A Grande Arte
Pouco importa que o objetivo dos Grandes Patronos das Artes do passado era exaltar o estado que administravam, a herança de Cristo que se diziam representar, ou ainda simplesmente dignificar a dinastia ou a nobre descendência de onde provinham, o resultado é que no transcorrer daqueles séculos eles foram os responsáveis pelas mais impactantes construções e as mais impressionantes obras de arte que o mundo ocidental conheceu.
Tratou-se de palácios e prédios públicos diversos, templos, catedrais, mosteiros e conventos, mansões urbanas e casarões rurais de toda ordem, quase sempre ricamente mobiliados e decorados com afrescos, vitrais ou quadros das mais variadas dimensões. Por diversa que fosse a percepção estética deles, o compromisso final era sempre com o Belo e com o Perene.
Para tanto, a fim de erguer estes monumentos da grandeza e da imortalidade, contrataram arquitetos como Callicrates, Fídias, Bruneleschi, Alberti, Palladio, Borromini, Le Vau, Mansard, pintores como Rafael, Miguel Ângelo, Verocchio, Leonardo da Vinci, Brueghel, Dürer, Holbein, Bosch, El Greco, Rubens, Velázques, Poussin, Fragonard, Le Brun, Goya, e uma quantidade imensa de gravuristas, artesãos, marceneiros, ceramistas, vidraceiros, que foram mobilizados para dar suporte à demanda que o consórcio do Estado com a Igreja e com a Nobreza estabelecera por tantos séculos. Afinal aquela elite é quem formava o ‘mercado’.
Por igual, para satisfazê-la, é que os autores dramáticos da mais variada procedência e nacionalidade como Ésquilo, Sófocles, Sêneca, Shakespeare, Racine, Voltaire ou Goethe, compuseram suas peças e as representaram frente ao público. Poetas como Homero, Píndaro, Virgilio, Ovídio, Dante, Tasso, Ariosto, Camões, Milton, e tantos outros mais, foram estimulados a imortalizarem, com sucesso, os feitos, felizes ou não, dos heróis ou santos que eram cultivados pelos monarcas, pelo clero e pelos cavalheiros.
Para embalá-los, consolá-los, diverti-los ou embevecê-los, recorreu-se à lira do mitológico Orfeu, à polifonia sacra de Palestrina, ao órgão de Bach e de Haendel, ao cravo e a flauta de Mozart, à sinfonia de Beethoven, à valsa de Strauss, as óperas de Verdi e de Puccini, ao violino de Paganini ou às trompas de Wagner.
Este mundo das monarquias, da hierarquia e do refinamento começou a ser abalado por sucessivas revoluções sociais e políticas que, tendo como ponto de partida o assalto à Bastilha de Quatorze de Julho de 1789 (seguido um século e tanto depois por duas Guerras Mundiais), levaram-no ao encolhimento e por fim ao desaparecimento. Os palácios invadidos, os castelos conquistados e demolidos e os templos esvaziados pela descrença da elite moderna (que derrotou e expurgou a antiga elite aristocrática do poder político) fizeram com que o antigo arcabouço que dava sustentação a Grande Arte, fosse ela de expressão renascentista, barroca ou neoclássica, ficasse definitivamente abalado e sem possibilidades de ressurgimento.
Emerge o Movimento Modernista
Deste modo o Movimento Modernista despertou em meio às ruínas de um passado esteticamente imponente, mas reduzido `a impotência, para vir atender às modificações exigidas pelo novo tempo sob comando do deus pagão do Progresso, mediado pela sociedade de massas voltada para a produção industrial e com intenso predomínio da tecnologia.
