Europa, final da Idade Média, crise do Modo de Produção Feudal. Classicamente, se diz que o Modo de Produção entrou em contradição com os interesses das Forças Produtivas. Naquele caso, embora a densidade demográfica crescesse assustadoramente, de nada adiantava produzir mais porque o excedente não iria para aqueles deles necessitados; iria engordar ainda mais os cofres da Nobreza...
As pessoas começam a se rebelar, fogem dos feudos (a que eram “presas” por laços de honra) e passam a roubar ou com parcos recursos comprar bens baratos a grandes distâncias vendendo-os mais caro onde eram desejados – ressaltem-se as famosas “especiarias” -, ou seja, na Europa. A prática do lucro era condenada pela Igreja Católica, a maior potência do mundo à época. Mas para os fugitivos dos feudos, fundadores de burgos, que serão mais tarde chamados de “burgueses”, não restava outra alternativa exceto a atividade comercial voltada ao lucro, tida como “desonesta” por praticamente todas as culturas e civilizações do mundo a partir de todos os pontos de vista éticos.
O capitalismo era como um pequenino câncer que surgiu no final da sociedade feudal. Foi crescendo, crescendo e hoje, a burguesia e seus interesses comerciais se sobrepõem ao ser humano numa infecção que contamina todo o planeta. Aquelas sociedades que buscam a cura para este mal são “reconvertidas” ao satanismo pagão de holocaustos ao deus-mercado através de diversas formas de pressão e, no limite, uso da força física, como ocorreu no Chile de Salvador Allende e, mais recentemente, no Afeganistão – um com proposta socialista, outro com proposta islâmica; ambos intoleráveis hereges dentro do fundamentalismo de mercado.
Era fundamental reorganizar a sociedade de maneira a que os novos donos da riqueza fossem também os donos do poder. Surge uma nova religião para reforçar uma ética mais consentânea com os tempos cambiantes: surge o protestantismo. Os padres diziam nas missas – embora sua prática fosse bem outra... – ser “mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”, reiterando serem pecaminosos aqueles que praticavam a cobrança de juros, lucros... “Usurários”, enfim, eram todos enfileirados no caminho que conduz ao fogo do inferno. Por outro lado começam a surgir ex-padres, agora pastores que passam a informar: “se a mão de Deus estiver sobre a sua cabeça, você prosperará imensamente nesta terra; nisso você verá um sinal de estar sendo por ele abençoado”... Se você tivesse enriquecido à beça na base do comércio lucrativo, ou do empréstimo a juros, preferiria o discurso do padre (vale repetir, em contradição com a sua prática) ou o do pastor? Assim cresceram as seitas protestantes pelo mundo afora.
Politicamente a burguesia endinheirada sentia-se lesada tendo de pagar tributos à antiga nobreza, agora praticamente falida. No início compravam títulos de nobres aos de antiga linhagem – que os discriminavam! – a seguir passaram a pensar em alternativas mais radicais (ser radical é ir à raiz e a burguesia foi radical no período de suas glórias revolucionárias!) como convocar os trabalhadores a uma aliança contra a nobreza e implantar um novo tipo de regime político, muito mais interessante e lucrativo para a burguesia, a “república”. Os burgueses convocaram seus empregados, desempregados e desesperados, superiores em número, para uma aliança contra a nobreza ou “antigo regime” e, após muitos percalços, saem-se vitoriosos. Agora, “duque”, “king” e “marquesa” passam a ser nomes de animais domésticos da burguesia! O passo seguinte foi agradecer e condecorar trabalhadores, desempregados e desesperados e mandá-los de volta a seus trabalhos, a seus desempregos e a seu desespero.
Estes, à medida que se conscientizavam de que foram usados para uma troca de poder que em absolutamente nada lhes beneficiou começam a organizar-se em sindicatos e outras agremiações classistas, por vezes secretas, maçônicas mesmo, por vezes aberta mas sempre e imediatamente proclamadas ilegais ou heréticas e perseguidas por todo o aparato estatal e religioso que a burguesia podia colocar em marcha!
