E assim cheguei ao fim de meu discurso sobre governo civil e eclesiástico, ocasionado pelas desordens dos tempos presentes, sem parcialidade, sem servilismo, e sem outro objetivo senão colocar diante dos olhos dos homens a mútua relação entre proteção e obediência, de que a condição da natureza humana e as leis divinas (...) exigem um cumprimento inviolável.”
Thomas Hobbes
Leviatã
“Para bem compreender o poder político e derivá-lo de sua origem, devemos considerar em que estado todos os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem.”
John Locke
Segundo Tratado sobre o Governo
1. Introdução
O pensamento iluminista do século XVIII europeu é filho de um contexto histórico interessante, onde o destaque está na ascensão da burguesia européia e na permanência da aristocracia em certos momentos. O Iluminismo não foge às influências de seu tempo, pelo contrário, apresenta a filosofia com certo caráter utilitário no favorecimento do espírito burguês, mas num contexto onde a aristocracia não havia sido extinta.
O que lemos na filosofia iluminista é a utilização sintética dos argumentos racionalistas e empiristas para defender a visão de mundo burguesa. Não sendo o Iluminismo uma escola filosófica que trabalhe com a necessidade de criar uma nova teoria do conhecimento, mas sim dar uma outra perspectiva às que já existiam, cabe-nos identificar como é construída esta herança.
Da tradição racionalista, a principal herança utilizada pelos Iluministas é a filosofia cartesiana. A teoria do conhecimento de Descartes está fundamentada na valorização da dúvida, na reflexão metafísica como fundamento do saber; no sujeito cognitivo como base do conhecimento; na resposta relativa ao problema da verdade e na busca de um conhecimento prioritariamente progressivo e construtivo, o qual só pode ser dado através da mente, consistindo na valorização da verdade formal [1]. “Filha emancipada do cartesianismo, a filosofia do Iluminismo deve a Descartes (...) o gosto do raciocínio, a busca da evidência intelectual, e, sobretudo, a audácia de exercer livremente seu juízo e de levar a toda parte o espírito da dúvida metódica. ‘Sou, logo penso’ seria de algum modo o cogito do filósofo do Iluminismo, bem próximo do cogito cartesiano. Bem próximo, ma com um sentido extremamente contrário.”[2] Os Iluministas voltaram-se contra algumas colocações de base cartesiana como “o idealismo, o dualismo, o espírito de sistema e de dedução”[3].
A herança empirista posta em prática pelos Iluministas está fortemente fundamentada, especialmente, em Locke, que acaba influenciando de forma mais decisiva os filósofos das Luzes. É “pela defesa da observação e da análise contra o espírito de sistema que Locke se impôs como um ‘mestre da sabedoria’ aos filósofos franceses do século XVIII. (...) Locke valorizou definitivamente o papel da experiência; ele ensinou a fazer a análise das idéias a fim de se redescobrir a experiência concreta original (que não é, aliás, um simples objeto físico, mas implica o jogo do desejo e das tendências); com isso Locke abria caminho – um dos mais fecundos do Iluminismo francês – para a crítica de nossas idéias morais e de nossas representações. Com isso, também o termo ‘metafísica’- na medida em que não se encontrasse banido do vocabulário – mudava de sentido, para designar a análise das idéias.”[4]. O papel de Hobbes está na formulação de uma teoria ligada a soberania absoluta, teoria esta que será constantemente criticada pelos iluministas.
A grande preocupação dos filósofos iluministas, decorrente da ascensão burguesa, é a crítica da sociedade e da política do Antigo Regime, através da apologia à investigação racional de todas as esferas da vida humana, seja ela de cunho econômico, social, natural ou metafísico. Com isso, o Iluminismo está propondo uma laicização da razão em nome do projeto de criação de uma esfera pública burguesa. Essa proposta acabará levando os filósofos a uma grande aproximação com o ateísmo, na forma de uma delimitação das questões metafísicas aos limites do racional.
