O museu é uma instituição em que se reproduz um regime semiótico de divulgação da cultura de uma determinada sociedade. Entrar num museu significa entrar num sistema ritualizado de ação social. Os museus podem desempenhar um papel significativo na democratização da cultura, bem como mudanças de seu conceito. Os museus também servem para ordenar a continuidade entre passado e presente, e entre os elementos autóctones e estrangeiros. Segundo Canclini (1996), na América Latina, os museus são peças importantes para a renovação da sua hegemonia cultural. Para sustentar seu argumento, cita que, no México, pela sua orientação nacionalista, há uma política preocupada em expandir a cultura visual. Em países cujas taxas de analfabetismo são grandes, é significativo o apelo visual para a compreensão da iconografia. Onde há ainda analfabetismo, documentar e organizar a cultura preferivelmente por meios escritos é uma forma de reservar às minorias a memória e o uso dos bens simbólicos.
No entanto, ainda segundo esse mesmo autor, a museografia tem subordinado o conhecimento conceitual à monumentalidade e à ritualização nacionalista do patrimônio. Assim, o Estado passa ao público o espetáculo de sua história como base de sua unidade e consciência política. Mas seria realmente o museu um espaço de divulgação cultural? É necessário atentar para o fato de que divulgar maciçamente o que se entende por cultura nem sempre é a melhor forma de fomentar a participação democrática e a sensibilização crítica. A divulgação em massa da arte "seleta", ao mesmo tempo em que pode ser considerada como uma ação socializadora, é também um procedimento para avalizar quem conhece sobre cultura, enfim, aqueles que sabem distinguir e separar forma e função nas manifestações artísticas.
Mas, antes mesmo de circularmos pelo espaço dos museus, consideremos inicialmente discutir o elemento essencial da existência dessa instituição: o patrimônio cultural, material e/ou imaterial (tangível e/ou intangível), que o constitui, pois sem esse tipo de acervo não poderíamos conceber os museus. Negar o patrimônio é negar a própria existência do museu, uma vez que estão dialeticamente entrelaçados.
Aquilo que se quer preservar como patrimônio cultural não são apenas objetos, mas seus sentidos e significados; aquilo que confere sentidos ao bem tangível é intangível, a preservação não constitui em si patrimônio. É necessário que o patrimônio a ser conservado, como prática social, tenha um remetente e um destinatário e esses reconheçam e agreguem valores para que o patrimônio possa ser partilhado. O remetente é aquele que dá sentido ao patrimônio, aquele que o considera como uma fonte histórica, uma fonte de memória ou simplesmente um elemento arqueológico. O destinatário é o educando, o pesquisador, o ser que busca conhecimento, o futuro portador de um legado sócio-cultural. Devemos destacar que o tombamento é uma característica da preservação do patrimônio e, como a memória, tem caráter seletivo. A perspectiva de tombamento ainda lida com forte premissa positivista, uma vez que são consideradas em sua metodologia de escolha categorias tais como "fatos memoráveis" e "de excepcionais valores" (CHAGAS, 2003). Embora não caiba neste espaço discutir tais categorias, é interessante registrar a forte presença positivista no crivo político para a cultura.
No Brasil, os bens "de pedra e cal"[*1] (expressão para patrimônio cultural material) ideologicamente conservado, confirmando a tese dos "fatos memoráveis" e "de excepcionais valores" são os monumentos vinculados às experiências vitoriosas da elite branca, da religião católica, aqueles vinculados ao Estado (palácios, fortes, fóruns). Também são conservados e preservadas os grandes feitos das elites econômicas, tais como fazendas, sobrados urbanos e fábricas.
A preservação do patrimônio cultural está intimamente ligada à preservação da memória. Nossa intenção é considerar o patrimônio cultural como fonte histórica primária, pois trata-se de um monumento, de uma expressão iconográfica, de uma linguagem, cujo tempo histórico imprime suas características estéticas, dando-lhe sentido e significado. Mas, ainda no campo da memória, a preservação do patrimônio cultural implica noções de valor e perigo, pois a tentativa de valorizar o bem para evitar o perigo de sua destruição é algo desejável para que se consiga o prolongamento da vida social por intermédio do bem cultural. É o reforço contínuo da existência da memória. A memória quando analisada e compreendida em suas múltiplas relações sociais torna-se ferramenta imprescindível para a história. A memória é um depositário do ser social, do coletivo, dos passos que o gênero humano dá, formando seu legado para posteriores gerações. Assim, é compreensível que a destruição é mais que um perigo que ameaça a sobrevivência do ente material; a destruição é ameaça para o próprio ser social que se objetiva em formas palpáveis, reais e idealizadas, cujas formas se expressam nos inúmeros materiais conhecidos que a humanidade trabalha continuamente, no vasto campo da natureza.
