A questão da estética
O meio escolhido por Schiller – vivendo então em Weimar - para expor suas considerações sobre o que estava acontecendo no país vizinho foi uma série de cartas que ele começou a redigir a partir de fevereiro de 1793 – justamente na época em que o rei cativo, colocado na barra do tribunal da Convenção, fora condenado à guilhotina. Para o poeta as coisas estavam claras: a Revolução era um momento extraordinário da humanidade que infelizmente encontrara ‘um povo pequeno’ para executar o seu programa generoso e emancipador. E esta tragédia devia-se a carência de subjetividade por parte das massas francesas: a pobreza espiritual e cultural delas.
Se elas fossem dotadas de uma formação elevada, se houvesse cidadãos suficientemente instruídos na Arte Clássica e que dominassem os verdadeiros princípios dela, eles poderiam ser contidos, reprimidos e até perseguidos, mas a tirania não conseguiria governá-los como Robespierre o fazia naquele momento.
Por tanto, no entender dele, a estética entrava na ordem do dia como um poderoso componente político objetivo na formação do povo, na tarefa de fazê-lo melhor, habilitando-o a resistir aos desatinos do tirano.
E uma das suas funções seria remover-lhe o egoísmo – tão celebrado pelos economistas políticos ingleses – para educá-lo no principio da solidariedade e da compaixão (adesão a uma tese de Lessing, segundo a qual a encenação teatral, particularmente o gênero trágico, tinha como objetivo despertar a ternura e empatia do público para com os padecimentos do herói caído).
A estética
Friedrich Schiller (1759-1805) |
O mundo intelectual germânico da época deslumbrou-se com o novo continente especulativo que se lhe abriu pela frente. Desde então, não houve homem de letras – de Kant, Hegel, Schopenhauer a Brecht e Adorno - que não tenha ariscado um ensaio ou um erudito tratado abordando as questões da estética. (*)
Schiller, por igual, não resistiu a deixar a sua marca, que como se viu estava profundamente comprometidade pela onda de violentas emoções que vinham sem cessar da França revolucionária e em pé-de-guerra. Inspirado nos estudos que fizera da filosofia kantiana, escolheu como veículo para exposição das suas idéias um conjunto de 27 cartas que remeteu ao seu protetor o conde de Augustenburg, editadas com o titulo de Briefe über die ästhetische Erziehung des Menschen (‘Cartas sobre a educação estética da humanidade’), em 1795.
De certo modo, pode-se dizer que ele tentou contrapor ao empenho do poder do tirano, um liberticida, às virtudes educativas do grande poeta, comprometido inteiramente com a liberdade dos homens.
Estava implicito nesta especulação o papel sensivel e único desempenhado pelo artista. Ele, fosse um versador, compositor ou pintor, era o elemento fundamental que gerava os efeitos extraordinários da beleza difundindo-a junto a população, resgatando-a do maleficios do estado da natureza pura.
Procurou também distinguir-se das exigencias morais de Kant em torno do dever – que derivavam do conceito dele do kategorische Imperativ, o imperativo categórico – que Schiller entendia serem excessivamente rigidias, que lembravam mais as regras monacais do que uma boa e sensivel ordem da razão. Para tanto, suavisou as imposições do dever compondo-as com os preceitos da liberdade.
(*) O estudo da estética, palavra derivada do grego aesthesis, que significa sentimento, sencibilidade, foi percebida pelos pensadores alemães como um caminho para alcançar o conhecimento que servisse de alternativa a defendida pelos intelectuais iluminstas franceses, concentrada basicamente nas conclusões da razão.
Em busca do Estado Estético
Schiller, entretanto, estabelece quais seriam as condições básicas que fariam com que um artista realmente se transformasse num poeta de excelência, habilitado a exercer o extraordinário papel de guia para impelir as massas a transitar do Estado da Necessidade, dominado pelo dia-a-dia, pela materialidade e pelas exigências da sobrevivência mais comezinha, para a magnitude do Estado Estético (etapa que antecede o Estado Político, identificado pela plenitude da liberdade).
Satisfeitas as condições da espiritualidade, adquirindo cultura, o povo instruído jamais se curvaria frente ao despotismo (no fundo um sonho utópico dele).
