Professor de Oxford diz que bicheiros do Rio se organizaram como máfia.
Um homem fuma calmamente um cigarro no lado de fora de um bar numa manhã de Nápoles. Outro homem, com um boné de beisebol, entra e ao sair, dispara contra o primeiro à queima-roupa várias vezes – a última vez, na cabeça, com a vítima já caída no chão – e sai andando. Uma mulher, que conferia um bilhete de loteria se afasta, assim como um vendedor de cigarros. Um homem com um bebê olha a vítima e sai andando.
A sequência, que poderia estar em um dos filmes da trilogia “O Poderoso Chefão” ou no seriado de TV “Família Soprano”, foi captada por câmeras de segurança no dia 11 de maio. Divulgada por promotores para ajudar na identificação do assassino cinco meses depois, foi exibida pelas TVs italianas e acabou sendo postada no site de vídeos compartilhados Youtube em 30 de outubro, onde, até a última terça-feira (17) havia sido vista por quase 19 mil pessoas.
Nas últimas semanas, a prisão de importantes líderes levou autoridades italianas a comemorar o que consideraram um duro golpe contra grupos mafiosos das regiões de Nápoles e Sicília. Vista em perspectiva, no entanto, a ação parece mais um capítulo numa história que remete ao final do século XIX.
É desde esta época que, segundo o historiador italiano Salvatore Lupo, autor de “História da Máfia – Das origens aos nossos dias” (Ed.Unesp), começam a surgir as primeiras menções à máfia. O termo, então, tinha um sentido ambíguo. Segundo Lupo, antes de 1860, o termo ‘mafiusu’ descrevia um homem de coragem e ‘mafiusedda’, uma moça bela e orgulhosa.
Já a máfia, num cruzamento entre várias acepções, se referia a “empresa ou tipo de indústria criminosa; como organização secreta mais ou menos centralizada; como ordenamento jurídico paralelo ao Estado, ou como anti-Estado.”
Os primeiros grupos, de acordo com o sociólogo e historiador Diego Gambetta, professor da Universidade de Oxford e autor de “The Sicilian Mafia” (A Máfia Siciliana, sem edição brasileira), surgiram após as duas tentativas de golpe sofridas pela ilha italiana, em 1848 e 1860.
Organizados, eles protegiam seus membros no estado de caos. Mesmo com a Itália já unificada, em 1870, muitos destes grupos permaneceram ligados. Nos anos seguintes, outras regiões do sul da Itália também ganhariam suas próprias organizações mafiosas, como a Calábria e Nápoles, berço da Camorra, a quem o sociólogo atribui a provável autoria da execução descrita no início deste texto.
Imagem de câmera de segurança mostra momento em que membro da máfia é executado em Nápoles, na Itália; vídeo já foi visto por quase 19 mil pessoas (Foto: Reprodução / AFP)
Ainda no final do século XIX, famílias de sicilianos emigraram para os Estados Unidos. Com elas, segundo o sociólogo, a máfia também atravessou o Atlântico, se estabelecendo em grandes cidades, como Nova York e Chicago.
É nos EUA que, segundo Salvatore Lupo, a unidade elementar da organização, chamada na Sicília do século XIX por nomes do tipo quadrilha, rede, partido, sociedade, irmandade, é chamada então de família.
“A família de máfia corresponde pouco à família de sangue, e tanto na América quanto na Sicília, ontem como hoje, pode ocorrer que apesar das ideologias familiares, nos conflitos inframafiosos, pais e filhos, irmãos e irmãos, encontrem-se em correntes opostas e matem-se entre si”, descreve no livro.
De acordo com o autor, é também na América que surge um nome para designar a organização em seu conjunto, “Cosa Nostra” (“coisa nossa”), buscando, segundo Lupo, contrapor o grupo emigrado de outros e onde também “teria adotado modelos impessoais de organização, instituições centralizadas de governo para evitar uma violência interna primitiva e sobretudo danosa aos negócios”.
Máfia x crime organizado
Mas o que distingue um grupo mafioso de uma organização criminosa comum, como facções criminosas ou terroristas? “Uma máfia é um grupo de homens unidos pela sua reputação comum para intimidar, que usa esta reputação para ‘proteger’ e controlar mercados criminosos. Mafiosos ganham seus lucros não diretamente do crime, mas indiretamente, controlando os criminosos. O seu maior capital é sua reputação coletiva pela intimidação”, disse ao G1 o sociólogo Diego Gambetta.
Para ele, a distinção entre mafiosos e outros negociantes ilegais, está no fato de que os primeiros negociam “proteção”. “Uma gangue que lida com drogas não é uma máfia, mesmo que tenha internalizado uma ala violenta que cuida de sua proteção. Guangues deste tipo, que são encontradas do Rio a Baltimore, são instituições menos eficientes, são mais primitivas e menos evoluídas num submundo no qual não há divisão de papéis, e uma máfia e o negócio que ela protege são organizações distintas.”
No livro “A História da Máfia...”, o historiador Salvatore Lupo questiona o conceito de Gambetta de que o mafioso vende um “bem específico”, a proteção, num contexto histórico em que falta segurança.
“Parece discutível a avaliação de Gambetta que subestima o fator extorsão em relação ao fator proteção. [...] Em larga medida é justamente a máfia que cria a insegurança da qual se aproveita, podendo-se dizer que a sua única função é aquela que ela própria determina, visto também que a criminalidade comum constitui a base de recrutamento das quadrilhas.”
Mafiosos modernos: personagens da série 'Família Soprano', exibido pelo canal de TV a cabo HBO, que mostra o cotiadiano e as dificuldades de um chefe de um grupo de Nova Jersey para manter o negócio (Foto: Reprodução / IMDB)
Para o historiador, “é a máfia que descreve a si mesma como “expressão da sociedade tradicional”. “Todo mafioso eminente insiste em apresentar-se sob as vestes do mediador e do pacificador de controvérsias, de tutor da virtude das meninas; pelo menos uma vez na sua carreira, ele ostenta uma ‘justiça’ rápida e exemplar contra ladrões violentos, estupradores, raptores de crianças. Estamos, por outro lado, diante de um grupo de poder o qual pretende criar consenso externo e solidez interna.”
Mais que os ternos brancos, sapatos bicolores e cabelos impecáveis que exibem no cinema, mafiosos se distinguem de bandidos comuns pela continuidade das organizações, que vai além da vida dos seus membros, pelo respeito à estrutura hierárquica, pelos códigos e rituais de ingresso, em grande parte, segundo Lupo, emprestados da marçonaria e do carbonarismo.
Máfia à brasileira
Isto não quer dizer que este tipo de organização exista apenas entre os italianos. “Dadas as devidas condições, organizações semelhantes à máfia evoluíram em outras partes do mundo independentemente da máfia siciliana. A Yakuza no Japão, a Tríade, em Hong Kong e, após 1989, a máfia russa se desenvolveu sem nenhuma inspiração nas sicilianas”, diz o sociólogo Gambietta, que acaba de lançar "Codes of the Underworld: How Criminals Communicate" (Em tradução literal: "Códigos do submundo: como os criminosos se comunicam", também inédito no Brasil).
“Até onde eu pesquisei, os ‘bicheiros’ [no Rio] se organizaram de uma maneira muito próxima a uma máfia propriamente dita. Na maneira como eles controlavam não apenas o jogo, mas também outras atividades ilegais, de maneira independente destes mercados, pode ser considerada uma máfia”, diz Gambetta.
O professor de Oxford reitera, no entanto, que facções criminosas como as que controlam o tráfico atualmente em grandes cidade brasileiras, como Rio e São Paulo, não podem ser consideradas organizações mafiosas. “As gangues cariocas não são uma máfia, e operam de maneira diferente de uma máfia. Elas são especializadas em apenas um mercado e cuidam de sua proteção diretamente.”
Sobrevivência
A atuação em vários segmentos de negócios ilegais ao mesmo tempo é outra característica comum às máfias atuais, segundo os estudiosos. Essa versatilidade é descrita no livro, depois adaptado para o cinema, “Gomorra – A história real de um jornalista infiltrado na máfia napolitana” (Ed. Bertrand Brasil), de Roberto Saviano, que descreve os tentáculos da organização em mercados tão diversos quanto a alta-costura italiana, o mercado das obras de arte, o negócio do lixo e ao tráfico internacional de drogas.
“Do mesmo modo que ontem a ameaça dos bandidos era utilizada para induzir os proprietários fundiários a confiar aos mafiosos o exercício da empresa agrária, assim também hoje, pela ameaça da rapina, da extorsão, da usura, os comerciantes são estimulados a aceitá-los como sócios. [...] Por um lado, [vemos] uma contínua transformação de mafiosos em negociantes, por outro, uma contínua transformação de empresas limpas em empresas genericamente corruptas ou ‘contíguas’ à máfia”, descreve Salvatore Lupo.
Fonte: G1