Manuelina Maria Duarte Cândido [1]
Ao falar de sua formação profissional, Vinos Sofka destacou, no percurso para chegar a ser museólogo, o senso sistemático e aptidões interdisciplinares de advogado, métodos gerenciais de administrador, habilidades manuais de pedreiro e sabedoria de pessoa comum (Sofka, 1995 apud Cerávolo, 2004: 249).
Esta informação introduz nossa reflexão sobre museus e conhecimento interdisciplinar ao apresentar uma trajetória que não é única e que nos leva a pensar o que faz desse campo atraente aos olhos de arquitetos, historiadores, arqueólogos, biólogos, bibliotecários, médicos, engenheiros... E ao mesmo tempo, o que a Museologia e os museus têm a ganhar e aprender com essa interdisciplinaridade.
Segundo Bruno (1996), a Museologia é uma disciplina aplicada cujas preocupações principais são a identificação e análise do comportamento do homem em relação ao seu patrimônio; e o desenvolvimento de processos que convertam o patrimônio em herança e participem da construção das identidades. A especificidade da Museologia é o estudo do fato museal, conceituado por Rússio como “a relação profunda entre o homem, sujeito conhecedor, e o objeto que é parte da realidade à qual o homem pertence e sobre a qual ele age”(Rússio, apud Santos, 1996: 92).
Como disciplina aplicada podemos destacar dois aspectos: por um lado o viés de aplicação não prescinde da teoria mas também impõe a necessidade da experimentação para elaboração e revisão do pensamento teórico. Por outro, aplicando-se à comunicação do saber produzido em outras áreas do conhecimento, a Museologia compreende a impossibilidade de se desenvolver em um percurso solitário, visto que seus métodos e técnicas (e conseqüentemente a teorização) estão intimamente ligados à natureza dos acervos ou das referências patrimoniais, não são pura abstração. E necessitam, por isso, dialogar com os diferentes campos disciplinares, denominados na bibliografia áreas de pesquisa básica.
Por esta razão independente do modelo museológico, de uma instituição museológica ser mais ou menos tradicional, ela sempre deverá ter o amparo interdisciplinar, embora haja disciplinas mais reforçadas em diferentes modelos institucionais, como veremos.
Waldisa Russio em seus escritos recomendava a interdisciplinaridade como método de pesquisa, de ação e de formação profissional em museus. Convocava a uma associação dos recursos humanos e à “reflexão conjunta de muitas inteligências sobre um mesmo projeto” (RUSSIO, 1977: 133), postura essa que, em sua análise, não é alimentada pelos modelos de formação em Museologia de então.
A interdisciplinaridade é tida como “crítica da especialização e recusa de uma ordem institucional dividida”(Portella in Chagas, 1994: 47). Percebemos a Museologia como uma articuladora em equipes interdisciplinares, voltada para a comunicação e gestão da informação gerada em outras áreas do conhecimento. A Museologia tem um forte papel de mediação, entre referência patrimonial e sociedade, entre conhecimento científico e público leigo, e entre os diferentes campos do conhecimento que se articulam no museu.
Note-se que isto não significa dizer que a Museologia não produza ela mesma conhecimento novo, mas que este conhecimento deve ter como interesse a mediação de grupos de trabalho interdisciplinares envolvidos em processos de comunicação e gestão de informação proveniente de outros campos, chamados áreas básicas. Os museus são, portanto, um locus com grande potencial para experimentação do conhecimento interdisciplinar (tanto de sua construção como de sua fruição).
A conexão entre museus e conhecimento interdisciplinar ocorre intrinsecamente pelo exercício do saber-fazer museológico, visto que a Museologia se operacionaliza por intermédio de uma cadeia complexa de ações de salvaguarda e de comunicação patrimoniais. Aquela se desdobra em documentação e conservação, que podem envolver conhecimentos (e profissionais) oriundos de áreas como Restauração, Ciências da Informação, Química, Biologia, Informática, Audiovisual, além dos profissionais ligados ao campo específico do acervo. A comunicação envolve expografia e ação educativo-cultural, que por sua vez remetem a uma articulação de conhecimentos ligados a Arquitetura, Cenografia, Comunicação Visual, Pedagogia, Avaliação, e, mais uma vez, da área básica ligada às referências patrimoniais que serão comunicadas.
Além destas disciplinas envolvidas nas ações da cadeia operatória museológica e na pesquisa e produção do conhecimento a partir dos acervos, há todo um âmbito da gestão do museu que envolve Administração, Recursos Humanos, Economia, Direito e outros campos do conhecimento.
