O MOMENTO Com a Revolução Industrial iniciada na Europa no século XIII, toda a civilização entrava em uma nova fase caracterizada pela utilização do aço, do petróleo e da eletricidade. O capitalismo se estrutura em moldes modernos com o surgimento de grandes complexos industriais. Ao mesmo tempo o avanço científico leva a novas descobertas nos campos da Física e da Química. A chamada 2ª Revolução Industrial cria uma demanda por matéria-prima e mercado consumidor ; é o imperialismo em ação. As influências das potências européias sobre os países de baixa renda se fortificam neste novo quadro. A crise de 1873, que provoca a falência de investidores nas metrópoles européias devido ao excesso de produção e/ou à escassez de mercado consumidor, aumenta o interesse de tais potências por países que já possuem alguma dependência econômica ou política (por exemplo a Austrália, ex-colônia da Inglaterra e os países da América Latina em geral). Essa forma de dependência o historiador Nicolau Sevcenko chamou de indirect rule: ...as formas das relações que se estabeleceram entre as nações periféricas ao desenvolvimento industrial e os centros econômicos europeus, modeladas pela indirect rule do novo imperialismo, foram de natureza a dissolver-lhe as peculiaridades arcaicas e harmonizá-las com um padrão de homogeneidade internacional sintonizado com os modelos das matrizes do velho mundo. ”(SEVCENKO, 1981: 32) Foi através desta “regra indireta” que os centros capitalistas europeus estabeleceram seus padrões de vida como padrões universais, atingindo principalmente suas áreas de influência da periferia do sistema. Os avanços tecnológicos e científicos também dão margem à posturas ideológicas como o Positivismo de Auguste Comte e o Socialismo Científico de Marx e Engels, que define o modo de produção da vida material como agente condicionador do processo de vida social, político e intelectual em geral. O Socialismo Científico era assim chamado porque não procurava construir abstratamente uma sociedade ideal mas, baseando-se na análise das realidades econômicas, da evolução histórica e do capitalismo, formula leis e princípios determinantes da História em direção a uma sociedade sem classes e igualitária. O Evolucionismo de Charles Darwin também é incorporado neste quadro; em seu livro A Origem das Espécies de 1859, Darwin expõe seus estudos sobre a evolução das espécies pelo processo de seleção natural, negando portanto a origem divina defendida pelo Cristianismo. Com a expansão do capitalismo, difundiram-se também estas idéias nascidas na Europa, o abalo desta influência sobre as sociedades tradicionais foi gritante, especialmente em países da periferia do sistema, como a Argélia com o Levante Argelino de 1871, o Egito com o Movimento Nacional Egípcio de 1879-1882, e o Brasil com a Guerra do Paraguai de 1864-1870 que abalou os ideais conservadores. O Brasil do final do século XIX foi marcado por inúmeras agitações sociais, desde movimentos separatistas como a Confederação do Equador, agitações abolicionistas, a própria abolição e até a República. O maior centro populacional do país, o Rio de Janeiro, também era considerado um grande centro comercial por intermediar os recursos da economia cafeeira, a capital inicia o século XX em uma situação realmente excepcional. A cidade era um espaço de confluência cultural e econômica que se comunicava com todo o país e acumulava recursos no comércio, nas finanças e já também nas aplicações industriais. Ao mesmo tempo, com o processo de abolição e com a vinda de imigrantes, a cidade passava por uma superlotação, que demandava capital móvel para fazer o pagamento dos trabalhadores, agora livres. O então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, dá início à um processo de incentivo às atividades nas bolsa de valores, foi o chamado Encilhamento. Este processo causou uma confusão maior ainda na cidade, pois fortunas mudavam de mãos, dizia-se que “o rico de hoje era o tintureiro de ontem”, não se sabia mais quem possuía poder político ou econômico. Adiciona-se a essa confusão, a enorme e sempre crescente população da cidade que passou a se instalar em casarões formando cortiços e verdadeiros “ântros de promiscuidade”. Sob a influência das ideologias européias, o Estado brasileiro inicia o processo de Regeneração do Rio de Janeiro, que tem como objetivo “higienizar” a cidade, mandando a população pobre para a periferia (dando origem às favelas), e procurando construir uma imagem moderna para a capital do país. A Regeneração foi financiada por investidores estrangeiros que se aproveitavam da indirec rule, característica dominante no país. Além disso a modernização da cidade facilitaria o espaço de fluxo de matéria-prima aos portos brasileiros, e assim, facilitaria a ação do imperialismo. Na República, “confrontavam-se” Liberais, que se representavam basicamente pela elite paulista influenciada pelo cosmopolitismo progressista internacional e os Conservadores representados pela vanguarda republicana, positivista e militar, influenciada por estigmas de intolerância e isolamento. Na prática, os ideais destes dois grupos são indiferenciáveis: “nada mais conservador do que um liberal no poder”, a República dos Conselheiros se dava então, com o revezamento da gestão das duas classes. O texto de Machado de Assis, Esaú e Jacó ilustra bem a “política de acordos” característica marcante no Brasil de então. É neste complexo quadro que se dá a formação de