Karl Marx
Originário da Renânia, um pedaço da enorme colcha de retalhos que mais tarde constituiria a Nação Alemã, filho de burgueses e educado no mais rigoroso protestantismo, incrivelmente perspicaz, cedo percebeu que enquanto houver neste mundo gente que se alimenta e gente que passa fome, enquanto houver opressores e oprimidos a espécie humana inteira estará refém da insânia. Chegou à conclusão de que somente a partir do ponto de vista de quem não tem absolutamente nada a perder se pode almejar a vislumbrar a verdade. Adotando o ponto de vista dos trabalhadores criou um ferramental intelectual inédito e até hoje imbatido para a compreensão do Real. Com base no socialismo chamado “utópico” dos franceses, da filosofia clássica alemã (em particular o materialismo de Feuerbach e a dialética de Hegel) e a economia clássica inglesa construiu o MATERIALISMO DIALÉTICO, filosofia voltada não apenas à ascensão da classe trabalhadora ao poder, mas à libertação de toda a espécie humana de toda a classe de opressão e exploração.
Dialética
Há muito o que dizer e em que refletir sobre a Dialética; menciono apenas dois pontos...
Movimento: Tudo está em movimento, tudo se transforma, freqüentemente em seu contrário... É como as nuvens no céu: você olha, está de um jeito; olha novamente, a configuração já mudou completamente.
A essência é mais significativa que a aparência: Este postulado fez com que a Dialética ficasse conhecida como “Filosofia Negativa”, pois buscava a compreensão do que está para além da superfície, do “Positivo”, da mera aparência fenomênica de alguma coisa.
Augusto Comte e a “Física Social”
Evidentemente era necessário que a burguesia também produzisse uma teoria em defesa de seus pontos de vista e poucos foram tão brilhantes – e influenciaram tanto a nossa combalida Nação – quanto o positivismo.
Era necessário olvidar a essência e trabalhar com o que é perceptível aos sentidos físicos mais grosseiros e imediatos. Era necessário esquecer a “filosofia negativa” e, voltando ao reino das aparências criar uma filosofia capaz de compreender o social com tanta precisão quanto a matemática ou a física – que hoje sabemos também serem imprecisas...
Eivado de motivos nobres, impregnado de boas intenções, aquelas mesmas que pavimentam todas as estradas do inferno, Comte pregava a necessidade de “libertar o conhecimento social de toda a ingerência filosófica”, como se isso fosse possível... Mas... Se o fosse? Seria desejável? Se a filosofia responde a muitas questões que dizem respeito ao ser do homem no mundo, qualquer ciência que se volte a compreender o homem “afastando a ingerência filosófica” tende mais a falsear a compreensão do ser humano do que a compreendê-lo. Falando claramente: para que uma ciência humana mereça ser chamada de “científica”, tem de ser filosófica! O oposto disso é simplesmente fechar os olhos ao que constitui o SER do homem...
Mas Comte e seus discípulos criaram um sistema “científico” voltado a conciliar o inconciliável: a Luta de Classes. Olvidando totalmente a existência concreta de interesses antagônicos na Sociedade Burguesa, a Luta de Classes, busca integrar a todos em torno do ideal ou meta burguesa – “integralismo”, por sinal, tem esta raiz... –; crescendo por etapas ou degraus seria possível chegar-se a uma precisão “científica”, não filosófica, acerca da sociedade e do ser do homem. Os positivistas contemporâneos, que já percebem as falhas do positivismo clássico, mantêm suas mesmas raízes, suas mesmas motivações – “conciliar Capital e Trabalho”, “que os ricos sejam mais ricos para que, através deles os pobres sejam menos pobres”, e outras idiotices só críveis porque repetidas em altos brados e ad nauseam...
Durkheim e “As Regras...”
Discípulo genial de Comte, Émile Durkheim sistematizou algumas de suas idéias e foi o primeiro a usar efetivamente a expressão “Sociologia” para referir-se ao estudo em pauta, que seu mestre ainda chamava de “Física Social”.
O que é fato social? Tudo o que é coletivo, exterior ao indivíduo e coercitivo, em linhas gerais.
Como compreender o fato social? Primeiro passo: “Afastar sistematicamente as pré-noções”. Como se fosse possível ao ser humano estar acima de todos os sentimentos, emoções, e “juízos de valor”... Como se a própria colocação da questão – seja ela qual for – não traga nela embutidos os juízos ou as pré-noções... Posição hoje indefensável, Durkheim tem contudo enorme valor para a Sociologia contemporânea.