Por um lado, a formação museológica em nível de pós-graduação permite acrescentar a estas áreas básicas o saber museológico. Por outro, a formação em nível de graduação nos desafia a apresentar este universo amplo sem perder a especificidade da Museologia e sem ser raso nas abordagens das disciplinas afins, permitindo ao aluno em formação compreender seu papel específico na equipe interdisciplinar e escolher em que área da Museologia deseja se especializar.
Pensamos que a Museologia seja uma apenas, ainda que com importantes vagas/ ondas de renovação. A especificidade da ação preservacionista, voltada para a salvaguarda e comunicação das referências patrimoniais, seja em que modelo se desenvolva irá sempre lançar mão de conhecimentos de diversos campos do saber. Varine-Bohan (in Desvallées, 1992: 64-65), ao propor a formação para profissionais de museus adequados para servirem ao desenvolvimento do homem apresenta três domínios principais cuja articulação permitirá à Museologia preparar profissionais em sintonia com essa demanda:
- Antropologia Social e Cultural, Sociologia, Psicologia, Economia (aplicadas aos problemas nacionais e locais de desenvolvimento);
- Estudos de metodologia (do trabalho multidisciplinar, das comunicações de massa, da pedagogia, das pesquisas de avaliação);
- Elaboração de técnicas de desenvolvimento adaptadas ao caráter específico do museu.
Foi na Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972) que surgiu a idéia traduzida como a de um museu integral. Entretanto, por não ser possível musealizar tudo, por serem indissociáveis memória, museu e seleção, a reflexão museológica internacional vem questionando este conceito e se aproximando do museu integrado, sugerido em 1992, em Caracas. Ao invés da pretensão de totalidade, a viabilização da integração. No plano prático, esta posição conduz aos museus interdisciplinares devido à integração: entre diferentes vertentes patrimoniais – conseqüentemente de disciplinas e de profissionais; entre diversas atividades e setores das instituições museológicas; entre as comunidades e os museus.
Partindo das mesmas premissas, o museu concebido por Desvallées (1992 : 59) é necessariamente interdisciplinar: “Ce musée présente tout en fonction de l’homme: son environnement, ses croyances, ses activités, de la plus élémentaire à la plus complexe. Le point focal du musée n’est plus l’‘artefact’ mais l’Homme dans sa plénitude”[2]. Por este enfoque amplo sobre o homem, os museus se vinculam necessariamente ao conhecimento interdisciplinar. Hernandez-Hernandez (2006, 331) afirma que o discurso museológico deve ser aberto, plural, diversificado, multilíngüe e multifacetado como é a experiência das diferentes sociedades que formam a história da humanidade.
Para Waldisa Rússio (s.d.) o museu se refere ao homem e à vida, e para dar conta desta complexidade precisa lançar mão do conhecimento integrado que a extrema especialização precisou separar.
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Referências Bibliográficas
- BRUNO, Cristina. “Museologia: algumas idéias para a sua organização disciplinar” in BRUNO, Cristina. Museologia e comunicação. Lisboa: ULHT, 1996. (Cadernos de Sociomuseologia, n. 9). p. 09-38.
- Cândido, Manuelina Maria Duarte. Ondas do Pensamento Museológico Brasileiro. Lisboa: ULHT, 2003. (Cadernos de Sociomuseologia, 20). 259 p.
- DESVALLÉES, André. Vagues: une anthologie de la nouvelle museologie. Paris: W M. N. E. S., 1992. Vol. 1.
- Hernandez-HernandeZ, Francisca. El discurso museológico y la interpretación crítica de la historia. ICOFOM. Museología e historia: un campo del conocimiento. Córdoba, Argentina, 2006. p. 325-333. (ICOFOM study series; ISS 35).
- CHAGAS, Mário. Novos rumos da Museologia. Lisboa: ULHT, 1994. (Cadernos de Sociomuseologia, 2)
- GUARNIERI, W. C. A interdisciplinaridade em Museologia. Texto de aula, sem data.
- SOFKA, 1995 apud CERÁVOLO, Suely Moraes. Delineamentos para uma teoria da Museologia. Anais do Museu Paulista, v. 12. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004. p. 237-268.
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[1] Historiadora, especialista em Museologia, mestre em Arqueologia
[2] Tradução livre: “Este museu apresenta tudo em função do homem: seu meio ambiente, suas crenças, suas atividades, da mais simples à mais complexa. O ponto focal do museu não é o artefato, mas o Homem, em sua plenitude.”
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