O patrimônio cultural é uma fonte historiográfica porque possibilita uma articulação do passado com o presente. E a articulação do passado não significa conhecer como este realmente ocorreu. Tal pressuposto positivista já foi arduamente criticado por diversas escolas historiográficas: pela escola francesa dos Annales e também pelo materialismo histórico/dialético.
Hoje, superada a opção de Vargas e Capanema pela simples "pedra e cal", podemos remeter-nos a avanços na preservação de patrimônios culturais para além do material, já que se tornou possível registrar o imaterial, ou intangível. Por intermédio do Decreto 3.551/2000, criou-se o Instituto do Registro[*2], que não é um instrumento de tutela e acautelamento análogo ao tombamento, o qual visa a identificação e a produção de conhecimento do bem imaterial como um equivalente documental (SANT'ANNA, 2003). A título de ilustração, o primeiro registro desse instrumento é o do ofício das Paneleiras de Goiabeiras, em Vitória (ES), reconhecido como patrimônio cultural brasileiro e inscrito no Livro de Registro de Saberes. Trata-se de um saber adquirido das técnicas de herança indígena (aprendidos por descendentes de escravos e posteriormente por colonos imigrantes). Tal ofício constitui-se de um processo controlado por mulheres - referente à produção artesanal das panelas. Por meio desse registro, pode-se verificar a possibilidade de várias análises. Uma diz respeito à cultura indígena que sobrevive através da manutenção de uma atividade artesanal, de um trabalho legado a continuadores não indígenas do ofício de transformar elementos naturais em dispositivos necessários à culinária regional. Uma outra análise permite apreender a presença do elemento negro (e posteriormente do imigrante branco) na preservação de uma outra cultura que não a sua, quando do emprego de sua força de trabalho: o trabalho é humano, é socialmente aprendido; sendo que, para a manutenção de um legado cultural, o que se torna substancial para a continuidade de um elemento cultural é a atividade do trabalho previamente codificado entre os seres humanos, independentemente da sua origem étnica. Além dessas análises, é possível perceber que há uma divisão de gênero na produção de bens, quando associa-se o trabalho de mulheres à transformação de elementos naturais em utensílios domésticos. Por fim, é curioso notar o interesse em manter o ofício em questão ao longo de séculos (trabalho que requer uma multidisciplinariede entre história e antropologia).
No entanto, para que haja a preservação de bens culturais, se torna necessária a criação de estruturas políticas para o desenvolvimento de tal empreitada. O que é socialmente produzido deve ser socialmente compartilhado. Numa sociedade em que a superação do Estado ainda não é uma realidade, cabe a essa instituição, em nome da coisa pública e de seu respectivo erário, garantir o legado cultural de seu povo. Uma experiência brasileira dessa monta é a existência institucional e política do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Conformesite oficial do órgão [*3]:
O Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi criado em 13 de janeiro de 1937 pela Lei nº 378, no governo de Getúlio Vargas. Já em 1936, o então Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, preocupado com a preservação do patrimônio cultural brasileiro, pediu a Mário de Andrade a elaboração de um anteprojeto de Lei para salvaguarda desses bens. Em seguida, confiou a Rodrigo Melo Franco de Andrade a tarefa de implantar o Serviço do Patrimônio. Posteriormente, em 30 de novembro de 1937, foi promulgado o Decreto-Lei nº 25, que organiza a "proteção do patrimônio histórico e artístico nacional". O Iphan está hoje vinculado ao Ministério da Cultura.
O IPHAN, desde sua formação, contou com a participação de importantes intelectuais - nomes como Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Afonso Arinos, Lúcio Costa e Carlos Drummond de Andrade estiveram presentes no desenvolvimento de tal instituto.