O saber adquire um lugar privilegiado dentro do contexto das Luzes, uma vez que é através dele que o poder poderá ser exercido. Diderot e D’Alembert, com a elaboração da “Encyclopédie”, e a sede de construir a árvore do conhecimento iluminista – sobre a qual destaca-se o evidente caráter laico - são grandes exemplos disso.[5] A História, como esfera do saber, tinha um grande fim pragmático: o de servir de base às críticas da sociedade do Antigo Regime e os seus pilares: o clero e a nobreza. Assim, a História torna-se instrumento capaz de legitimar a construção da esfera pública de discussão burguesa, até porque passa a ser sinônimo, como matéria da educação do indivíduo, de civilidade: a educação era capaz de destruir a barbárie, e dentro dela a História possuía importante papel iconoclasta.
Consideradas estas questões, fica clara a importância da compreensão do ideário de Locke, com influência direta do pensamento iluminista. Ao debruçarmo-nos sobre Locke, porém, percebemos que a grande herança que o século XVII deixará aos pensadores do XVIII é justamente a abertura de um debate público de idéias, sendo nesse contexto que grande parte da teoria política inglesa vêm à tona.
O debate entre Hobbes e Locke, tema deste texto, está, portanto, na raiz do que viria ser o pensamento iluminista do século XVIII: Como esses pensadores amadurecerem suas teorias acerca da natureza humana e das suas relações com a dimensão do poder do soberano será o mote epistemológico deixado aos filósofos das Luzes.
A história está presente no desenvolvimento das idéias de Locke e Hobbes não só porque elas desencadeiam um importante processo de desenvolvimento do pensamento, mas porque esses filósofos estavam escrevendo à luz de importantes acontecimentos históricos: A Revolução Puritana no caso de Hobbes e a Revolução Gloriosa no caso de Locke.
Assim, apresentaremos aqui as idéias de Hobbes sobre o Estado de Natureza e a relação que este estabelece entre a sua concepção de natureza humana e o poder. Depois, observaremos como essas idéias vão influenciar Locke em suas concepções sobre os mesmo assuntos, sempre procurando entender que as diferenças e semelhanças entre ambas estão sujeitas ao contexto específico em que elas foram escritas.
Terminamos com uma conclusão que pretende retomar as convergências e divergências dos pontos de vista dos autores em questão e indicar melhor como estas idéias estão ligadas aos seus contextos e assim abrem espaço para o debate de idéias do século XVIII.
2. A voz de Hobbes
Thomas Hobbes nasceu na Inglaterra em 5 de abril de 1588 numa família pobre, filho de um clérigo semi-letrado, teve a maior parte de seus estudos custeada por um tio relativamente próspero. Depois que concluiu o bacharelado em Magdalen Hall, em Oxford e viveu mais de dez anos na França; em 1645 torna-se preceptor de do príncipe de Gales, que virá a ser o Rei Carlos II da Inglaterra. Em 1651 publica o Leviatã, sua obra mais importante, voltando para seu país no ano seguinte. Hobbes morre em 1679 em Hardwick.
Assim, grande parte da sua vida passou-se no contexto da Revolução Puritana e da República de Cromwell, que constituíam a realidade sobre as quais Hobbes irá refletir fazendo com que possamos concluir que as teorias em torno do homem e do Estado formuladas por este pensador estão profundamente ligadas à situação específica da Inglaterra do século XVII: o Parlamento inglês, como representante da burguesia, disputava o poder com o rei, negando-lhe o aumento de impostos e o comando do exército, situação que acaba resultando numa guerra civil entre os anos de 1642 e 1648.
Em 1649 Oliver Cromwell dá um golpe de Estado e sobe ao poder com plenos poderes, expulsando os setores mais conservadores do Parlamento e decretando a prisão e a morte do rei Carlos I. Será o ex-aluno de Hobbes, Carlos II, quem irá restaurar a monarquia inglesa em 1660.
