Bem antes de Adolf Hitler chegar ao poder na Alemanha, uma sociedade secreta já cultuava a suástica e pregava a superioridade da raça ariana
por Texto Álvaro Oppermann
No imponente Hotel Quatro Estações, de Munique, um grupo de políticos, militares e intelectuais alemães ocupou a sala principal de reuniões. O clima lúgubre era indisfarçável. Todos os presentes confabulavam em sussurros, como num velório. Era 9 de novembro de 1918, dois dias antes da rendição daAlemanha na 1ª Guerra Mundial – àquela altura, tida como inevitável. De repente, um jovem pigarreou e pediu a palavra. Era Walter Nauhaus. Estudante de arte, veterano de guerra e manco de uma perna, Nauhaus era um dos chefes da organização ali reunida: a Thule Gesellschaft, ou simplesmente Thule.
“O barão Von Sebottendorff pronunciará algumas palavras”, limitou-se a dizer Nauhaus. Os dignitários presentes fizeram silêncio. Sebottendorff era um sujeito corpulento, de olhos esbugalhados. No passado, tinha sido condenado por estelionato. Também estudara magia negra e astrologia. Mas todos faziam vista grossa. Seu carisma era inegável.
“Nosso mundo ruiu”, disse o barão. “O puro sangue alemão foi derrotado pelo inimigo mortal: Judá. Conclamo todos a lutar. Nossa ordem é germânica. Nosso deus é Walvater e somos arianos. Se quisermos viver, devemos primeiro morrer.” O orador foi interrompido pelo frêmito das palmas. Sua vasta cabeleira estava meio em desalinho. Sua testa, suada. E sua papada balançava. Todos naquele recinto entraram em êxtase.
Esse desvairado discurso foi gravado e hoje faz parte do Arquivo Histórico de Munique. É um dos poucos registros das reuniões da Thule, grupo ocultista alemão dos anos 1910-20, cuja história permaneceu envolta em brumas e mal-entendidos durante muito tempo.
“Entre 1960 e 1975, diversos livros sensacionalistas e pobremente pesquisados foram lançados sobre ocultismo nazista” diz Nicholas Goodrick-Clarke, professor da Universidade de Exeter, na Inglaterra. Isso atiçou o imaginário coletivo, e não estranha que a Thule tenha virado ícone da cultura pop, marcando presença no livro O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco, e no filme Hellboy, de Guillermo del Toro. A verdadeira história da Thule – e sua ligação factual com o nazismo – começou a emergir nas últimas décadas. E é mais patética e bizarra do que parece nos romances e no cinema.
MÍSTICA E MALVADA
De acordo com a historiadora americana Shelley Klein, autora do livro As Sociedades Secretas Mais Perversas da História (Planeta do Brasil, 2007), aThule pode ser considerada a precursora do nazismo. Seu nome, tirado de uma antiga lenda nórdica, evocava a capital da Hiperbórea, terra mítica que os antigos acreditavam ficar perto da Groenlândia. Lá teria vivido uma civilização superior. Nas palavras do historiador romano Políbio, tratava-se de “uma ilha a 6 dias de viagem do norte da Bretanha”.
Misticismo tinha tudo a ver com a Thule. Nas reuniões do grupo, eram de praxe os rituais em homenagem ao deus Walvater. Nas palestras, membros eruditos discorriam sobre as runas (as 24 letras do alfabeto germânico antigo) e mitologia indo-européia, ou faziam leitura de mapas astrológicos. Sua insígnia era um velho símbolo de origem indo-européia de boa fortuna: asuástica.
ANTI-SEMITA
Por trás do climão esotérico, contudo, havia algo bem mais ameaçador, aparente no próprio lema da Thule: “Lembra-te que tu és alemão. Mantenha o teu sangue puro!” A Thule era uma organização ardorosamente nacionalista. E também anti-semita. Vista de fora, não passava de uma sociedade dedicada aos estudos da antiguidade germânica. Ledo engano. “Foi um grupo ativista, com atuação jornalística, militar e, sobretudo, política na Alemanha pré-nazista”, afirma Reginald Phelps, autor do livro Before Hitler Came (“Antes deHitler chegar”, sem tradução para o português).