Desprezando a mitologia, a vida folgazã e bucólica da fidalguia ou as manifestações religiosas, o Modernismo é antes de tudo uma heresia estética e uma revolução temática. A sua matéria prima é extraída do dia a dia que cerca o artista, quando não da sua própria subjetividade (que, por influencia da psicanálise, o levou à exploração e exposição dos seus mais recônditos estados de espírito). Repudia tanto as idealizações do pretérito dos românticos como revolta-se contra os padrões acadêmicos representando pelos Institutos de Belas Artes e Academias, dando ênfase à inventividade solitária dos artistas e sua potencialidade criativa. O modernista está condenado ao compromisso com o novo e o inesperado, e de algum modo tornou-se escravo disto. Na linguagem de Heidegger se deixou tiranizar pelo compromisso com a ‘autenticidade’.
Todo um mundo que, por séculos, girara na rotação determinada pelas rodas das carretas e diligencias, medindo sua velocidade pelo trote dos cavalos ou do arrastar penoso e contido dos animais de tração, viu-se tragado durante a Revolução Industrial pela estonteante velocidade imposta pelo vapor aplicado às locomotivas e aos barcos e, em seguida, pela força do motor à combustão que gerou o automóvel e o avião.
A conseqüência disto foi a exigência de uma outra estética condizente com aquelas transformações sensacionais, algo como jamais a humanidade vira em momento algum da sua história. (*)
O caos estético
Para eles não havia mais regras, nada de respeitar os cânones, tudo fora abolido ou esquecido, violado ou jogado no armário velho dos trastes.
Apesar das múltiplas formas ou até pela ausência completa delas, como ocorre especialmente nas artes plásticas mais recentes (o que passa por pintura ou escultura), verifica-se a uma determinada distância que o Modernismo é muito parecido, ‘um estilo invisivelmente coletivo’, como assegurou Malcom Bradbury, quase tão facilmente identificável como o barroco é hoje para nós. Tal como ver à distância uma floresta ou um bosque no qual todas as suas arvores e ramos nos apareçam indistinguíveis.
(*) É suficiente lembrar que os dias e horas gastos por Napoleão para atravessar os Alpes com pesados custos na Segunda Campanha da Itália (em 1800) não foram menores daqueles despendidos pelo cartaginês Aníbal Barca que fizera o mesmo trajeto dois mil anos antes dele (em 218 a.C.).
As duas fases do Modernismo
De um modo geral, neste século e meio em que o Modernismo vicejou (desde que o entendamos como uma entidade estética separada de tudo o que viera antes), podemos identificar dois momentos distintos dele. O primeiro é o do Modernismo ‘Clássico’ que cronologicamente tem seu começo ao redor de 1850, marcado pelos antológicos artigos de Baudelaire tratando do que vem a ser ‘moderno’. Período este que se estendeu por mais ou menos uns cem anos, indo até um pouco depois do final da Segunda Guerra Mundial, digamos até as proximidades de 1950.
Esta fase caracterizou-se, ainda que com forte retórica e técnica revolucionária, por haver um intenso diálogo dos modernistas com seus antecessores. Monet, Gauguin, Van Gogh, Picasso, Cézanne, Kandinsky, Ernst Ludwig Kirchner e os expressionistas alemães e mesmo os futuristas italianos liderados por Marinetti, mantiveram laços com a Grande Arte (ainda que para caricaturá-la), visto que eram costumeiros freqüentadores de exposições e museus onde estudavam os mestres do passado.
Proclamando-se - tal como Vassily Kandinsky e Peter Mondrian o fizeram - cada vez mais distantes da natureza, deram os ‘clássicos’ os primeiros sinais de ruptura com a realidade, fosse a herdada da tradição e do humanismo ou de qualquer outro cânone estético conhecido. Se muitos críticos de arte dos começos do século XX os classificaram como ‘um bloco indiferenciado de vândalos’, eles certamente, se tivessem sua existência prolongada, ficariam ainda mais estarrecidos com o que veio a seguir.