Compreender o pano de fundo das reflexões de Hobbes é compreender a partir de qual sociedade ele estava formulando as suas teorias sobre o homem e o Estado em todos os tempos e, conseqüentemente, entendê-las melhor.
Mas que teorias são essas? Vamos tentar entendê-las a partir de alguns trechos doLeviatã:
Para Hobbes, os homens são iguais e o que os torna iguais é o esforço que todos têm em satisfazer seus desejos e a condição de inimigos entre si, uma vez que para satisfazer seus próprios desejos, o homem não hesita diante do aniquilamento do outro, criando uma situação violenta onde todos estão contra todos, que ele chamou de “Estado de Natureza”.
Para controlar os homens em “Estado de Natureza” é preciso que exista entre eles um pacto social, que teria como objetivo assegurar a paz, tal pacto só seria possível graças à existência do Estado Soberano, que têm poder ilimitado, monopolizando o recurso à violência em nome da segurança da sociedade civil.
É importante lembrar que, como defende Macpherson, quando Hobbes está falando de “Estado de Natureza” ele não está falando de indivíduos não civilizados que viveram em épocas passadas; ele está pensando a natureza humana como atemporal, mas partindo do que ele vê na sociedade inglesa do século XVII: os homens em Estado de Natureza que deveriam ser resgatados pelo Estado Soberano, perfeitos eram os homens que, em Estado de Natureza, constituíam a sociedade civil de soberania imperfeita. [6]
O Estado de “todos contra todos”, onde os homens lutam entre si pelo poder, era o que Hobbes via na sociedade inglesa em que ele vivia, durante a Revolução Puritana e a guerra civil, atestando a importância do fator histórico na compreensão das teorias, conforme ele mesmo atesta no fim do Leviatã:
“E assim cheguei ao fim de meu discurso sobre o governo civil e eclesiástico, ocasionado pelas desordens dos tempos presentes, sem parcialidade, sem servilismo, e sem outro objetivo senão colocar diante dos olhos dos homens a mútua relação entre proteção e obediência, de que a condição da natureza humana e as leis divinas (quer naturais, quer positivas ) exigem um cumprimento inviolável.”[7]
3. A resposta de Locke
John Locke pertencia a uma geração posterior a de Hobbes, tendo nascido na Inglaterra em 1632 e morrido em 1704. Estuda Ciências Naturais e Medicina em Oxford e passa vários anos na França e na Holanda, voltando à Inglaterra em 1688, ano da Revolução Gloriosa.
Assim como as de Hobbes, as suas teorias também estavam profundamente ligadas ao contexto em que viveu, mas se para Hobbes o que importava era o poder soberano indivisível, não importando se ele estava nas mãos de Carlos I, que era um rei com pretensões absolutistas, ou se estava no poder quase ditatorial de Cromwell; Locke verá que a restauração da monarquia por Carlos II não eliminou a disputa entre a coroa e o Parlamento, o que acaba culminando na coroação de Guilherme de Orange, com a condição de estar sempre submetido ao parlamento, surgindo assim o que conhecemos até hoje como monarquia constitucional, consagrando a divisão de poderes e a supremacia do Parlamento. A Revolução Gloriosa resolveu a antiga questão da disputa de poderes sem que fosse preciso uma nova guerra civil.
Este é o pano de fundo das convicções de Locke, que vai dialogar profundamente com as teorias de Hobbes, modificá-las e estender suas discussões sobre soberania para os pensadores do século XVIII, ou seja, os Iluministas, criando assim a esfera de discussão pública que os burgueses tanto desejavam.
O texto com o qual trabalharemos é o “Segundo Tratado sobre o Governo Civil” de 1690, procuraremos identificar nele os pressupostos da teoria de Locke sobre o homem e o Estado e como estas dialogam com as teorias de Hobbes.
Para Locke a única fonte das idéias é a experiência, ou seja, elas não são inatas; porém sua noção de experiência estende-se ao conceito de experimentação sensorial, a experiência só chega ao seu grau completo e gera idéias se ela também está marcada por uma esfera reflexiva dos fenômenos.