Euclides da Cunha, ele, como muitos de seus contemporâneos sofreu as influências desta sociedade caótica e das ideologias vindas de além mar. O CONTEXTO Para que consigamos compreender a obra de Euclides da Cunha de uma forma mais completa, é estritamente necessário que façamos um breve parênteses, e olhemos quais eram essas “tão famosas” idéias cientificistas, positivistas e deterministas que influenciaram o autor, ou seja: vamos buscar as fontes nas quais Euclides da Cunha “bebeu”. Tentar enquadrá-lo no contexto histórico-intelectual em que viveu. Antes de mais nada, é importante relembrarmos que o continente Americano, mais conhecido como Novo Mundo, sempre povoou o imaginário europeu. Exemplos clássicos, são o mito do “bom Selvagem” de Rousseau (uma espécie de herança do ideais da Revolução Francesa), onde o autor defendia a maior perfectibilidade do homem americano ( nativo), por ter se conservado no seu estado natural. Outro exemplo são as idéias de Buffon e De Pauw, que contrariamente a Rousseau, viam os americanos como degradados, imaturos e decaídos.(SCHWARCZ, 1993:45) Mas tal discussão não se finda no séc. XVIII. No século seguinte ela ganha ainda mais amplitude, entrando no campo de ciência - que na época ganha o status de ser a única e verdadeira forma de se ver e pensar o mundo. E dentro desse contexto cientificistas, George Cuvier introduz o termo raça - mostrando a existência da herança de caracteres físicos permanentes entre os vários grupos humanos (SCHWARCZ, 1993:47) - que, consequentemente irá se confrontar com os ideais igualitários da Revolução Francesa, principalmente porque, a partir de então, o termo raça, estará vinculado a outro: cidadania. Ao ser legitimada, algumas das principais questões que a ciência irá estudar são a origem e diversidade da humanidade - tendo sempre em vista uma resposta absoluta e verdadeira. E o principal debate sobre essa questão se dará entre os monogenistas e poligenistas. Enquanto os primeiros consideravam que todo homem tinha a mesma origem e que as diferenças entre eles era resultado de uma maior ou menor proximidade do Éden (teoria difundida pela Igreja Cristã), os poligenistas, que baseados em recentes estudos de cunho biológico, acreditavam que haviam diversos núcleos de produção correspondentes aos diferentes grupos humanos(SCHWARCZ, 1993: 47). Conseqüentes a esse debate, surgiram no séc. XIX disciplinas e sociedades não só divergentes como rivais. Exemplos claros será o surgimento de antropologia criminal, que considerava que a criminalidade era algo genético, a frenologia e a antropometria, que calculavam a capacidade humana de acordo com o tamanho do cérebro de indivíduo estudado dos diferentes grupos humanos, a craniologia, estudo do crânio, dentre outros. Entretanto o debate tomará novo fôlego com a publicação do livro A Origem das Espécies de Charles Darwin em 1859. A partir de então o termo raça ultrapassará o campo da biologia, se estendendo às discussões culturais e políticas, além de imprimir o conceito de evolução às duas visões descritas acima, que muitas vezes irão desvirtuar ou “adaptar” as teorias darwinistas no que lhes fosse mais conveniente. Os adeptos do poligenismo são os que melhor realizam essa “adaptação” das teorias de Darwin e acabam tendo seus ideais mais difundidos em relação ao seus rivais monogenistas (é importante frisar que nesse mesmo momento os dogmas da Igreja estavam sendo questionados pelos cientistas). Exemplos disso são a sociologia evolutiva de Spencer e a história determinista de Buckle e até mesmo o sentimento do “Imperialismo Europeu” que se instala nesse momento. A espécie humana passa a ser tratada como gênero humano e suas diferenças culturais são classificadas como diferenças entre espécies: o Homem é dividido e hierarquizado por suas diferenças; e quanto mais longe uma “espécie” se manter da outra melhor para todos. Mas surge um problema: o que fazer então com os grupos miscigenados? A maior parte dos estudiosos e cientistas europeus e norte americanos como Broca, Gobineau e Le Bom, consideravam a miscigenação um erro, uma quebra das leis naturais, uma subversão do sistema. Segundo Lilia M. Schwarcz: “Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a diferença fundamental entre as raças e personificavam a ‘degeneração’ que poderia advir do cruzamento de espécies diversas”.(SCHWARCZ, 1993: 56) Frente a todo esse impacto causado pela publicação de Charles Darwin, outras disciplinas- ainda vinculadas às duas visões sobre a origem e diferença do Homem- irão surgir. Dentre elas, algumas se destacam: a Antropologia cultural ou Etnologia Social que restitui a idéia de que a humanidade tinha apenas uma origem e sua diferença era proveniente do processo evolutivo que ela estava fadada a passar e tinha como seus principais defensores: Morgan, Tylor e Frazer, chamada de escola evolucionista. Numa perspectiva mais vinculada ao poligenismo, aparece a escola determinista geográfica de Ratzel e Buckle que afirmavam que o desenvolvimento ou não de uma nação estava totalmente condicionada pelo meio físico. Houve também outra escola determinista conhecida como “darwinismo social” ou “teoria das raças”, que considerava a miscigenação algo negativo, já que não acreditava que as características adquiridas não eram transmitidas, ou seja: as raças eram imutáveis. Tal escola acreditava na existência de três raças bem distantes, o que invalidava a mestiçagem. O mundo dividido culturalmente era conseqüência da divisão de raças, e havia a raça superior. Muitos autores acreditavam nesse ideais como: Le Bom que achava que o “gênero” humano compreendia espécies de diferentes origens. Taine que considerava o indivíduo resultante direto de seu grupo construtor e que raça e nação são sinônimos. Renase que acreditava na existência e hierarquização das três raças. E por fim Gobineau que afirmava que o resultara da mistura era sempre um dano.