Weber – a jaula de ferro do capitalismo...
Max Weber, um dos maiores gênios do século XX, filho de pastor evangélico, lutou na Primeira Guerra Mundial como capitão do exército prussiano chegou à conclusão de que é necessário não tomar partido, separar o “lugar da teoria” do “lugar da prática” em ciência política. Segundo o capitão evangélico, a inteligência deve ser livre de vínculos (em alemão, Freischwebend Intelligenz). Sua posição de professor conservador, liberal, militar e evangélico talvez explique os motivos do “acidente de trabalho” que o conduziu a uma profundíssima crise depressiva que durou quatro longos anos em que até a alimentação era levada à sua boca pela esposa. Quatro anos em que, consta, não pronunciou uma única palavra, não escreveu uma única linha. De repente, o gênio adormecido desperta para o espanto de todos e compõe uma das mais geniais obras sociológicas do século XX – “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”.
Georg Lukács
Húngaro, o mais notável discípulo de Weber, percebe-lhe as limitações e conduz os avanços sociológicos que esta corrente positivista havia logrado atingir ao marxismo, a que se alinha com muito maior conforto. O Clássico “História e Consciência de Classe” é um leitura obrigatória a todo aquele que queira compreender o ser humano vivendo em sociedade. O peso de sua erudição não tira o interesse do trabalho, ao contrário. Foi um dos últimos brilhos a ir mais longe que Marx dentro do pensamento marxista.
Escola de Frankfurt
É fundamental citar o lugar dos teóricos de Frankfurt, particularmente Herbert Marcuse, que resgata a Dialética Materialista com grande ênfase à Dialética. Sua grande obra ainda é “Razão e Revolução”. É nela que se defende que o grande critério a submeter o Real é a Razão Humanista. O Capital é irracional: desiguala os semelhantes e equaliza os dessemelhantes. Você vale o quanto é capaz de produzir e é avaliado não pela grandeza de sua alma e de seus valores humanos, mas do quanto você tem em bens materiais. Isso é a Destruição da Razão (em alemão, “Zerstorung der Vernunft”).
Teologia da Libertação
Segundo os grandes filósofos europeus contemporâneos, esta é a grande contribuição da América Latina em geral e do Brasil em particular ao Saber Universal. O revolucionário em busca de um mundo melhor, como Che Guevara ou o padre Camilo Torres é equiparado aos primeiros cristãos. O comunismo nascente comparado ao cristianismo também em processo de parturição no Império Romano. Assim como o Império Romano negou o cristianismo por quase 400 anos, proclamando-lhe extinto, acabado, morto e era aterrorizado pelo fantasma de seu cadáver insepulto o Capital proclama reiteradas e repetidas vezes a “morte do comunismo”. O que Weber chamava de “jaula de ferro” os Teólogos da Libertação chamam de “pessimismo defensivo” da burguesia. Em síntese, eles dizem: “não tem jeito”. “Sempre foi e sempre será assim” – preenchendo o futuro como se houvesse uma linha invisível a ligar todos os tempos, como se a Vontade humana não houvesse sido capaz de proezas memoráveis como a transformação do Império Romano num Império Cristão; a travessia do “Mar Tenebroso” que todos “sabiam” intransponível e a chegada ao Novo Mundo; os exemplos se multiplicam.
E agora, o que fazer?
Como o saudoso Capitão Luís Carlos Prestes, morrerei convicto do Futuro Comunista da Humanidade! Não é possível saber como vamos suplantar esta situação amarga em que “o homem é o lobo do homem”. Não é crível que a espécie humana tenha de ser condenada ao inferno capitalista pelo resto da eternidade. O escravismo antigo não foi eterno (durou alguns milhares de anos), tampouco o foi o feudalismo (que durou cerca de um milênio). O capitalismo existe no mundo aí há uns quinhentos anos. No início como um pequenino carcinoma que hoje tomou conta do planeta todo. Mas o poder regenerativo do Humano surpreende mesmo aos médicos e, mesmo sem saber como será a Sociedade do Futuro, caso o próprio nome “comunismo” tenha se tornado pouco palatável do ponto de vista do marketing político, seguramente capitalista não será!
Lázaro Curvêlo Chaves - 20/01/2004
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