Segundo ele, os homens em Estado de Natureza são livres, iguais e independentes na medida em que todos estão sujeitos às leis da natureza, que é a razão, não devendo abusar de sua liberdade para prejudicar os outros. Quem agride o outro está indo contra as leis naturais, renunciando à razão e dando aos outros o direito de castigá-lo, ocasionando as lutas. Não se trata mais de uma “guerra de todos contra todos” como teorizava Hobbes, mas de uma guerra dos “seguidores da lei da natureza contra os transgressores da lei da natureza”.
Neste estado de guerra, a única forma de obter a paz é através da eliminação de todos os transgressores e a reparação de todo os danos causados, o que acabava perpetuando a guerra. Para resolver esta questão e assegurar o uso da razão, ou seja, o cumprimento da lei da natureza, os homens devem ceder seu direito de executar a lei por si e entregá-lo a um corpo político representativo, o governo.
O governo pode ser um único indivíduo ou vários, o que importa é que sua finalidade é a de julgar e castigar os transgressores e assegurar a paz na comunidade. Para isso o governo desdobra-se em vários poderes, sendo que o principal deles é o Legislativo, que estabelece as leis fixas para que todos possam segui-las. Para não legislar em causa própria o Legislativo não pode executar as leis, o que ficaria a cargo do chamado poder Executivo. Ao poder Federativo fica a incumbência de se relacionar com outras comunidades ou homens que não aderiram ao pacto, decretando paz ou guerra.
Nenhum desses poderes têm poder ilimitado, estando o Federativo e o Executivo subordinados ao Legislativo e este às leis da natureza, o que resulta numa idéia contrária ao absolutismo, porque o monarca absoluto não estaria inserido na sociedade, mas sim deliberando de fora dela, causando a desordem e a quebra da lei da natureza.
A relação entre as suas teorias e o contexto histórico específico da Revolução Gloriosa é clara, já não há mais um contexto de conflitos e de guerra civil, mas de um controle da desordem social diante da confirmação do Parlamento como instituição suprema do governo.
Assim, concluímos que a história do desenvolvimento filosófico da virada do século XVII para o XVIII, que deu origem ao pensamento iluminista, também pode ser entendida como parte do processo histórico de uma determinada sociedade.
Vimos que as idéias de Hobbes e de Locke sobre a natureza humana e o Estado, nas suas diferenças, estão profundamente ligadas ao fluxo dos acontecimentos das revoluções burguesas na Inglaterra, que constituíram o contexto dessas filosofias.
Se a teoria de Hobbes está profundamente ligada à defesa do Absolutismo, a resposta de Locke está mais de acordo com os ideais burgueses. Tanto a defesa aristocrática quanto a defesa dos ideais burgueses estão no cerne da constituição do Iluminismo do século XVIII, por isso que o debate entre as idéias desses filósofos é tão importante, abrindo um espaço sem precedentes para a discussão crítica.
5. Bibliografia
DARTON, Robert.Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie. IN: O Grande Massacre de Gatos. São Paulo: Graal. 1986
DESCARTES, René. Discurso do Método. IN: Os Pensadores: Descartes. São Paulo : Abril Cultural. 1999
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e Civil.Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural 1997
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo In: Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo e Ensaio acerca do entendimento humano. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural 1989
MACPHERSON, C.B. A teoria do individualismo possessivo: de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979
STONE, Lawrence. Causas da revolução inglesa 1529-1642. Bauru: Edusc. 2000
YOLTON, John W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1996.
[1] René DESCARTES. Discurso do Método. P. 35-52
[2] Fraçois CHATELET. História da Filosofia, idéias, doutrinas: O iluminismo. P. 75
[3] Ibid. P. 75
[4] Ibid. P. 78-80
[5] Robert DARTON. Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie. P. 247-357
[6] C.B. MACPHERSON. A teoria do individualismo possessivo: de Hobbes até Locke. P. 21-115