Para entender a mística Thule, primeiro é preciso compreender o contexto de seu surgimento. Na Europa, o ocultismo era moda. Os ideólogos da organização foram dois austríacos excêntricos, Guido von List e Lanz von Liebenfels. Eles fizeram uma sopa indigesta de conceitos do hinduísmo – como reencarnação e pre-determinação cármica – com uma pitada de ideologia daraça ariana superior. Seus livros viraram febre entre o povão e a burguesia emergente, como se fosse uma versão vienense de Paulo Coelho. “Existem fortes indícios de que Hitler era leitor de Lanz”, diz Goodrick-Clarke.
Em 1918, a Thule comprou um jornal falido em Munique. Renomeado Völkischer Beobachter (“Observador do Povo”), trazia matérias de teor anti-semita e cobertura das corridas de cavalos: uma mistura bem ao agrado da juventude alemã naquela época. Seu principal jornalista era Karl Harrer, mais tarde co-fundador do Partido Nacional Socialista (o partido nazista). Em 1920, o jornal virou propriedade do partido de Hitler – e só fechou as portas em 1945. Um de seus primeiros editores foi Dietrich Eckart, convidado freqüente das reuniões da Thule. “O jornal é o único elo indiscutível da ligação do grupo com o nazismo”, diz Reginald Phelps. Eckart foi mentor de Hitler entre 1920 e 1923, apresentando-o à alta sociedade alemã.
PODER TÂNTRICO
Outros nazistas famosos também tiveram o nome ligado ao da Thule, como Rudolph Hess e Alfred Rosenberg. O campeão de misticismo, porém, foi Heinrich Himmler, chefe da SS, elite paramilitar do partido nazi e velho freqüentador da sociedade. Os soldados, por ordem de Himmler, tinham de trocar os nomes cristãos por nomes teutônicos. “Himmler financiou uma expedição à Islândia em busca do santo graal e, em 1938, uma expedição ao Tibete, para encontrar o homem ariano primordial”, diz Dusty Sklar, autor de The Nazis and the Occult (“Os Nazistas e o Ocultismo”, inédito no Brasil). Outro desvario: para cultivar a confiança mútua dos soldados, Himmler ordenou que, durante o treinamento, os recrutas deveriam ensaboar uns aos outros no chuveiro. Essa idéia, observa Sklar, provavelmente foi tirada de Lanz von Liebenfels, que acreditava que a intimidade entre varões tinha um poder tântrico mágico.
Os membros da Thule não podiam ter sangue judaico. Em 1919, um jovem aristocrata, Anton von Padua Arco auf Valley, teve negada sua admissão na sociedade porque seu avô materno, um banqueiro, era judeu. Anton ficou arrasado e, como desforra, assassinou o político socialista Kurt Eisner. Era uma forma de mostrar seu valor à Thule. “Se havia uma coisa que os integrantes do grupo odiavam tanto quanto os judeus, eram os socialistas”, diz Goodrick-Clarke.
A Thule foi definhando aos poucos. Adolf Hitler, que se aproveitara dela no passado, passou a atacá-la depois de chegar ao poder, vendo em seu misticismo um incômodo. “Em 1926, a organização quase não dava sinais de vida”, diz Phelps. Na verdade, ela nunca conquistou muita popularidade e sua in- fluência política foi mínima. Então, como explicar o fascínio que ela exercia? A resposta talvez seja dada pelo especialista em sociedades secretas Mark Sedgwick, professor da American University no Cairo, Egito: “O principal objetivo desses grupos nunca é a dominação política imediata, mas moldar o imaginário e a ideologia da sociedade. São uma eminência parda”. Isso, aThule conseguiu – e a história está aí para provar.