O abismo do Modernismo Recente
A Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945, e a subseqüente transferência da liderança modernista de Paris para Nova York, gradativamente fez com que se acelerasse o rompimento com ‘ os patronos do passado’. Papel fundamental nesta interrupção da continuidade do dialogo do presente (modernista) com o pretérito (arte tradicional), foi a ação de Marcel Duchamp, falecido em 1968, um ex-integrante do cubismo europeu que, depois de muitas idas e vindas pelo Atlântico, fixou-se nos Estados Unidos a partir de 1957.
Devido a este pândego francês, as venerandas hierarquias nas artes foram definitivamente deixadas de lado, mergulhando num subjetivismo extremado e radical que, entre outras coisas, fez por abolir os imites entre a pintura e a escultura, entronizando, entre outras coisas, a Arte Conceitual que passou a ser uma espécie de vale tudo estético.
Liberalidade plena esta que de certo modo se afinava com a posição ideológica da intelectualidade ianque em conluio com a elite empresarial comprometidas em construir na América um Novo Mundo que pouco desejava preservar o que lembrava o passado e seus elos com a cultura européia. (*)
A tolerância, ou melhor ainda a leniência, com a hipercriatividade e o destempero dos artistas que mergulharam num esoterismo cada vez mais enigmático, por igual desempenhou um importante papel ideológico na luta travada pelos Estados Unidos, primeiro contra o Nazismo e em seguida contra a URSS.
Enquanto o estado comunista impunha aos seus o Realismo Socialista, os magnatas de Nova York faziam questão ostensiva de sustentar o desregramento da sua gente das artes. Viam como uma luta da Liberdade contra o Dirigismo.
O escancarar deste abismo – ‘a panóplia das novas formas’ - foi assumido quase que inteiramente pelos os artistas norte-americanos. Começando com a exposição individual de De Kooning, na Galeria Charles Egan, em 1948, tendo seguimento com Jackson Pollock, o exuberante nome do expressionismo abstrato, fruto do Greenwich Village, o rompimento com a tradição e mesmo com o modernismo ‘clássico’, atingiu o seu máximo com aPop Art de Andy Warhol, que nos anos 60 decidiu reduzir sua obra a um processo de elaboração abertamente industrial (não se motivo o seu ateliê nova-iorquino denominava-se ‘ A Fábrica’).
(*) Como representativa da obsessão dos artistas norte-americanos em romper seus laços com o Velho Mundo é interessante a observação feita pelo pintor Milton Resnick; ‘ a tradição’, afirmou ele, ‘ é como uma parede de tijolos, você a ergue, ela fica mais alta e mais pesada a cada século que passa, mas você continua, porque acha que há muito espaço ainda, e aí ela desmorona em cima de você. Porque, numa centena de anos, ninguém conseguirá fazer coisa alguma. E a América, você sabe o que é a América? Ela empurra aquela parede abaixo. ’ (ver Gil Perl – New Art City: Nova York, capital da arte moderna, pág. 152 )
Cedar Taverne supera Le Lapin Agile
H.Holbein ‘ Os embaixadores franceses’, 1533, exemplo da Grande Arte |
Nova York transformou-se no novo símbolo da ascendente prosperidade dos Estados Unidos, depois da superação dos estragos da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, ela, apesar das exigências limitadoras crescentes da Guerra Fria, escancarava-se como um enorme espaço aberto a todo o tipo de possibilidades.
Pela primeira vez nos três mil anos da Cultura Ocidental as novas criações que brotavam aos borbotões de estúdios, de ‘fábricas’, de porões ou de sótãos improvisados como ateliês, espalhados por diversos lugares da colossal metrópole norte- americana, apresentaram-se ao público sem qualquer referência ao que se fizera antes em matéria de arte.
Os Grandes Mestres, fossem os do Renascimento ou do Impressionismo, definitivamente se viram abandonados pelos rebeldes culturais da nossa época. Nem saber desenhar ou esculpir é hoje exigido. Programaticamente afastaram-se de qualquer compromisso com o ‘belo’ como também renunciaram a uma das mais caras obsessões da arte em todos os tempos: o desejo de perenidade.