A necessidade de conservação dos bens culturais, em nível ideológico, para a elite governante, está ligada à formação da nacionalidade e, fundamentalmente, do fortalecimento político do Estado. Se retrocedermos ao século XIX, podemos pinçar um outro exemplo de formação ideológica para a garantia espacial e política do Império: com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838 no Rio de Janeiro. Fora também um esforço intelectual de mapear o país por meio da geografia, e de historiar a gênese da nação brasileira para a elite em poder. Enfim, o esforço de criar elementos institucionais ídeo-políticos que respaldem popularmente a existência do Estado brasileiro ocorre em várias gerações políticas.
Ainda mencionando o IPHAN, "[...] técnicos foram preparados e tombamentos, restaurações e revitalizações foram realizadas, assegurando a permanência da maior parte do acervo arquitetônico e urbanístico brasileiro, assim como do acervo documental e etnográfico, das obras de arte integradas e dos bens móveis [...]"[*4]. Num primeiro momento, a preocupação em conservação de patrimônio estava diretamente ligada à manutenção de edificações. O acervo arquitetônico levou professores e autoridades da Europa, a partir do final do século XIX, a debates sobre conservação, restauração, proteção, intervenção, reconstrução e revitalização de imóveis. Conforme Pellegrini Filho (1999), nesses debates, podiam ser observadas duas correntes de opinião: uma que propunha colocar o monumento em sua unidade estilística de origem, e outra que optava pelo caminho de conservar todas as mudanças pelas quais o imóvel passou, pois, além de manter seu valor artístico, o imóvel passaria a ser também um testemunho histórico-social de mudanças.
O conteúdo programático da restauração de um meio ambiente artificial, que não se limita a um bem arquitetônico, inclui várias observações e estudos da paisagem natural, da paisagem histórica, da metodologia de conservação, de museologia, de aerofotogrametria, de legislação e de como proceder à utilização de edifícios antigos. Esse meio ambiente artificial também é composto de inscrições pré-históricas, de sítios arqueológicos e seus objetos, de peças de valor etnológico e de arquivos e coleções bibliográficas. Esse tipo de patrimônio cultural, em nível internacional, conforme orientação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), pode ser agrupado, conforme a Carta Patrimonial[*5] de Paris de 1972, da seguinte forma (PELLEGRINI, 1999):
- monumentos: obras arquitetônicas, esculturas, pinturas, elementos ou estruturas de caráter arqueológico, inscrições, cavernas com valor excepcional do ponto de vista da história, arte ou ciência;
- conjuntos: grupo de construções de valor universal;
- lugares: sítios arqueológicos.
Como ilustração sobre os encontros e debates internacionais sobre patrimônio, temos:
- Tratado sobre proteção de bens móveis de valor histórico, da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizado em Quito (Equador), em 1967, de antes e depois da ocupação da América por colonizadores europeus, é intitulado "Normas de Quito";
- "Recomendação de Avignon", França, 1968, que considera que as mudanças sócio-econômicas aceleradas do modo de produção capitalista no atual momento demandam maior necessidade de preservação dos testemunhos das civilizações passadas;
- Colóquio de especialistas europeus sobre a Convenção de Haia, de 14 de junho de 1954, para a proteção dos bens culturais em caso de conflito armado, realizado em Zurique (Suíça), em 1969, em que se discutem as técnicas de salvaguarda em situações beligerantes;
- Reunião técnica sobre identificação, proteção e vigilância do patrimônio arqueológico, histórico e artístico, realizada em São Paulo, em 1972, em que se recomenda que a proteção do patrimônio deve ser função do Estado, devendo esse coibir o comércio ilícito de bens culturais;
- Recomendação concernente à salvaguarda de conjuntos históricos ou tradicionais e seu inventário na vida contemporânea, realizada em Nairóbi (Quênia), em 1976;
- Colóquio sobre revitalização de centros históricos e participação da comunidade, realizado em Salvador, em 1980, em que se discutem a conservação e o restauro de cidades históricas em cooperação com os diversos níveis administrativos, particularmente as comunidades locais envolvidas nesses assuntos;
- "1º Encontro de Arquitetos sobre a Preservação de Bens Culturais - Arquivo e Memória", realizado em São Paulo, em 1981, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Outra questão que é pertinente ao patrimônio cultural, tanto material como imaterial, é a sua conservação para o turismo. Embora tal temática (turismo) não seja central em nossa análise, não podemos deixar de considerar que tal atividade torna-se altamente funcional na medida em que o atrativo cultural do patrimônio é extremamente considerado para a divulgação de uma região a ser visitada e conhecida. Em suma, o patrimônio cultural é um elemento dinâmico para a prática do turismo de massas, sendo que, para além de um mero legado sócio-histórico de outros povos a ser aprendido e conhecido, é mesmo como necessidade que deve ser satisfeita pelo gênero humano que o capital vende a visitação pública em pacotes turísticos, como se fosse eletrodoméstico que se compra a prazo; a diferença é que essa mercadoria moderna não pode ser observada pelo consumidor através da vitrine, mas por catálogos, folders e, mais recentemente, pela internet.
