Felipe II, rei de duas coroas |
D.Sebastião, o jovem príncipe português que ascendera ao trono com enormes expectativas, não houve o que não fizesse para arrecadar fundos para a sua aventura africana. Conseguira até um bula papal que o consagrava como cruzado para ir bater-se contra os mouros. O último dos cruzados, mal sabia ele. Arrancou recursos de todos os lados, até concessões aos tão perseguidos judeus portugueses ele fez. Desbastou Portugal antes de lançar-se sobre as terras do crescente, apostando numa só cartada. Perdeu tudo num só dia, numa só batalha, a batalha de Alcácer-quibir, travada em 4 de agosto de 1578. O rei perdeu a vida, os judeus as isenções, e Portugal a independência. Sem ter deixado herdeiros, D. Sebastião legou um caos dinástico e, paradoxalmente, como veremos, a esperança.
Quem assumiu o trono luso no seu lugar, foi seu tio e ex-tutor, o cardeal Henrique, homem já entrado em anos, que logo veio a falecer. Um pouco antes de ser colhido pela morte, o cardeal-rei instituíra um conselho de cinco governadores que, em seguida ao sepultamento de D. Henrique, assumiria transitoriamente o governo. Lá estava Portugal, sem timoneiro e sem rumo. A dinastia de Avis que reinava desde 1385, desaparecia vitimada pela irresponsável aventura de um jovem rei e pelas estioladas leis canônicas que impediam um padre de ter filhos (O cardeal-rei solicitou ao papa a dispensa do voto do celibato para poder casar-se e deixar um herdeiro dinástico para Portugal, mas o papa negou-o).
Com o fim dos Avis, de imediato dois partidos surgiram. O partido nacional, que tinha magras esperanças de vir alcançar o trono, congregou-se ao lado de D. Antônio, o prior do Crato, que aos olhos de muitos se desqualificava por ser bastardo (o que porém não o impediu de pegar em armas para reclamar a coroa de Portugal). Do outro lado, formou-se o partido castelhano, majoritário, que entendia ser bem melhor naquelas circunstâncias, entregar os louros a Felipe II da Espanha (filho de mãe portuguesa e neto de D. Manoel o Venturoso). Era desejo antigo dos reis espanhóis abocanhar Portugal. Eis que agora surgia aquela oportunidade. Felipe II não a deixou passar. Ele mesmo confessou que não poupou dinheiro - o seu emissário foi Cristóvão Moura - para vir a ser também rei de Portugal (Yo lo heredé, yo lo compré - yo lo conquisté, para quitar las dudas!). Dinheiro e armas!
O Duque de Alba, fero comandante espanhol, invadira Portugal em nome de Felipe II, para bater o prior do Crato. Em Alcântara, em 3 de agosto de 1580, foi-se a última esperança de manter Portugal longe da mão do castelhano. D. Antônio, o prior do Crato, derrotado, refugiou-se no exterior, na Inglaterra da Rainha Isabel. O caminho estava livre para a triunfal chegada do futuro rei. Felipe II da Espanha iria se tornar Felipe I de Portugal.
Devido ao rebate de peste em Lisboa, decidiu-se reunir os Estados Gerais (Nobreza, clero e povo) na cidade de Tomar, ao norte da capital, antiga sede a Ordem de Cristo (uma versão lusitana da Ordem dos Templários franceses). Felipe II, vindo da cidade fronteira de Badajoz, aceitou perante aquela assembléia - aberta de 16 de abril até 23 de abril de 1581 - o princípio de um rei, duas coroas, jurando manter a autonomia administrativa e jurídica dos portugueses. Portugal seria governado por um vice-rei indicado por ele, Felipe II, mas os cargos públicos, no Reino e nas possessões ultramarinas, seriam preenchidos com gente da casa, por portugueses. O interesse maior do monarca não eram as rendas e tenças de Portugal ou do seu império colonial, mas manter a tão querida integridade política da Península Ibérica. O que pareceu a maioria dos portugueses bem razoável. Assim é de se entender a entusiasmada recepção que os lisboetas fizeram a Felipe II quando ele, finalmente, desembarcou da galera imperial, nas proximidades do Paço de Lisboa, em 24 de abril de 1581. Para adoçar a festa, ordenou que previamente distribuíssem aos lisboetas uma generosa carga de farinha. Com isso não faltou mais ninguém a ser comprado.
O Paço da Ribeira em Lisboa, onde Felipe II desembarcou em 1581 |
Mesmo assim. Mesmo tendo agradado o povo, distribuindo-lhe a doce farinha, difundiu-se por Portugal inteiro aquilo que Oliveira Martins chamou de "a doença do sebastianismo", a curiosa crença, que se enraizaria por muito tempo na mente e na alma lusa, de que D. Sebastião, de fato, não morrera nas areias africanas. Ao contrário, estava vivo, esperando apenas o momento de reaparecer e salvar Portugal das mãos dos castelhanos. Ele era "O Desejado" que a qualquer momento deixaria a situação de estar "Encoberto" e, saindo do seu esconderijo, empunharia a espada da independência dos portugueses. Enquanto outros povos europeus se modernizavam, tentando expandir as coisas da Renascença, os portugueses alinhavam-se com um messianismo que perdia-se nos tempos bíblicos, nas profecias de Isaías e de Davi. O sebastianismo virou uma fé nacional, servindo para a exploração da crendice popular (quatro "encobertos" apareceram em lugares diferentes declarando-se ser o rei D. Sebastião). Tão forte era esse sentimento que o próprio Felipe II, antes de voltar à Espanha, tratou de remover, com toda pompa, em dezembro de 1581, os restos do indigitado príncipe de uma tumba no Marrocos para Belém em Lisboa. De nada serviu. Foi ainda pior. Que ossos do príncipe que nada, disseram! Aquilo tudo era falsidade do castelhano. O príncipe estava vivo, e bem vivo!
O século de ouro espanhol e a literatura galante |
Quando consagrou-se a União Ibérica, a Espanha vivia um momento único de esplendor em sua história. Era a sua idade de ouro. Entre a descoberta e a decadência passou-se um pouco mais de um século (para George Ticknor, o historiador literário, de origem norte-americana que criou, em 1849, a expressão "Idade do Ouro" para as letras espanholas, esse período se estenderia de 1492 até 1665). A prata e o ouro mexicano e peruano, e as essências indianas, vindas da conquista das Américas e das rotas orientais, contribuíram para que a arte espanhola atingisse um nível extraordinário. Tal presença do sonante registrou-a ironicamente Francisco Quevedo, no poema Don Dinero:
Donde el mundo le acompaña
Viene a morir en España
Y es en Génova enterrado;
y pues quien le trae al lado
es hermoso aunque sea fiero,
poderosos caballero es don Dinero"
Palácios reais como o Escorial, mandado erguer por Felipe II ao norte de Madri, espelhavam a solidez e a magnificência da estrutura arquitetônica da Espanha Imperial. Não era fanfarronice nem bravata a frase de Carlos V, pai de Felipe II, que disse ser seu império" um reino onde o sol nunca se punha". Com os edifícios e catedrais vieram os grandes pintores: El Greco, Ribera, Velázquez, Zurbarán, Murillo, e tantos mais. Com o novo público urbano e cortesão surgiu a novela de Cervantes, a poesia de Calderón de La Barca, de Garcilaso de la Vega, de Luís de Góngora, de Francisco Quevedo, e as comédias de Lope de Veja, ao mesmo tempo em que a Espanha, em frêmitos, acompanhava os relatos sensacionais das conquistas feitas por Ponce de León, Hernán Cortés ou de Bernal Díaz del Castillo. Maravilharam-se também pela detalhada narrativa sobre o mundo do reino andino, registrado por ninguém menos do que Garsilaso el Inca, um mestiço, filho de um princesa de Cuzco e de um conquistador ibérico.
A gramática de Antônio Nebrija (considerada a primeira de todas as línguas européias), por sua vez, fez do castelhano, um idioma universal, visto que, como ele mesmo disse "la lengua fue compañera del imperio". Todos os gêneros literários vieram a luz naquela época refulgente, o épico, o lírico, o dramático e o cômico, além de um produto tipicamente espanhol, a narrativa picaresca (Lazarillo de Tormes, uma novela anônima surgida no século XVI, provavelmente na década de 1540, praticamente inaugurou o gênero) e, claro, o imortal la Don Quixote de Mancha de Miguel de Cervantes, em 1605-1615. Ao lado dessa riqueza toda, também prosperou a literatura beata, dos monges, das freiras, dos místicos, dos alucinados de Deus.
O Escorial, o monumental palácio-mosteiro de Felipe II |
Ao abraçar o mundo, a Espanha incorporou-se aos problemas do mundo. Felipe II, que morreu em 1598, estabelecera uma luta de vida e morte em três frentes externas. Na frente Mediterrânea enfrentou o Império turco otomano, o infiel muçulmano. Na frente Atlântica, o Reino da Inglaterra e a República Holandesa, refúgio da heresia protestante. Na frente do Novo Mundo, o paganismo e o fetichismo das civilizações e das nações indígenas. O soldado espanhol do tércio foi transformado em apóstolo, em defensor e vingador da fé, e em agente da conversão religiosa. Um fronte de lutas deste, espalhado por três continentes, distante milhares de quilômetros de Madri, em terras onde a paz nunca se punha, exauriu os recursos do tesouro real. Não havia metal precioso nem gente suficiente para dar conta daquilo tudo. O resultado foi a depauperação do reino. Corolário da decadência foi até a fraqueza pessoal dos outros dois Felipes, o III e o IV, reis de fancaria, cuja atuação pífia possivelmente inspirou o Monólogo de Segismundo, de Calderón de la Barca, que dizia:
y vive com este engaño mandando,
disponiendo y gobiernando.."
A isso, a estes "reis que sonhavam que eram reis", somou-se a desastrosa Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), para sugar os últimos recursos da dinastia Habsburgo (los Áustrias, como os espanhóis os chamam). Os anos de 1640-1 foram particularmente fatídicos para a Espanha. No mês de março de 1640, a frota do rei foi batida pelos holandeses na batalha das Dunas. Em junho, aproveitando-se da debilidade de Madri, a Catalunha, liderada por Paul Claris, presidente da Generalitat, rebela-se e expulsa os tercios castelhanos. No ano seguinte, em janeiro de 1641, os catalães batem o exército do rei em Montjuic. E, como pá de cal na Unidade Ibérica, em 1º de dezembro de 1640, deu-se a rebelião bem sucedida do Duque de Bragança em Portugal, apoiada de longe pelo Cardeal Richelieu da França. Proclamando-se Rei de Portugal como D. João IV, Portugal recuperara a autonomia pondo fim ao quem os historiadores românticos chamaram, com o seu reconhecido exagero, de "cativeiro", "noite longa", ou ainda de "submissão" ao castelhano. Durante 60 anos, de 1580 a 1640, Portugal estivera ligado à Espanha. E o Brasil Colonial também. A grandeza da Espanha, entrementes, fora-se para sempre. Francisco Quevedo registrou-a com tristeza no seu poema Miré los muros:
De la carrera de la edad cansados
Por quien caduca ya su valentia.
(...) Vencida de la edad senti mi espada
y no hallé cosa en que poner los ojos
que no fuese recuerdo de la muerte."
Com muros desmoronados e a perda da valentia, só restou ao poeta a lembrança da morte.