(SCHWARCZ, 1993: 56) Essas premissas da escola determinista, principalmente a que defendia a existência de uma raça superior, serviram de base para um movimento que existe até hoje: a Eugenia, que acreditava que só haveria progresso nas sociedades puras, apenas uma raça estava fadada à perfectibilidade, a raça ariana e a humanidade estava dividida em espécies: a miscigenação se torna algo irracional, contra todas as “leis naturais”. A Europa e os E.U.A. . difundiram essas idéias pelo mundo, e elas irão influenciar escritores e pensadores de toda parte. Os europeus acreditavam que compunham um grupo humano puro, livre de hibridização, muito mais perto da perfectibilidade e justamente por isso era o responsável pela civilização dos demais grupos - argumento que justifica e legitima tanto a colonização americana como o “Imperialismo Europeu”, o fardo do homem branco. Já os norte americanos, mesmo tendo sido colônias da Europa, comprovaram seu desenvolvimento, principalmente por terem evitado a miscigenação entre o branco dominador e o negro escravo. E tudo o que foi dito acima serve de justificativa para que o debate da mestiçagem se dê de forma muito menos complexa nesses lugares. No Brasil, como no restante da América Latina, o mesmo não ocorre, a miscigenação é um fato. E mais do que um fato, ela vai se tornar um obstáculo, quando estudiosos e até mesmo cientistas (tanto nacionais como estrangeiros) forem analisar o território brasileiro em busca de uma identidade nacional. O Brasil se tornara uma espécie de laboratório vivo, onde cientistas procuraram comprovar na prática o que compuseram, e onde “ilustrados” brasileiros buscaram desesperadamente uma unidade, uma homogeneidade para definir o povo brasileiro, tendo como principal fonte de estudo , a ciência do séc. XIX descrita acima. A VIDA Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em Cantagalo, Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866. Foi criado pelos parentes, pois sua mãe morreu quando ele tinha três anos. Após concluído o ginásio, ingressou na Escola Politécnica, para cursar engenharia. Devido às dificuldades financeiras, Euclides teve que largar o curso, e transferiu-se para Escola Militar da Praia Vermelha. Lá, reencontrou Benjamim Constant, seu antigo professor no Colégio Aquino, e de quem absorveria idéias positivista e republicanas. Já identificado com os princípios republicanos, Euclides da Cunha cometeu um ato de insubmissão contra a Monarquia, quando cadete na fortaleza da Praia Vermelha: durante a visita do ministro da Guerra do Império, o conselheiro Tomás Coelho, atirou seu sabre aos pés deste, num gesto de contestação ao regime. Foi expulso do Exército por indisciplina. Mudou-se para São Paulo e começou a escrever no jornal “A Província de São Paulo” (futuro “Estado de São Paulo”, após a proclamação da República). Com a vitória republicana, voltou ao Exército e concluiu a Escola Militar, formando-se em Engenharia com bacharelado em Matemática e Ciências Físicas e Naturais. Em 1894, foi praticamente exilado (dão-lhe a incumbência de dirigir a construção de um quartel na cidade mineira de Campanha) por assumir posição antiflorianista. De lá, voltou para São Paulo para escrever no “Estado de São Paulo”. Em 1897, Euclides foi mandado para Canudos pelo jornal como correspondente para reportar os eventos que lá ocorriam. Enviou uma série de artigos que, futuramente, dariam origem ao “Os Sertões”. O livro foi concluído em São José do Rio Pardo, onde morou até 1901. “Os Sertões” alcançam repercussão nacional, permitindo a Euclides ingressar no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e na Academia Brasileira de Letras. Nada disso fez com que Euclides tivesse sua vida mais facilitada. Continuou com a Engenharia, com momentos de desemprego, enfrentando dificuldades financeiras. Em 1909, ingressa no Colégio PedroII, no Rio de Janeiro, para ministrar a cadeira de Lógica. No mesmo ano é assassinado pelo amante de sua mulher, Ana de Assis, durante uma troca de tiros. Morre com 43 anos de idade. Ensaísta e narrador extraordinário de Os sertões, Euclides da Cunha é o primeiro escritor a encarnar o gigantismo da terra brasileira, fazendo de sua obra um dos principais alicerces da consciência nacional. A OBRA 1) CONTRASTES E CONFRONTOS, 1907. Coletânea de artigos saídos na imprensa A CIÊNCIA E O PAÍS A historiografia das ciências no Brasil é caracterizada pelo fato de considerar a criação das universidades na década de 30 do século XX como sendo a introdução da ciência no Brasil. A prática científica nos períodos anteriores a essa data é geralmente considerada como resultado da influência européia, não passando de mera repetição e copias das teorias vigentes na Europa. Não acreditamos que todo o trabalho intelectual brasileiro desde meados do século XIX possa ser considerado simples imitação, já que isso significaria "cair em certo reducionismo, deixando de lado a atuação de intelectuais reconhecidos na época, e mesmo desconhecer a importância de um momento em que a correlação entre a produção cientifica e o movimento social aparece de forma bastante evidenciada."