Tudo o que fazem os que compõem o quadro do Modernismo Recente – ainda que se apresentem como ‘ transgressores’ - está comprometido com o descartável, com a filosofia do ‘use e jogue fora’, típica da sociedade ultra-consumista a que pertencem (a qual muitos deles dizem ideologicamente se opor), caracterizada pelo vai-e-vem do que sai da linha de montagem.
Mas a revolução estética do Modernismo Recente não se deteve somente nisto, ela também promoveu à abolição dos ‘gêneros’: a diferença entre a pintura e a escultura evaporou-se. Substituíram-nas as ‘instalações’.
Artista x público
O resultado disto tudo tem sido o assombro. O público em geral manifesta constante perplexidade com o que se depara nas exposições ou nas bienais voltadas para dar abrigo ao que se entende por arte de agora. Quando não uma progressiva indiferença para com aquilo que lhe é mostrado, pois o poderoso movimento iconoclasta desencadeado há mais de século e meio atrás parece ter aportado a um Grande Nada.
Quanto mais a multidão dá sinais de impaciência e rejeição mais o artista se isola, tornando-se mais hermético e encaramujado.(*) Isto – o precipício aberto entre a obra e o público dos nossos dias - proporcionou uma incrível proliferação de ensaios publicados por inúmeros intelectuais preocupados em tentar extrair do Grande Nada, em espantosos exercícios de imaginação verbal, algo que pudesse ser inteligível aos demais mortais, isto é aos freqüentadores das artes em geral (como foi o caso do artigo de Octavio Paz sobre o enigmático ‘Grande Vidro’ de Marcel Duchamp).
(*) Este hermetismo é entusiasticamente apoiado pela Tribo Esotérica, uma composição um tanto fluida de jornalistas e críticos culturais, curadores de exposições e bienais, donos de galerias, marchands e milionários colecionadores, que domina a rede midiática cultural do circuito Paris-Nova York, e adjacências cuja função é enaltecer qualquer coisa que se assuma como arte.
Uma fome insatisfeita frente ao Enigma Vazio
Tela de Salvador Dali , um ‘clássico’ do modernismo |
Tudo nos leva a aceitar que a Tecnologia tenha absorvido para si não só a função de ser a panacéia redentora da humanidade como também a usurpadora dos antigos conceitos gregos do belo do bom, deixando muito pouco para o que chamávamos de Arte. Nos dias que correm é a Tecnologia, por meio do design, quando não a Publicidade, quem satisfaz o apetite da humanidade pelo belo ( basta comparar o êxtase em que as pessoas demonstram frente a uma exposição de automóveis do ano frente a decepção com que saem da maioria das vernissages das galerias de arte).
Em se tratado da Modernidade Recente, seja na sua aparência Minimalista, Pop, Arte Conceitual ou Performance, pelo menos até o corrente não se deu a síntese desejada pela dialética de Hegel que visava harmonizar e superar os contrários, no caso presente, do o público de arte com a estética que lhe corresponde no tempo. Venceu Kierkegaard com a curiosa contraposição entre os dois estados da vida, aut x aut, uma situação em que a ‘vida estética’ se vê impossibilitada de conciliar-se com a ‘ vida moral’.
Bibliografia
Archer, Michael - Arte Contemporânea: Uma Historia Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Cauquelin, Anne- Arte Contemporânea - Uma Introducão Artes, São Paulo; Martins Fontes, 2005.
Hughes, Robert – Nothing if not critical. Selected Essays on Art and Artists, Penguin Books.
Hughes, Robert – The schok of the new. The Hundred-Year History of Modern Art Its Rise, Its Dazzling Achievement, It's Fall. Nova York: McGraw-Hill, 1990.
Perl, Jed – New Art City: Nova Yrok, capital da arte moderna. São Paulo: Cia. Das Letras, 2008.
Sant Anna, Affonso Romano - Enigma Vazio - Impasses da Arte e da Critica São Paulo, Editora Rocco, 2008.