Acusado de massacre de 8 mil muçulmanos será julgado nesta semana.
Os restos mortais de 19 corpos encontrados numa gruta vertical na localidade de Bisina, na última sexta-feira (23), trouxeram à superfície mais um trecho de um dos episódios mais sangrentos ocorridos desde a Segunda Guerra Mundial. As ossadas, muitas com sinais de mãos amarradas e os olhos vendados, são de muçulmanos mortos na matança de Srebrenica, que em poucos dias de 1995 dizimou cerca de 8 mil pessoas durante a Guerra da Bósnia.
Desde então, de acordo com o Instituto Bósnio de Pessoas Desaparecidas, já foram identificadas mais de de 5.600 vítimas exumadas de cerca de 70 ossários ou valas comuns descobertos nos arredores da cidade. Nesta semana, no Tribunal de Haia, começa ojulgamento do ex-líder sérvio Radovan Karadzic, apontado como responsável pelo genocídio em Sreberenica e por outros crimes de guerra.
Para entender o conflito, que eclodiu em 1992, é preciso regredir um pouco no tempo. Em 1914, o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono da Áustria, e sua esposa, a duquesa de Hohemberg, foram assassinados em Sarajevo por um estudante servo-bósnio. A Áustria declarou guerra à Sérvia, o que desencadeou a Primeira Guerra Mundial.
Saiba mais sobre a guerra na Bósnia
Em 1918, proclamou-se o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, que incluía a Bósnia e a Herzegóvina. O país foi rebatizado de Reino da Iugoslávia em 1929, após um golpe de Estado autoritário em que comunistas e adversários da hegemonia sérvia foram perseguidos.
Liderados por Josip Broz Tito, os comunistas chegariam ao poder em 1945, após organizarem, com apoio dos aliados, a resistência guerrilheira aos nazistas, que haviam tomado o país. Ao término da guerra, o país manteve-se unido como uma federação de repúblicas, uma das quais era a Bósnia-Herzegóvina.
Após a morte de Tito em 1980, o Poder Executivo foi assumido por um organismo colegiado, com representação de todas as repúblicas e rotação anual da Presidência. Mas, em vez de pacificar as rivalidades entre as entidades federadas, a medida pareceu exacerbá-las.
Soldado norte-americano durante ocupação de tropas internacionais na Bósnia-Herzegóvina para garantir o cumprimento do acordo de Dayton, em 1996 (Foto: Arquivo / AFP)
Mas a explicação recorrente atribuir o conflito na Bósnia como consequência direta da Segunda Guerra é, na opinião da antropóloga Andrea Peres, pesquisadora da Unicamp que vive em Sarajevo, "uma forma simplista de ver a história".
"No começo da década de 80, você tinha uma forte crise econômica na Iugoslávia; um grande líder que morre (e Tito era um fator de união); uma Presidência colegiada, além da Iugoslávia como uma confederação de seis repúblicas e duas províncias autônomas, com alto grau de autonomia a partir da década de 70. Começa a ter um debate de abertura para democratização, o que significa fim de um partido único. O nacionalismo pouco a pouco foi sendo alimentado por lideranças que no regime anterior eram reprimidas e não tinham força", afirma.
Temendo a onda nacionalista que já chegara à Sérvia, dirigentes croatas, muçulmanos e sérvios da Bósnia queriam seguir o exemplo de Eslovênia e Croácia, em processo de separação da Iugoslávia. Em outubro de 1991, a assembleia provincial da Bósnia aprovou uma declaração de independência e, em janeiro do ano seguinte, convocou um plebiscito sobre a sucessão.
O referendo para a independência foi aprovado em março e, no mês seguinte, ela foi reconhecida pela União Europeia e pela ONU (Organização das Nações Unidas). O conflito se disseminou rapidamente por toda a região. Sob a liderança de Radovan Karadzic, os sérvios cercam a capital bósnia, Sarajevo, e ocupam 70% do país, matando e perseguindo os muçulmanos e croatas a fim de estabelecer uma República Sérvia.
Via satélite
Cidades como Sarajevo, Srebrenica, Zepa, Gorazde, Tuzla e Bihac, entre outras, tornaram-se enclaves muçulmanos criados para proteger a população civil sitiada e ameaçada. Cenas da guerra eram transmitidas diariamente pela televisão, numa das primeiras grandes coberturas de conflitos armados.
"Podíamos seguir via satélite o calvário de uma população civil exposta a uma violência que, acreditava-se, não voltaria a assolar a geografia europeia: campos de concentração, deportações em massa, assassinatos, cercos a cidades, civis vítimas de franco-atiradores e ataques do exército federal iuguslavo ou de milícias. Isso diante da impotência dos organismos internacionais, dos Estados Unidos, da União Européia...", escreve Omar Ribeiro Thomaz, doutor em Antropologia Social pela USP, no artigo "Bósnia-Herzegóvina: A Vitória da Política do Medo" (revista "Novos Estudos", março de 1997).
Dados da Anistia Internacional e da ONU falam em milhares de civis e combatentes mortos após serem capturados, além de relatos de tortura, maus-tratos e estupros. Cercada durante quase quatro anos, a cidade de Sarajevo se transformou em símbolo da resistência de um povo acossado pelo conflito.
Radovan Karadzic é auxiliado por policial nesta terça-feira (3) no Tribunal de Haia. (Foto: Reuters)
Acordo
Após diversas tentativas de paz fracassadas, a Otan bombardeou as tropas servo-bósnias. Um acordo de paz começou a ser desenhado em 1995, quando os presidentes Alija Izetbegovic (líder muçulmano da Bósnia), Franjo Tudjman (Croácia) e Slobodan Milosevic (Sérvia) aceitam os termos do documento mediado pelos EUA em Dayton (Ohio).
O acordo, que reconheceu a existência de dois mini-Estados etnicamente puros, após a eliminação física ou expulsão de grupos étnicos, é questionado até hoje.
"Todo mundo aqui fala que o acordo de Dayton legitimou atrocidades que aconteceram durante a guerra. A região onde hoje é a República Sérvia foi limpa, ocorreu uma limpeza étnica. Cidades inteiras que eram misturadas e agora não são mais. A assinatura [desse acordo] legitimou esse território formado em quatro anos de guerra", diz a antropóloga Andrea Peres, que coleta relatos sobre o conflito em Sarajevo.
Condenação
Para a pesquisadora, a condenação do ex-dirigente sérvio-bósnio Radovan Karadzic, apontado como o mentor do massacre em Srebrenica, pode ser uma das últimas medidas na busca de justiça pelo horrores cometidos durante a guerra da Bósnia, após a libertação, no último dia 7 de outubro, de outra ex-líder dos sérvio-bósnios, Biljana Plavsic.
Representantes de Karadzic, que foi preso no ano passado e deportado para o tribunal internacional de Haia após 11 anos foragido, já anunciaram que ele não comparecerá ao julgamento.
Fonte: G1