O fenômeno do turismo de massas, que é recente na história da humanidade (inicia-se na Escócia no começo do século XIX), não deve ser ignorado em frente ao patrimônio cultural que aqui abordamos. Com o alargamento das possibilidades humanas de vencer barreiras naturais, seja por meios de transportes, comunicações, etc., impulsionadas pelas tecnologias, o mundo torna-se um território globalizado e passível de ser conhecido por todos. Considerando que a experiência da viagem, do conhecimento de outros povos e nações são práticas positivas para a formação de uma pessoa - desde que não sejam realizadas de forma predatória, em massas homogêneas e desinteressadas pelo outro -, a presença do turista deve ser pensada em relação ao patrimônio cultural, num nível sociológico (PELLEGRINI, 1999). Segundo esse autor, várias relações se formam com a presença do turista diante, principalmente, de manifestações culturais que representam os bens intangíveis, alterando a própria dinâmica do fenômeno a ser observado. Por exemplo, a presença de turistas em festas populares e folclóricas é um inegável fator de mudança social, a ponto de se considerar que uma nova realidade para as vivências tradicionais das populações autóctones passa a existir. A presença de turistas pode fazer com que eventos religiosos, por exemplo, tornem-se apenas eventos de espetáculos. É importante ressaltar o que se discute em sociologia do turismo: o turista procura fatos que fogem do trivial; o turista procura o exótico, que na antropologia cultural se chama alteridade - a busca de assuntos no "outro".
Verificamos que o patrimônio cultural, material ou imaterial, tem como seu maior depositário os museus, que salvaguardam os acervos, de obras de arte em geral a objetos arqueológicos. São elementos que fornecem manancial para as inúmeras pesquisas sobre o gênero humano e sua relação com a natureza. O ser humano, diferentemente dos demais animais, transforma o mundo por intermédio da atividade do trabalho. Tal atividade não se encontra geneticamente definida e/ou escrita em seus genes. O trabalho humano é uma ação teleológica, isto é, tem uma finalidade e é pré-concebida antes de ser realizada. Na medida em que o ser humano enfrentou os limites e as dificuldades da natureza, passou a conhecê-la e a estudá-la para atuar sobre a mesma. Mas o trabalho humano, como não se encontra escrito geneticamente, é uma atividade socialmente desenvolvida e seu legado é passado de geração em geração por meio da linguagem, que assume várias formas: a fala, os desenhos em cavernas (rupestres), as artes, as canções e a música, as manifestações rituais, enfim, uma gama enorme de produção de símbolos. O patrimônio cultural é um símbolo a ser conservado, é uma fonte histórica a ser desvendada, pois nela está um tempo a ser conhecido, um momento a mais na longa experiência da formação humana. O patrimônio pode estar dentro de um museu, num sítio arqueológico, num resquício arquitetônico, numa dança, num saber fazer, num quadro. Pode ser acessado pelo estudante, pelo pesquisador, pelo amador, pelo curioso ou pelo turista, é uma observação que instiga. Mas, para além de uma manifestação cultural e artística a ser somente contemplada idilicamente, considerando o patrimônio uma linguagem, uma obra de arte a ser decifrada, acrescentamos que:
[...] a função essencial da arte para uma classe destinada a transformar o mundo não é a de fazer mágica e sim a de esclarecer e incitar à ação; mas é igualmente verdade que um resíduo mágico na arte não pode ser inteiramente eliminado, de vez que sem este resíduo provindo de sua natureza original a arte deixa de ser arte. (FISCHER, 1977, p. 20).
Referências bibliográficas
Referências consultadas na internet
Fonte: