A guerra nas duas frentes
Desde que se estabelecera a Entente franco-russa de 1893, evolução de um acordo militar anterior, e a adesão da Grã-Bretanha a ela, em 1904, formando assim a Tríplice Entente, a Alemanha Imperial viu-se frente a um dilema. Como o IIº Reich poderia se conduzir numa guerra simultânea em duas frentes? De que modo poderia enfrentar a republica francesa e aos ingleses no ocidente e o império dos czares ao oriente? A resposta a isso foi o Plano von Schliffen, chefe do estado maior alemão, apresentado em 1905, que implicava em assumir uma posição defensiva a leste e uma ultra-ofensiva ao oeste. Se bem conduzido pelo estado maior, que concentraria 90% das suas forças do lado ocidental , a França se veria ocupada em pouco mais de um mês enquanto a Rússia seria detida na Prússia Oriental pelos 10% restantes. Vencida a primeira etapa, com os alemães aquartelados em Paris, bastaria então transferir as divisões vitoriosas para o outro lado, esmagando a seguir as hordas do czar. O problema ético mais grave para a execução do plano é que ele implicava em fazer os exércitos alemães cruzarem pela Bélgica, país de assumida neutralidade. Mas para o estado-maior, se vencida a guerra ninguém se lembraria de cobrar isso do kaiser Guilherme II.
Alemães estupefatos
Fritz Haber, um dos mais eminentes dos cientistas alemães (1868-1934) |
De fato, o serviço de propaganda de guerra britânico alardeara atrocidades que não haviam sido cometidas ou exagerara ao extremo as operações de ocupação do exército invasor na Bélgica, produzindo, especialmente junto à opinião pública norte-americana ainda neutra, uma bem sucedida imagem do alemão como a “besta loura” contra quem o mundo civilizado deveria se insurgir em armas.
Foi contra isso que o Olímpo da ciência, da arte e da cultura alemã, revoltou-se, colocando seus nomes num documento intitulado “Aufruf an die Kultur Welt”, que ficou conhecido como “Apelo ao Mundo da Cultura”, redigido pelo escritor judeu-alemão Ludwig Fulda, publicado no dia 4 de outubro de 1914 numa série de jornais. O objetivo era atingir a opinião publica letrada dos países ocidentais que não pertenciam a Entente e que ainda mantinham-se fora do conflito. A qualificação deles era impressionante, havendo nas lista sete prêmios Nobel. Eram arqueólogos, arquitetos, biólogos, compositores, escritores e poetas, físicos, químicos, historiadores da arte, músicos, pintores, escultores, e teólogos famosos; o creme do creme da Alemanha.
(*) Albert Einstein, então diretor recém nomeado do Instituo Kaiser Guilherme de Física em Berlim, deixou um notável testemunho da perplexidade dos sábios alemães quando se viram acusados de pertencerem a uma “nação de bárbaros”. Sem se deixar levar pela onda de patriotismo, viu a guerra como obra de lunáticos. Numa carta a um amigo escreveu: “A |Europa em sua loucura deu início a algo impossível de acreditar. Numa época como esta, percebemos que espécie animal infausta pertencemos... sinto apenas um misto de comiseração e repulsa.”(Fritz Stern – O Mundo Alemão de Einstein, 2004, p.142)
O Manifesto da Inteligência Alemã
Não aceitavam de maneira nenhuma a campanha da imprensa ocidental que inculpou apenas a Alemanha pelo que estava ocorrendo. Ao contrário, elogiaram o kaiser por ter mantido a paz na Europa por 22 anos seguidos e que somente fora compelido a embalar as armas por força da declaração de guerra do czar Nicolau II. O que havia contra o imperador era um mar de “mentiras e calunias” que distorciam completamente a realidade. Nem o povo, nem o governo, muito menos o kaiser desejaram a guerra: ela lhes fora imposta.
Quanto à neutralidade da Bélgica, afirmaram que ela seria por igual violada pela França ou pela Grã-Bretanha se fosse necessário, e que os incidentes que envolveram soldados alemães com a população local decorriam do direito deles à defesa própria, pois eram atacados por franco-atiradores civis. Também não era verdade que haviam destruído Louvain, mas apenas uma parte da cidade fora punida com um canhonaço em represália ao furor da população contra os ocupantes, como se tratava de um despropósito dizer que os infantes alemães desrespeitavam o direito das gentes e que se comportavam de modo cruel e indisciplinado.
Era uma hipocrisia acusarem o militarismo alemão, pois ele era resultado das históricas ameaças que pairaram por séculos sobre a nação. Militarismo esse, resultante da aliança do exército com o povo, e que, naquele momento, tinha o apoio unânime de todos, independentemente da posição cultural, classe social ou partido dos súditos do Reich. A culpa real da guerra cabia à França e à Grã-Bretanha que, aliadas aos russos e aos sérvios, mobilizaram “mongóis e negros” para vir atacar a raça branca.
Nestas circunstâncias, os signatários garantiam com suas assinaturas ilustres que tudo não passava de invenções que haviam sido lançadas contra o Reich, mentiras que eram “armas envenenadas” que eles pretendiam arrancar das mãos dos inimigos. Os cérebros da Alemanha, enfim, se perfilavam no fronte para, a seu modo, servirem como combustível na luta da propaganda de guerra.
Encerrando o manifesto, enfatizaram:
“Acreditem-nos! Acreditem que nesta luta nós iremos até o fim como um povo civilizado, um povo para o qual a herança de um Goethe, de um Beethoven e de um Kant é tão sagrada como o seu solo e o seu lar. Nós o respondemos com o nosso nome e a nossa honra.”
O resultado prático dele foi pífio. Para a comunidade científica internacional os eruditos alemães, ao tomarem aberto partido da guerra batendo continência aos generais prussianos, haviam traído seu compromisso com os princípios universais da ciência e do humanismo. Os raios esclarecidos de Apolo haviam se eclipsado frente a Marte, o planeta vermelho da guerra. Provocaram a mesma decepção que os sociais-democratas haviam causado uns tempos antes quando se colocaram a favor das armas numa célebre assembléia no Reichtag em julho de 1914. (*)
(*) Os signatários tinham razão em afirmar a unidade nacional em torno do Reich visto que até o SPD, o partido social-democrata alemão, essencialmente pacifista, votara em massa, em nome do “interesse nacional”, pelas verbas de guerra exigidas pelo kaiser. Fato que gerou uma crise irreversível no movimento socialista europeu, rachando-o.
O Manifesto de um Apolítico
Soldado alemão crucificando um prisioneiro (pôster norte-americano) |
Foi do gosto especial dele enfatizar – recorrendo ao conhecido paradigma do espírito oposto à matéria - de que a Alemanha se caracterizava pela preservação da Kultur, da cultura, agente do aperfeiçoamento dos pendores individuais, da alma e da liberdade de pensamento de cada um, enquanto que seus inimigos dos ditos países ocidentais, que batiam no peito como exclusivos defensores da democracia, apenas conheciam a Zivilisation, a civilização, instrumentalização puramente tecnológica que visava o progresso e o bem-estar das massas e nada mais. A “Germanidade”, por sua vez, “é uma orientação espiritual”, talvez fosse por isso mesmo - estando a Alemanha isolada do Leste e do Oeste, promovendo as coisas do espírito bem acima dos demais - que ela inspirava a “aversão mundial”.
Para ele a “ilustração democrática” e a “civilização humana”, tão alardeada e cultuada entre os seus inimigos, era basicamente germanofóbica, visto que a pátria de Goethe mantinha um caminho muito próprio de se distinguir dos demais: um Sonderweg. Por ser singular diferente de tudo o que se conhecia, não queria marchar na ordem unida proposta pelos outros, traçando um caminho seu distinto dos restantes.
A missão da Alemanha é o protesto
Relembrando um raro artigo de Dostoievski em que o escritor russo dissertava sobre a Alemanha, Mann compartilhou-lhe a idéia de que, desde o aparecimento impetuoso de Lutero no século XVI, a missão histórica da Alemanha estava comprometida com o protesto. O monge desencadeara a revolta dos povos germânicos contra a sobrevivência do Império Romano representada pela Igreja Católica e pelo papa, retomando assim a bandeira de Arminius, Hermann, o chefe dos germanos-cheruscos que se insurgira contra as legiões de Roma no século I.
Não somente isso, ela por igual rejeitava a idéia de haver um império universal e uma monarquia universal vinda dos césares. Sentia-se a voz de Deus em favor da Liberdade de Espírito, unida contra uma poderosa coligação que a ameaçava. No entendimento de Mann, Otto von Bismarck fora um novo Lutero, alguém que ousara desafiar a antiga ordem européia, fundando um novo Reich, o Reich Guilhermino.
A Entente em luta contra a Alemanha desde 1914, ainda que contando com a parceria ativa da Rússia czarista cristã ortodoxa, colocada a reboque, na verdade era um fantasma do antigo império romano que novamente se aproximava das fronteiras alemãs para vir-lhe assombrar o seu direito de ser como era. (*)
De maneira idêntica ao que ocorrera a partir de 1520, em seguida a Dieta de Worms, quando as forças do império católico de Carlos V deram início ao cerco da Alemanha luterana, agora, na Grande Guerra, coube às Potência Ocidentais, herdeiras da águia romana, acusando-a “de praticar o paganismo e a adoração secreta a Odin”, moverem céus e terras para impedirem-na de protestar.
Era uma “certa idéia de Alemanha” que eles desejavam por um fim, visto que o espírito nacional alemão “era a cultura, a alma, a liberdade, a arte e não a civilização, a sociedade, o direito de voto, a literatura.” Por conseguinte, “era uma guerra contra o estrangulamento externo e para evitar morrer-se de sede”
Esta posição conservadora, ultra-patriótica e antidemocrática, exaltadora e acrítica das virtudes hierárquicas nacionais, fez com que Thomas Mann se desentendesse por muitos anos com seu irmão mais velho Heinrich, também romancista e tão famoso quanto ele. Situação que somente se atenuou quando os dois tiveram que emigrar para os Estados Unidos depois da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha.
Outros ainda lamentaram que os intelectuais alemães, sempre tão dóceis às autoridades, e em geral completamente apartados dos assuntos da política, viessem à cena justamente para justificarem um ato de evidente agressão como estava ocorrendo com a Bélgica em nome de uma mítica defesa de um germanismo que diziam estar ameaçado.
(*) Logo em seguida ao eclodir da guerra de 1914, Mann publicara um ensaio histórico intitulado significativamente Friedrich und die grosse koalition, “Frederico e a grande coalisão”, referente às batalhas que Frederico o Grande, da Prússia, travara contra inimigos poderosíssimos que simultaneamente moveram guerra contra ele (entre 1758-1763).
Os 93 signatários
Ludwig Fulda, escritor que redigiu o Manifesto dos 93 |
2. Peter Behrens
3. Emil von Behring (Nobel de medicina 1901)
4. Wilhelm von Bode
5. Aloïs Brandl
6. Lujo Brentano
7. Justus Brinkmann
8. Johannès-Ernst Conrad
9. Franz von Defregger
10. Richard Dehmel
11Adolf Deissmann
12. Friedrich-Wilhem Doerpfeld
13. Friedrich von Duhn
14. Paul Ehrlich
15. Albert Ehrard
16. Carl Engler
17. Gerhart Esser
18. Rudolf Christoph Eucken (Nobel de literature 1908)
19. Herbert Eulenberg
20. Henrich Finke
21. Hermann Emil Fischer (Nobel de química 1902)
22. Wilhelm Foerster
23. Ludwig Fulda ( redator do Manifesto dos 93)
24. Eduard Gebhardt
25. J. -J. de Groot
26. Fritz Haber( Nobel de quimica 1918)
27. Ernst Haeckel
28. Max Halbe
29. Gustav-Adolf von Harnack
30. Gerhart Hauptmann
31. Karl Hauptmann
32. Gustav Hellmann
33. Wilhelm Herrmann
34. Andreas Heusler
35. Adolf von Hildebrand
36. Ludwig Hoffmann
37. Engelbert Humperdinck
38. Leopold Graf von Kalckreuth comte
39. Arthur Kampf
40. Fritz-August von Kaulbach
41. Theodor Kipp
42. Felix Klein
43. Max Klinger
44. Aloïs Knoepfler
45. Anton Koch
46. Paul Laban
47. Karl Lamprecht
48. Philipp Lenard (Nobel de física 1905)
49. Maximilien Lenz
50. Max Liebermann
51. Franz von Liszt
52. Ludwig Manzel
53. Joseph Mausbach
54. Georg von Mayr
55. Sebastian Merkle
56. Eduard Meyer
57. Heinrich Morf
58. Friedrich Naumann
59. Albert Neisser
60. Walther Hermann Nernst(Nobel de química 1920)
61. Wilhelm Ostwald (Nobel de química 1901)
62. Bruno Paul
63. Max Planck
64. Albert Plohn
65. Georg Reicke
66. Max Reinhardt
67. Aloïs Riehl
68. Karl Robert
69. Wilhelm Roentgen ( Nobel de física 1901)
70. Max Rubner
71. Fritz Schaper
72. Adolf von Schlatter
73. August Shmidlin
74. Gustav von Schmoller
75. Reinhold Seeberg
76. Martin Spahn
77. Franz von Stuck
78. Hermann Sudermann
79. Hans Thoma
80. Wilhelm Trubner
81. Karl Vollmoeller
82. Richard Voss
83. Karl Vossler
84. Siegfried Wagner
85. Wilhelm Waldeyer
86. August von Wassermann
87. Felix Weingartner
88. Théodor Wiegand
89. Wilhelm Wien (Nobel de física 1911)
90. Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff
91. Richard Willstätter
92. Wilhelm Windelband
93. Wilhelm Wundt
Bibliografia
Stern, Fritz – O Mundo Alemão de Einstein. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Mann, Thomas – Considerations d´un apolitique. Paris: Grasset & Fasquelle, 1975
Mann, Thomas - Friedrich und die große Koalition. Ein Abriss für den Tag und die Stunde.
Stuttgart: Klett-Cotta Verlag , 1990.
Levenson. Thomas – Einstein em Berlim. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
Nigel, Hamilton – Os irmãos Mann.Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1985.
Ringer, Fritz K. – Declínio dos Mandarins Alemães. São Paulo: EDUSP, 2000.
Fonte: Voltaire Schilling