O Estado Estético, por igual, teria outra finalidade: a de contrabalançar com a arte a crescente mentalidade utilitarista e mercantilista que invadia as relações sociais do seu tempo. ‘A utilidade’, escreveu ele, ‘ é o grande ídolo da época; ela exige que todas as forças lhe sejam submetidas e que todos os talentos lhe prestem homenagem’, concluindo que o mérito espiritual da arte é um tanto irrisória em meio ‘ a quermesse ruidosa do século’. (**)
Lamentava, todavia, as circunstâncias em que a maioria vivia, pois a atividade profissional fazia com que cada um tivesse apenas uma ‘formação fragmentada’, isolando-os da totalidade, fazendo do homem ‘apenas um reflexo de sua profissão, de sua ciência. Havia, por detrás de tudo, um enorme maquinismo frio de uma organização social que força todos a aceitar a lógica do rendimento econômico, provocando vidas mutiladas e ressentimento da parte daqueles que se viam excluídos das benesses culturais usufruídas pela elite. Nestas circunstâncias, era preciso ativar o estado para que ele desenvolvesse as condições que permitiram à maioria, independentemente da origem social ou da fortuna, beneficiar-se com a contemplação do belo.
(**) A citação de Marc Jimenez ‘ O que é estética’, p. 156, extraída das ‘Cartas’ de Schiller. Herbert Marcuse, muitos anos depois, no seu ‘Eros e Civilização’, de 1955, talvez com um tanto de exagero, apontou Schiller como um dos precursores do pensamento humanista de vertente iluminista que tentou antepor-se às exigências crescentes da tecnologia alienante e da lógica do capitalismo (posição que seria exacerbada pelos integrantes da Escola de Frankfurt, a partir dos anos de 1930).
Idealizar a si mesmo
Beethoven, artista consciente da sua importância |
A posição dele, do artista, é excepcional na medida em que ao trabalhar com as emoções. Ao sensibilizar as platéias, tem o ‘poder de mudar o povo’. Inevitavelmente ele fracassará se não tiver a consciência desta profunda convicção dele se tornar num homem-ideal. A autovalorização (diríamos, a enorme projeção do ego) é pré-condição fundamental para o exercício da grande arte, ao tempo em que nunca o autor deve perder o horizonte de que sua obrigação maior visa o interesse e a verdade universal da humanidade.
Todos os vultos das artes, fosse um Bach ou Goethe, estavam imbuídos dos mais altos ideais humanos sem os quais não teriam atingido a excelência e a imortalidade. Portanto, insiste, o que se escreve ou se compõe visa nada menos do que o enobrecimento da humanidade.
A grande-alma
Tendo isto em vista, o vocacionado às artes deve buscar por si mesmo chegar à beleza, à verdade e ao conhecimento, fundamentalmente para tornar-se uma pessoa melhor, compassiva. A bela alma torna-se a mais feliz, ou somente vem a se realizar, quando promove o surgimento de outras almas iguais a ela, ajudando as pessoas a se aperfeiçoarem e se transformarem, visto que a grösse Kunstwerk, a Grande Tarefa da Arte, é construir a liberdade política da humanidade. (*)
A beleza por sua vez deve ser demonstrável como uma condição necessária a todos, pois ‘sem beleza nós não somos humanos’, sendo que ‘sem beleza na arte, sem beleza nas relações sociais, sem beleza na nossa alma, nós não faremos as coisas certas’. Ela é o elemento fundamental na tarefa de burilar a pedra bruta que é o ser humano em seu estado primário e natural para convertê-lo, graças ao domínio racional das pulsões, em cidadão do Estado Estético.
Passar, pois, pela experiência do belo é fundamental. Visto que ele enobrece o progresso da moralidade e, por conseguinte, o progresso da razão. Como assegurou na Carta VIII, ‘ a formação da sensibilidade’ era ‘ a necessidade mais premente da época’ porque ‘desperta para a própria melhora do conhecimento’. Schiller procurou dar um status à estética similar ao que a ética gozava junto aos iluministas, ardorosos defensores do aperfeiçoamento moral dos seres humanos.
Como exemplo da bela alma, Schiller lembrou-se do Bom Samaritano, o individuo que simplesmente promove o bem ao próximo sem ficar pensando se deve ou não fazê-lo. É a espontaneidade do gesto que a identifica não sua racionalidade.
Paidéia
Estátua de Schiller, o poeta como educador do povo |
(*) Anteriormente às Cartas sobre a estética, Schiller já havia composto um longo poema intitulado Die Kunstler, O Artista, de 1787, para demonstrar o notável papel civilizador que a arte exerce.
Bibliografia
Carpeaux, Otto Maria – História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, 2ª, Vol. 4
Kant, I. - Crítica da faculdade de juízo. São Paulo: Forense, 2005
Ludwig, Emil – Goethe. Porto Alegre: Editora Globo, 1949, 2 vols.
Lukács, Geörgy. Estética 1 – La pecularidad de lo estético. Barcelona: Ediciones
Grijaldo, 1982.
Martin, Nicholas – Nietzsche and Schiller: untimely aesthetics. Oxford University Press, 1996.
Schiller, F. – Cartas sobre a educação estética da humanidade. São Paulo: EPU, 1991.
Zepp-LaRouche, Helga- Political revolution requires aesthetic education of man. Instituto Schiller.