, prorrompeu em exclamações [...] O surrado clamava em altos berros: – Chamem!... Chamem meu senhor moço... Nhonhô... Acuda o seu negro [...] A voz perdia-se exausta entre os cafezais. O suplício continuava... (TAUNAY, 1984, p. 163-164)
A insubordinação é tanto mais prejudicial quanto mais improdutivo torna-se esse corpo. Não apenas à estrutura monocultora e escravista, mas também à ordem sexual que regra uma economia dos instintos. A perversão do corpo ataca a sanidade do sujeito, tornando-o instável, indisciplinado, imoral. Em Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha [*6]., de 1895, uma corveta decadente abriga entre os marujos toda sorte de homens, inclusive escravos fugidos das fazendas de café, como o personagem principal, o negro Amaro. As primeiras cenas do romance tratam do seu suplício, que sofre juntamente com outros escravos moralmente indisciplinados. A razão do castigo de Amaro está em sua insubordinação quando defende de maus-tratos um grumete, menino loiro e de olhos azuis que logo se tornará seu “gozo proibido, gozo pederasta”. Esmurra um suboficial do navio, é preso e posto a ferros. Diante de todos, recebe mais uma vez as chibatadas.
A chibata não lhe fazia mossa; tinha costas de ferro para resistir como um hércules ao pulso do guardião Agostinho. Já nem se lembrava do número das vezes que apanhara de chibata.....
– Uma! cantou a mesma voz – Duas!.... três!...
Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura pra cima, numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco profundo e liso d’alto a baixo no dorso, nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos.
Entretanto, já iam cinqüenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor. Viam-se unicamente naquele costão negro as marcas do junco, umas sobre outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos. (CAMINHA, s/d, p. 17)
Para quem olha de fora, como o narrador do romance de casa-grande e senzala, a cena mais dantesca da escravidão é aquela do espetáculo da punição, pintada com sangue, carnes lanhadas e outras atrocidades. Como cena costumeira de uma realidade escravocrata é testemunhada em pormenores, onde as cores variam conforme a reação e a dramaticidade de cada escravo supliciado. Mas a reação também varia de acordo com as técnicas utilizadas para se arrancar a dor. Ela pode ser representada conforme a menção ou descrição de cada instrumento de tortura. Basta contemplá-los para evocar o grau de sofrimento a que o escravo será submetido, por crimes ou resistências à ordem escravista.
Neste momento chega André [o pagem] trazendo o tronco e as algemas, que deposita sobre um banco, e retira-se imediatamente. Ao ver aqueles bárbaros e aviltantes instrumentos de suplício turvaram-se os olhos a Isaura [a escrava], o coração se lhe enregelou de pavor, as pernas lhe desfaleceram, caiu de joelhos e debruçando-se sobre o tamborete, em que fiava, desatou uma torrente de lágrimas.
– Alma de minha sinhá velha! – exclamou com voz entrecortada de soluços, – valei-me nestes apuros; valei-me lá do céu, onde estais, como me valíeis cá na Terra.
– Isaura, – disse Leôncio [o proprietário] com voz áspera apontando para os instrumentos de suplício, – eis ali o que te espera, se persistes em teu louco emperramento [de se entregar a ele]. Nada mais tenho a dizer-te; deixo-te livre ainda, e fica-te o resto do dia para refletires. Tens de escolher entre o meu amor e o meu ódio. Qualquer dos dois, tu bem sabes, são violentos e poderosos. Adeus!... (GUIMARÃES, 1973, p. 97-98)
Varas e chibatas, as correntes e algemas. Há mesmo uma tecnologia da dor para submeter o sujeito à escravidão. Ao longo da história disciplinar do país, uma infinidade de instrumentos serviu para capturar, conter, suplicar e aviltar o homem posto sob o domínio senhorial. Correntes de ferro, gargalheiras que se prendiam ao pescoço, algemas para pés e mãos, máscara de folha de flandres para impedir a alimentação, o suicídio ou o furto, anéis de ferro para comprimir os dedos, a palmatória, os ferros quentes com iniciais, os libambos, o tronco (LARA, 1988). Usava-se das mãos, dos pés, da mais bruta força muscular para se promover o espetáculo do suplício. Publicado em 1888, o romance A Carne, de Júlio Ribeiro [*7]., detalha a ciência arquitetônica do tronco e da chibata como se fossem os mais vis instrumentos de submissão. Detalhes que parecem servir para atacar, com sua descrição naturalista, os últimos pudores escravistas de seus leitores, ou para fazê-los recordar de um prazer que deixará de existir.
A um canto espalmava-se um estrado de madeira, engordurado, lustroso pelo rostir de corpos humanos sujos. As tábuas que o constituíam embutiam-se em um sólido pranchão de cabreúva, cortado em dois no sentido do comprimento: as duas peças por ele formadas justapunham-se, articulando-se de um lado por uma dobradiça forte, presas de outro por uma fechadura de ferrolho. Na parte superior da peça fixa, e na inferior da móvel havia piques semicirculares, chanfrados, que, ao ajustarem-se essas peças, coincidiam, perfazendo furos bem redondos, de um decímetro mais ou menos de diâmetro. Era o tronco.
Sobre o estrado, de ventre para o ar, com as pernas passadas, pouco acima dos tornozelos, nos buracos dos pranchões, envolta em uma velha coberta de lã parda, despedaçada, imunda, tinha atravessado a noite o escravo fugido [...].
[A chibata] é um instrumento sinistro, vil, repugnante, mas simples.
