Entre Hermann e Goethe
Hermann destroçando as legiões em Teutoburg |
"Espaço onde milhões se sentirão se não seguros, livres e ativos... Quisera ver o movimento infindo de homens livres neste solo livre!" - Goethe - Fausto, 1808
No verão do ano 9 da Era Cristã, as tropas do governador romano Quintilius Varus foram surpreendidas quando atravessavam a Floresta de Teutoburg, na antiga Germânia. O chefe dos cherusci, chamado Hermann (Arminius), sabedor da marcha das legiões, que marchavam despreocupadas pelas trilhas da mata, conseguiu reunir várias tribos e emboscou-as. Ocultos pelos troncos e pelo arvoredo, os germanos, como uma puma ardilosa, saltaram das sombras sobre os soldados e seus acompanhantes. Foi um massacre e tanto. Acredita-se que uns 15 ou 20 mil romanos pereceram naqueles matos. A batalha da Floresta de Teutoburg teve alcance histórico. Nunca mais os romanos atreveram-se a ir muito mais além da margem esquerda do Rio Reno, fazendo com que a Germania Libera fosse a única área da Europa Ocidental não civilizada por eles.
Para os nacionalista alemães, Hermann, o vencedor de Teutoburg, tornou-se um totem. Um soberbo herói que evitara que sua terra fosse invadida e escravizada e que a futura cultura alemã, ainda por surgir, de alguma forma se pervertesse pelos latinismos e por outros estrangeirismos. No século XVIII, a façanha de Hermann inspirou a famosa trilogia de Friedrich Klopstock, glorificando-lhe o feito ("Hermann Schlacht", "Hermann und die Fürsten" e "Hermann Tod", 1769-1787), alimentando sentimento guerreiro e nacionalista que começara a ser despertado entre os alemães, resultado das vitórias militares de Frederico, o Grande da Prússia.
Talvez ninguém mais do que ele, Klopstock, teria tais condições, pois ele nascera em Quedlinburg (na atual Saxõnia-Anhalt), um dos centros nevrálgicos da antiga cultura germânica. Local onde se misturavam as fantasmagóricas histórias das Walpurgisnacht (o Concílio das Feiticeiras), que se realizavam nos montes Harz, com a celebração dos feitos do lendário Rolando, o sobrinho de Carlos Magno, que morrera de espada em punho, lutando contra os árabes nos Pirineus.
Mas Klopstock foi mais longe ainda do que compor odes a Hermann. Abriu o baú da mitologia nórdica para que os deuses da bárbara Germânia - os Votan, os Odin, as Valquírias ou o valoroso Sigfried - invadissem a literatura tedesca, inspirando depois, no século XIX, as óperas de Richard Wagner e a liturgia do exaltado nacionalismo alemão do século XX.
Goethe, porém, como confessou a Eckermann ("Conversações com Eckermann", Weimar, 1834), mesmo reconhecendo os méritos literários de Klopstock, nunca seduziu-se pelo apelo dele ao tribalismo teutônico. Se bem que o filósofo Herder - no lendário encontro que ambos tiveram no Zum Geist, um restaurante de Estrasburgo, em 1770 - o convencesse por uns tempos da importância dos mitos teutônicos e das demais expressões da cultura popular (que serviram de mote para o movimento Sturm und Drang ("a tempestade e o ímpeto"), o poeta logo se refez dessa tentação paroquial e plebéia.
Homem da cultura clássica, Goethe nunca deixou de sentir no nacionalismo um impulso de vulgaridade rasteira, de mediocridade clânica. Alegou que, por mais que se esforçasse em simpatizar com aqueles deuses cabeludos, envoltos em peles de urso e com um porrete-raio nas mãos, fez sempre questão de manter uma certa distância do fabulário bárbaro. Elegante, Goethe disse em suas memórias ('Poesia e Verdade, II, Livro XII') que os vultos da mitologia grega sempre foram-lhe eternamente mais familiares, não vendo razão alguma para substituir Zeus Olimpo, por uma divindade de capacete com chifres que morava no meio do mato. Ou ainda "ver Tor sendo macaqueado pelos gigantes mágicos!" O forte som das trompas dos antigos germanos, enfim, não sensibilizaram os seus ouvidos. De certo modo, ser heleno, ser grego, era ser de todo os lugares, era ser do mundo.
Porém, durante um largo período da história da Alemanha moderna (em 1870, em 1914, e, novamente, em 1939), foram os acordes tribais que os moveram coletivamente para as guerras, com os resultados desastrosos que se sabe. A exaltação do exclusivismo, do que era Wirklich Deutsch (do "verdadeiramente alemão"): da língua alemã, da raça alemã, EM uma era que cada vez mais se integrava, se globalizava, colocou-os inapelavelmente contra quase o mundo inteiro.
Ao distanciar-se, ainda no século XVIII, do mito e do nacionalismo, cultivando "o ponto de vista humano e cosmopolita", Goethe, passados 250 anos do seu nascimento, volta a se colocar, quase que absoluto, entre as maiores personalidades universais de todos os tempos. Inspirando-se publicamente nele, supõe-se, o atual Ministro das Relações Exteriores da Alemanha, ainda que, timidamente, advogou a transformação da Europa em uma república federativa. Nela não só as mercadorias deverão continuar a circular livremente, mas o próprio estado-nacional, como hoje é entendido, deverá desaparecer, superado por uma organização política superior, uma república paneuropéia, que servirá a todos nós como um embrião da organização do mundo futuro.