(SCHWARCZ, 1993: 17) No caso das teorias raciais parece ainda mais improvável a hipótese delas terem sido "importadas" e reproduzidas aleatoriamente no Brasil. Elas podiam trazer uma sensação de proximidade com a Europa e uma confiança no progresso e na civilização, "pareciam justificar cientificamente organizações e hierarquias tradicionais que pela primeira vez começavam a ser colocadas publicamente em questão"(SCHWARCZ, 1993: 18), mas também traziam um enorme mal estar. Como encarar a interpretação pessimista da mestiçagem presente nessas teorias num país já tão miscigenado? Aceitar, copiar e reproduzir essas teorias no Brasil iria inviabilizar um projeto de construção nacional que mal tinha começado. Os homens de ciência brasileiros tiveram que achar uma resposta original, adaptando essas teorias utilizando o que combinava e descartando o que era problemático para a construção de um argumento racial no país. Esses homens são encontrados nos grupos de intelectuais reunidos nos diversos institutos de pesquisa e "longe de conformarem um grupo homogêneo (...) estes intelectuais guardavam, porém, certa identidade que os unia: a representação comum de que os espaço científicos dos quais participavam lhes davam legitimidade para discutir e apontar os impasses e perspectivas que se apresentavam para o país"(SCHWARCZ, 1993: 37). A ciência era para esses homens o único caminho possível para as transformações e sobrevivência do Brasil. A vertente cientificista buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira, que determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo. Segundo essa mesma vertente, recorrendo à leis e métodos gerais, seria possível encontrar as especificidades da evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo. Como apontou Sevcenko essa atitude seria "uma versão desdobrada do lema lapidar do positivismo: 'Prever para Prover"(SEVCENKO, 1981: 103). A necessidade de conhecer o Brasil também estava calcada no medo que muitos dessa geração tinham de que o país fosse invadido pelas potências expansionistas e viesse a perder autonomia ou parte do território. O próprio Euclides da Cunha pregava a necessidade da colonização do interior e a construção de uma rede interna de comunicação viária. Essa atitude reformista e salvacionista pretendia criar um saber próprio sobre o Brasil nos seus mais diferentes aspectos e resultava em duas reações da comunidade científica. A primeira era acreditar no curso natural dos acontecimentos, sublimando as dificuldades presentes e transformando a sensação de inferioridade em um mito de superioridade. A segunda era buscar um conhecimento profundo do país para descobrir um certa ordem no caos presente. Acreditamos que Euclides da Cunha esteja no segundo grupo, não só porque em momento algum aponta o embranquecimento natural da população, mas, principalmente pelas suas tentativas de determinar um tipo ético representativo da nacionalidade ou, pelo menos, simbólico dela. Euclides da Cunha e a comunidade científica Na obra de Euclides da Cunha podemos perceber a influência de várias teorias que estavam em voga na época e, por isso, temos que entender como ele entrou em contato com elas. O regulamento implantado em 1874 na Escola Militar da Praia Vermelha, onde Euclides da Cunha realizou seus estudos de engenharia, foi implantado num "ambiente intelectual já permeável às doutrinas cientificistas, de cunho positivista, evolucionista ou determinista."(SANTANA: 35) Por adotar o modelo francês uma das principais características da Escola Militar era a ênfase dada aos estudos matemáticos e um currículo que abrangia as ciências básicas para a formação de um engenheiro. Segundo Walnice Galvão, o estudo na Escola Militar foi muito importante para o conhecimento presente nos Sertões, "se compararmos as áreas de conhecimento que lá são mobilizadas com o currículo da Escola quando ele era aluno, verificamos que ele já estava familiarizado com boa parte delas. Tinha estudado na Escola química orgânica, mineralogia, geologia, botânica, arquitetura civil e militar, construção de estradas, desenho topográfico, ótica, astronomia, geodésia, administração militar, tática e estratégia, história militar, balística, mecânica racional, tecnologia militar e as matemáticas.(...) Como matérias de currículo, não teriam sido obrigatoriamente estudadas a fundo, conforme se percebe no livro, mas é com vistas afinadas para estes saberes que Euclides avalia Canudos e a guerra."(SANTANA: 43) Como podemos explicar então o fato de teorias não necessariamente ligadas com a engenharia estarem presentes na obra de Euclides da Cunha, já que como afirma Sevcenko, ele se utiliza de "bases genéricas do comtismo, para fundi-las com a sociologia organicista e a filosofias biossociais de cunhagem inglesa e alemã"(SEVCENKO, 1981: 149). O contato com as correntes cientificistas não se davam exclusivamente via sala de aula, mas "incorporadas ao cotidiano dos alunos através de revista e sessões de sociedades estudantis, onde se poderiam acompanhar os debates das teorias cientificistas mais modernas, como as de Spencer, Haeckel e Darwin."(SANTANA: 35) Depois de formado, Euclides da Cunha continua em contato com os escritos desses autores e também passa a ler escritos sobre o Brasil, como as obras de Varnhagem, Morize, Caminhoá, Silvio Romero, Capistrano de Abreu, Teodoro Sampaio, Derby, Saint-Hilaire, Liais. Em São Paulo, Euclides da Cunha encontra alguns desses novos autores que foram contratados para trabalhar nas recém implantadas instituições, das quais são exemplos: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886), o Instituto Agronômico de Campinas (1887), o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1892), a Escola Politécnica de São Paulo (1893) e o Museu Paulista (1894). Euclides da Cunha era um integrante dessa comunidade científica e, apesar de só entrar para o IHGB depois de escrever os Sertões, já era filiado ao IHSP desde 1897 e à Comissão de História e Estatística de São Paulo desde 1898. Estes eram os espaços que permitiam a relação entre os filiados e as outras instituições e, principalmente, a difusão dos trabalhos dos pesquisadores. O LIVRO A divisão interna da obra é fruto da influência sofrida por Euclides do historiador francês Taine, o qual formulou no seu livro “Histoire de la Littérature Anglaise(1863)”, a concepção naturalista da história – teoria que defendia que a história é determinada por três fatores: meio, raça e momento. Tal concepção naturalista foi seguida pelo autor ao dividir “Os Sertões” em três partes correspondentes aos fatores de Taine: “A Terra”, “O Homem” e “A Luta” . É também do historiador francês a citação que consta na nota preliminar do livro a qual traz a idéia que o “narrador sincero” deveria ser capaz de se sentir um bárbaro entre os bárbaros, com um antigo entre os antigos. No plano interpretativo, o professor Alfredo Bosi propõe a divisão da obra em dois grandes planos: primeiro o plano histórico, que corresponde a parte final do livro – “ A Luta” – , sendo que este é seguido pelo plano interpretativo que, por sua vez, corresponde às duas divisões iniciais do mesmo (“A Terra” e “O Homem”). O momento histórico se reflete na obra tanto na estrutura determinista (que defende que os estudos devem partir dos aspectos geológicos, passando para detecção das variações climáticas para finalmente chegar ao último elo da cadeia que é o homem) quanto no raciocínio homólogo entre as ciências, onde verificamos a transposição de idéias da biologia e geologia para a explicação dos fenômenos humanos. Como pudemos observar ao longo do presente trabalho, Euclides da Cunha era, em poucas palavras, um engenheiro militar, republicano, positivista que viveu na segunda metade do século XIX em um país culturalmente preso à França; e é com esse indivíduo que devemos nos dialogar durante a leitura desta obra. Até agora, nos detemos em fazer uma análise do momento, do contexto, da vida, da ciência no Brasil, que envolveram o autor e sua obra, pois acreditamos que esse é o instrumental teórico necessário para analisar um texto de tão profundo impacto quanto “Os Sertões”. Uma leitura que eventualmente não atente para estes detalhes pode deixar de observar a importância desta obra, ou então, cometendo um anacronismo imensurável, taxá-la de racista. Passemos agora ao texto e suas características principais. A “Nota Preliminar” da obra mostra, de uma maneira resumida, qual é o instrumental teórico do autor. Quando Euclides usa termos como “sub-raça sertaneja”, ele admite ser adepto tanto do determinismo biológico quanto do darwinismo social. A marcha da civilização avançaria inexoravelmente sobre o sertão “no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes” (GALVÃO, 1998: 14), porém, a Campanha de Canudos constituía em um retrocesso, um crime. Este é o primeiro grande contraste de uma obra cheia deles: os homens desenvolvidos do sul e do litoral que deveriam civilizar a sub-raça que vivia isolada na “terra ignota” do interior, leva na verdade a morte para homens, mulheres, velhos e crianças. O PLANO INTERPRETATIVO As características de topógrafo, engenheiro e geógrafo, colocam em destaque a riqueza técnica e a sensibilidade do autor na descrição das várias paisagens do Brasil. Um exemplo dos conhecimentos técnicos é quando o mesmo explica a sazonalidade e a previsibilidade das secas do nordeste. Neste trecho fica demonstrado que o autor não só descreve como problematiza as questões climáticas porque tem conhecimento de causa. “Como quer que seja, o penoso regime dos estados do Norte está em função de agentes desordenados e fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeita às perturbações locais, derivadas da natureza da terra. Daí as correntes aéreas que o desequilíbram. (...)Um dos motivos da seca repousa, assim, na disposição topográfica.(GALVÃO, 1998: 43) O sertão é tão inóspito que até a natureza se contorce para ali viver. E como a natureza também o homem se modifica e se adapta a ela. Euclides denuncia de certa forma o fato desta área ser muito mal estudada, e, até nessa questão, culpa a natureza por isso. O sertão e o sertanejo são algo nunca dantes entendidos e estudados e isto é um dos fatores que fizeram de sua obra tão lida e tão comentada na época. As comparações entre o sul e o norte mostram que desde o início da obra Euclides tem como objetivo mostrar como que, através do determinismo geográfico, se formou uma sub-raça mestiça no sertão. O sul seria a terra que atraí o homem e o norte a que expulsa, como podemos ver nos trechos abaixo: “E por mais inexperto que seja o observador – ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas voragens”(GALVÃO, 1998: 29) “ Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma essencial entre o Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regime meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o sertão e a costa.”(GALVÃO, 1998: 74) A partir de tais comparações o autor toma como certeza que a aclimatação dos indivíduos seria prejudicial para o desenvolvimento dos mesmo. O europeu do que colonizou o Norte teria sido corrompido pelo clima, já o do sul teria mantido as características superiores pela mesma razão. “A aclimatação traduz um evolução regressiva. O tipo desaparece num esvaecimento contínuo, que se lhe permite a descendência até à extinção total. Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos.”(GALVÃO, 1998: 79) Neste trecho temos em resumo a idéia do porquê que o autor descreve tão detalhadamente a terra. São as teorias deterministas, tanto biológicas quanto geográficas, que o norteam. O homem é um fruto de seu lugar. Para o Euclides que escreve antes de ver pessoalmente o desmonte criminoso do arraial de Canudos, as leis européias são as máximas vigentes. Os tipos brasileiros, como o sertanejo e o gaúcho, resultaram não só da mestiçagem mas também da interação entre homem e natureza, homem e sociedade. Continua a operar o paralelo entre as séries, especialmente entre as mais próximas: as espécies de plantas e de animais devem a sua anatomia e fisiologia tanto à herança quanto a seculares esforços de adaptação ao meio e aos outros organismos. A simetria, que se dá por provada no nível genético e no nível mesológico, estendendo-se ao social. E os caracteres raciais ora confirmam-se ora se alteram no curso histórico da luta pela vida. A descrição geográfica da região onde se instala o “Belo Monte” de Conselheiro, é detalhada, o que dá à obra uma característica própria do autor. O clima, o solo, os ventos, as chuvas, a temperatura, os animais e o homem, tudo é descrito não só apenas por um observador atento mas por um cientista natural.
Para ilustrar a idéia de que o sertanejo é um forte, Euclides da Cunha cria a metáfora da rocha viva. Como vimos na época que escreveu os Sertões Euclides estava em São José para reconstruir um ponte que havia tombado, ele acaba encontrando uma base muito firme para essa reconstrução: o granito. A partir daí desenvolve uma correlação entre a pedra e o homem do sertão. Respondendo à criticas de que essa metáfora entrava em contradição com sua afirmação da inexistência da unidade racial brasileira o próprio Euclides explica-a numa segunda edição do livro. "Rocha viva...A locução sugere-me um símile eloqüente. De fato, a nossa formação como a do granito surge de três elementos principais . Entretanto quem ascende por um cerro granítico encontra os mais diversos elementos: aqui a argila pura do feldspato decomposto, variamente colorida; além da mica fracionada, rebrilhando escassamente sobre o chão; adiante friável, do quartzo triturado; mais longe o bloco moutnné, de aparência errática; de e por toda a banda a mistura desses mesmos elementos com a adição de outros, adventicios, formando a incaracterístico solo arável, altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra. Os elementos esparsos, em cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto guarda até os materiais estranhos trazidos pelo vento, ali estão, embaixo, fixos numa dosagem segura, e resistentes, e íntegros. Assim, à medida que aprofunda, o observador se aproxima da matriz de todo definida no local. Ora o nosso caso é idêntico - desde que sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão. A principio uma dispersão estonteadora de atributos, que vão de todas as nuances da cor a todos os aspectos do caráter: Não há distinguir-se o brasileiro intrincado misto de brancos, negros e mulatos de todos os sangues e de todos os matizes. Estamos à superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação de há pouco, calcamos o húmos indefinido da nossa raça. Mas estranhando-nos na terra vemos os primeiros grupos fixos - o caipira no sul, e o tabaréu, ao norte - onde já se tornam raros o branco, o negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz, entretanto, ainda todas as variedades das dosagens díspares dos cruzamentos. Mas a medida que prosseguimos estas últimas se atenuam. Vai-se notando maior uniformidade nos caracteres físicos e morais. Por fim a rocha viva - o sertanejo"(CUNHA, 1939: 580) Euclides da Cunha não encontra o tipo brasileiro, que segundo ele próprio talvez nem exista, mas estabelece um símbolo da nacionalidade, símbolo que podia se prestar "a operar como um eixo sólido que centrasse, dirigisse e organizasse as reflexões desnorteadas sobre a realidade nacional."(SEVCENKO, 1981: 106)
Carismático e penitente, o profeta conseguiu reunir muitos sertanejos de fé extremada. O povoado é descrito como se constituísse um agrupamento de bárbaros, uma tribo e até mesmo um clã. O autor dá considerável destaque para o fator que chegado certo tempo, todo o tipo de gente se dirige para Canudos o que causou um despovoamento das cidades vizinhas. Porém uma vez dentro do arraial, os diferentes se tornavam iguais e a coletividade de homogeinizava de uma forma que surpreendente. “O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso bruto. Absorvia-o a psicose coletiva”(GALVÃO, 1998: 163) Em linhas gerais, podemos definir esta parte do livro, o plano interpretativo de Bosi, a partir dos contrastes nela enunciados. São eles os travados entre a região sul e norte do Brasil, entre o litoral e o sertão nordestino, entre o sertão seco (infernal) e o sertão depois da chuvas (padisíaco) e finalmente entre o mestiço do sertão – curiboca – e o mestiço do litoral – mulato. As descrições ricamente cheias de detalhes preparam o leitor para o plano histórico onde os fatos de desencadearão. Mais do que saber o que foi a Campanha, Euclides da Cunha nos oferece a partir de seu livro um “raio x” do sertão e do sertanejo como nunca fora antes feito. O leitor vai para “A Luta” sabendo quem e como vivem os atores deste triste episódio da história brasileira. O FINAL É importante pensar no mito que se criou em torno tanto do autor, quanto da obra. Existe ainda hoje uma relação passional com a figura de Euclides: duas cidades brigam para decidir aonde vão ficar seus restos mortais – São José do Rio Pardo, aonde escreveu o livro e Cantagalo, hoje também conhecida como Euclidolândia, aonde nasceu. O livro, publicado cinco anos após o fim de Canudos, mesmo sendo um ataque ao exército e uma denúncia do genocídio causado pela República, é um sucesso e vende muito assim que publicado. Criador e criatura viram ícones. Mas para entender a criação deste mito, é preciso ver que este é um quebra-cabeça de várias partes. O próprio Dante Moreira Leite, justifica a importância e repercussão do livro por sua linguagem. “Se assim é, se a obra de Euclides da Cunha apresenta contradições tão nítidas – algumas das quais foram percebidas pelos primeiros leitores e críticos – pode-se perguntar como pôde ter uma repercussão tão grande. Esta não será compreendida se não lembrarmos o seu valor literário; embora não seja livro fácil, nem destinado a uma leitura desatenta, Os Sertões contém elementos de intensa dramaticidade, apresentados numa linguagem solene e adequada à grandeza da narrativa”. (LEITE, 1983:229) Talvez o que mais marcou sua vida, tanto quanto sua obra, foi a sua viagem a canudos. Euclides era um cientificista, dentre muitas outras coisas, que vivia em uma época em que não se “ia à luta”. Teóricos trabalhavam apenas sobre livros, mas Euclides vai a Canudos e suas idéias ganham dinâmica. Dante Moreira Leite analisa como tal experiência repercutiu em uma linguagem muito mais realista e vibrante: “(...) o estilo de Euclides, capaz de transmitir ao leitor a vibração de revolta diante dos acontecimentos de Canudos; além disso, como o livro pretende ser estritamente realista e, mais ainda, um livro de ciência, a sua prosa dramática adquire, talvez por estar contida nos limites da realidade histórica, uma intensidade que não teria na ficção.” (LEITE, 1983:222) Muitas de suas concepções são alteradas. Diversas vezes, Canudos é associado ao movimento francês da Vendéia – como aparece : “Canudos era a nossa Vendéia” – sendo visto como um movimento monarquista por Euclides. Mas, “o contato direto com as condições físicas e morais do sertanejo”(BOSI) , como defende Bosi, acabou por desmentir o pressuposto. No entanto, como depois também vai apontar Bosi, a interpretação se achava presa a um sistema de pensar fatalista. Entre o observador atento e a “cidadela-mundéu” dos jagunços havia mais do que um simples olhar desprevenido: a fixação do homem e o relato da luta não se fariam sem a tela das mediações ideológica e literária. Antônio Conselheiro vai ser sempre o fruto mórbido de uma cultura propensa à desordem e ao crime. Como a sociedade que o produziu, ele tende a reviver esquemas regressivos de conduta e linguagem. Como aparece no livro: “É natural que estas camadas profundas de nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária – Antônio Conselheiro... As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado, dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isso o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais – vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos a multidão, mas enérgicos e definidos, quando definidos numa ‘individualidade’ (... ) É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências ‘pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade...” A linguagem, como já explicitamos anteriormente, é extremamente marcante e importante em Os Sertões. Euclides se utiliza inúmeras vezes de estilos e figuras com certas finalidades. Em suas “Notas de Leitura”, ele mesmo afirma: “Vemos o quanto é forte esta alavanca – a palavra – que levanta sociedades inteiras, derriba tiranias seculares”. Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion, alevantava-se sobre os sertões...” (CUNHA, 1985:314,315) E foi realmente este seu estilo que o consagrou logo que publicou pela primeira vez Os Sertões, mesmo sendo o seu conteúdo, quem traz sua importância: a de conseguir ultrapassar o científico, ir à luta, ver, sentir e mudar. Sua visão de mundo muda com sua vivência em Canudos. Mas talvez seja um pouco complicado tratar da visão de mundo de um homem tendo lido apenas um livro seu. Nicolau Sevcenko, em sua tese de doutoramento, faz uma análise minuciosa do que ele mesmo entende por “visão de mundo”, porém, para isso, se baseia em praticamente tudo que o autor deixou escrito. Como aparece na referida tese: “A partir da maneira como Euclides da Cunha dispõe, dá coerência, organiza e estrutura as concepções e idéias que lhe suscita a realidade circunjacente, no interior do espaço peculiar aberto por sua linguagem, é que podemos descortinar a sua visão de mundo. Assumem preponderância aqui as suas anotações de caráter mais pessoal, que serão cotejadas com as grandes diretrizes imprimidas pelo autor à sua obra e que vêm de ser apresentadas.” (SEVCENKO, 1981:211) Então vamos ao final de canudos: “Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos. Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem... E de que modo comentaríamos, coma só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história? Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5200, cuidadosamente contadas. Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desprazido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tabua, o corpo do ‘famigerado e bárbaro’ agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, os olhos fundos cheios de terra – mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida. Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa – único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! -- faziam-se mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa agulheta de tecidos decompostos. Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita – e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores. Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...” CONSIDERAÇÕES FINAIS O livro acaba mas não termina. Com esta obra o Brasil ganhava uma das suas mais importantes reflexões sobre a identidade nacional. O escritor do início da obra, positivista que acreditava na república, é o mesmo que denuncia a dor a fome e a barbárie. Canudos foi um crime cometido para e pela reiteração da república. O cancro monarquista nunca existiu naquela terra esquecida pelos seus governantes e o Estado só chegara tão longe para trazer a injustiça e a morte. Essa não era a república reclamada pelo autor. Como identidade nacional, podemos tirar desta obra a seguinte frase: “A nação brasileira é o resultado de uma angústia racial”. Euclides sofre essa angústia da qual as “leis” européias não dão conta. O Brasil é um país sem seu tipo antropológico definido e ele, Euclides da Cunha, é o primeiro que se propões a fazer um estudo a fundo desses cruzamentos todos que nos formam. Euclides não mascarou a realidade porque não pregou uma falsa igualdade social entre as “raças”, o que seria feito por outros como Oliveira Viana, ou Afonso Celso. Se hoje podemos enxergar mais longe que Euclides é porque somos pigmeus olhando do ombro de gigantes como ele. Sites sobre Euclides de Cunha e Canudos Centro de Estudos Euclides da Cunha * * * * * Movimento Popular e Histórico de Canudos * * * * * Centro de Estudos Culturais Euclides da Cunha * * * * * Canudos 100 Anos * * * * * Acervo da Historia do Brasil * * * * * O Olho da História * * * * * Canudos - A Guerra sem fim * * * * * Canudos * * * * * Fotos sobre Canudos * * * * * Os Sertões Illustrated * * * * * Site da Casa de Cultura Euclides da Cunha, com vasto material sobre Euclides e Os Sertões * * * * * O Berrante Online é um site sobre temas ligados a Euclides da Cunha e a realidade da cultura brasileira em geral * * * * * Coletivo Euclidiano * * * * * Página organizada pela família de Euclides da Cunha * * * * * Textos e ficha técnica do documentário Os Sertões produzido pela TV Cultura - SP http://www.portfolium.com.br/caudos.htm * * * * * Os mais completos sites sobre Canudos Estudos realizados sobre o livro “Os Sertões” de Euclides da Cunha 1. Título: Os Sertões - Campanha de Canudos 2. Título: Os Sertões de Euclides da Cunha 4. Título: As Colectividades Anormais 5. Título: Meu Folclore - História da Guerra de Canudos 6. Título: A Verdade sobre Os Sertões - Análise Reivindicatória da Campanha de Canudos 7. Título: A' Margem D"Os Sertões" 8. Título: Introdução ao Pensamento de Euclides da Cunha 9. Título: Caderneta de Campo 10. Título: O Episódio de Canudos de Euclides da Cunha 11. Título: 80 anos de Os Sertões de Euclides da Cunha (1902-1982) 12. Título: Toponímia Indigenista em Os Sertões de Euclides da Cunha. 14. Título: Os Médicos Baianos e "Canudos" 16. Título: Sertão de Euclides da Cunha - Família e Poder: uma Leitura 17. Título: Canudos e Outros Temas 19. Título: A Sociologia dos Sertões 20. Título: Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, Através dos Sertões - Os Livros, os Autores 21. Título: O Olho da História - Revista de História Contemporânea, v.2, n.3 22. Título: Índice Remissivo: Documentação Histórica sobre Canudos. 23. Título: Guia do Acervo do CEEC 26. Título: Terra Ignota - A Construção de "Os Sertões" 27. Título: Canudos - Fato e Fabula: Uma Leitura d'Os Sertões, de Euclides da Cunha. 28. Título: A Contribuição das Ciências Naturais para o Consórcio da Ciência e da Arte em Euclides da Cunha BIBLIOGRAFIA SCHWARCZ, Lilia Mortiz, O Espetáculo das Raças - Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil 1870 - 1930 São Paulo, Cia das Letras, 1993. SKIDEMORE, Thomas E., O Brasil Visto de Fora, Rio de Janeiro Paz na Terra, 1994. VENTURA Roberto. CANUDOS COMO CIDADE ILETRADA: EUCLIDES DA CUNHA NA URBS MONSTRUOSA, Extraído de: Abdala Jr, Benjamin & Alexandre, Isabel, orgs. Canudos Palavra de Deus Povo da Terra. São Paulo, Editora Senac São Paulo, Boitempo Editorial, 1997. p. 89-99. SEVCENKO, Nicolau; Euclides da Cunha e Lima Barreto: A Literatura como missão, 1900-1920.Tese de doutoramento, departamento de História FFLCH – USP, São Paulo 1981. GALVÃO, Walnice Nogueira. “Os Sertões – Campanha de Canudos : Edição Crítica de”. Ática, 1998, p.14 LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1983, 4a edição BOSI, Alfredo : “A releitura de ‘Os sertões’ hoje”. Arquivo retirado da Internet Fonte: |