Toma-se uma tira de couro cru, de três palmos ou pouco mais de comprimento, e de dois dedos de largura. Fende-se ao meio longitudinalmente, mas sem separar as duas talas nem em uma, nem outra extremidade. Amolenta-se bem em água, depois se torce e se estira em uma tábua, por meio de pregos, e põe-se a secar. Quando bem endurecido o couro, adapta-se um cabo a uma das extremidades, corta-se a outra, espontam-se as duas pernas a canivete, e está pronto. (RIBEIRO, 1972, p. 50)
Os instrumentos podiam ser combinados, alternados e recriados. Há mesmo um cálculo anatômico e moral para garantir que o suplício seja condizente com as faltas, pois o escravo podia cometer diferentes crimes ao longo de sua vida, ou vários de uma só vez: fugir, furtar, injuriar, assassinar, corromper, se rebelar. Para punir e disciplinar cada ato, o senhor dispunha de técnicas e aparelhos de tortura que funcionavam há muito nas metrópoles europeias e em seus interiores medievais; até o final do século XVIII e começo do XIX, elas ainda faziam uso de um ou outro desses instrumentos de supliciar (FOUCAULT, 1991, p. 14). Mas o que o senhor possuía, antes de tudo, era a voraz e ardilosa necessidade de manutenção da ordem escravista, pois qualquer objeto podia servir para castigar.
Entretanto, o suplício não é raiva cega nem selvageria inexplicável. A produção do sofrimento é quantitativa, varia conforme o valor moral ou econômico de cada ato considerado criminoso ou injurioso. A dor do suplício deve ser infinita enquanto dura a expiação da culpa ou da resistência. A morte pode livrar o sujeito do sofrimento, mas só chega depois do corpo ter sofrido tudo de atroz: “A morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes’.” (FOUCAULT, 1991, p. 34)
A punição deve ser uma cena extrema, na qual aquele que maltrata é tão ou mais selvagem que o crime cometido, e cujo efeito moral deve ser proporcional à intensidade visível do sofrimento. Quando a vontade de disciplinar não está na própria força do senhor, é a truculência do carrasco que responde pela dominação senhorial. Em A Escrava Isaura, o narrador onisciente observa o fundamento da relação entre feitor e escravo, mostrando a transferência da violência e a infâmia que une a ambos. Como na sociedade punitiva europeia, o feitor, enquanto carrasco, é o instrumento pelo qual o poder do soberano faz-se exercer, agindo por meio dele, mas não se identificando com ele (FOUCAULT, 1991, p. 48-49). O exercício do castigo cria a relação de inimizade necessária entre quem deve disciplinar e quem deve obedecer, ao mesmo tempo reforça o paternalismo do senhor.
– Um raio que te parta, maldito! – Má lepra te consuma, coisa ruim! – Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! – Estas e outras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este voltou lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios. Abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do azorrague desapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se contra o algoz, que a executa. (GUIMARÃES, 1973, p. 78).
Sem a intermediação do feitor a lógica paternal torna-se frágil, ou melhor, expõe a infâmia que ata senhor e escravo. Roberto Sobral, o decadente fazendeiro de A mocidade de Trajano, exaure suas energias físicas e morais para disciplinar a escravaria depois que sua esposa morre. Reclama ao filho Trajano a torpeza de precisar castigar, que o rebaixava ao mesmo nível do escravo, pois a escravidão só pode existir quando há a vontade senhorial de tratar alguém como coisa.
[...] É um suplício horrível. O tormento a que me sujeitam estes servidores forçados e indignos esgota-me a paciência, aniquila-me a existência. Quando tua mãe era viva, repartíamos o ingrato trabalho: eu tomava conta dos escravos, dirigia-os, castigava-os; ela se ajeitava com as escravas. Hoje tudo isso me toca. Não sei se deveras enlouqueço. Meu gênio está mudando. Sinto que vou me tornando mau, caprichoso e que, continuando assim, irei direitinho para o inferno, se é que na terra já não estou nele. (TAUNAY, 1984, p. 46)
Há um corpo torturado, marcado, lanhado porque há uma vontade senhorial irreconciliável com a do sujeito que nega a barbárie insistente da escravidão que corrompe a sua humanidade. Ao mesmo tempo, a violação à ordem moral e econômica não pode ser efetivamente reparada pela justiça punitiva. E nem ela pode sujeitar completamente a vontade do escravo, já que não consegue alcançar a “realidade incorpórea”, inexistente para o sujeito escravizado, pois ele é considerado um bem, não um homem dotado de “alma”. Mas enquanto há um mercado de homens pode haver um corpo supliciado exposto aos olhos. Não é mais um espetáculo a ser contemplado, mas reproduzido nas fronteiras meridionais do país, em regiões potencialmente prósperas do Oeste paulista, já afazendadas pela lavoura cafeeira. Suplício executado quase às escondidas, longe do público e das autoridades, mas sancionada até os últimos momentos da escravidão – como observa Júlio Ribeiro em A Carne –, quando o próprio escravo não era mais a força de trabalho da economia capitalizada. Ainda escravo, ainda destituído de estatuto jurídico, somente a sua humanização poderia acenar para sua condição de pessoa, de ser constituído de razão e instituído de direitos. O arcaísmo do suplício é a resistência a essa humanidade.
No “romance de casa-grande e senzala” e suas variações, o corpo supliciado não cicatriza conforme o fim se aproxima. A pele não encobre as feridas abertas na carne, os lanhos sucessivos feitos pela chibata vão descobrindo outras regiões do corpo, castigam todos os membros, arrancando-lhes seu próprio urro de dor. Torturado, marcado, sofrido, o corpo é deformado, embrutecido e horrorizado pela violência punitiva. Supliciado, já não podendo trair, roubar ou fugir, é deixado inerte em algum canto da narrativa, incapaz de participar dela.
Referências bibliográficas