1. Escola e Imaginário
Preocupado em refletir sobre o fazer historiográfico, Miceli procura definir o que seria o “lugar” da história. Em suas palavras, este lugar pode ser,
(...) a caverna, a aldeia, o império, a nação, mas pode ser também o mercado, a cidade, a fábrica, o espaço agrário, a família, o hospital, a prisão, o cemitério, o corpo, partes do corpo, o navio, os gestos, as lágrimas, o olhar, o sentimento! A memória – sim a memória – enquanto lembrança ou reminiscência; enquanto objeto e instrumento de poder, enquanto seleção e esquecimento. Todas essas e outras infinitas coisas se oferecem como o espaço e o tempo para o trabalho do historiador profissional, já que o espaço da história não tem fronteiras, mesmo quando elas sejam seu tema, ou, ao menos, têm fronteiras que se afastam, espremem, dilatam . [3]
Trabalhar o tema educação numa perspectiva histórica não tem sido tarefa fácil. Parece-me que os historiadores têm preferido deixar essa responsabilidade para os profissionais da educação. Minha decisão, porém, deve-se à compreensão de que o espaço do historiador, como muito bem disse Miceli, não é um espaço limitado, e que “o historiador, embora possa fazer parte de uma categoria geral, não está isento de identidade própria e particular.”[4] Logo, é ao historiador que cabe investigar historicamente o espaço da educação, tomando-o como objeto de estudo.
Se o lugar da história são todos os lugares, é porque a história é a representação da vida humana, com seus anseios, suas lutas, suas expectativas. A escola, por óbvio, não foge a essa dinâmica. Também nela há lugar para o desenvolvimento de “... uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis, um componente funcional e um componente imaginário”,[5] este último, hoje reconhecidamente, objeto privilegiado de estudo para o historiador.
Segundo Marques, a escola e as aprendizagens a que se destina, antes de serem objetos concretos de nossos saberes e nosso querer, “estão prefiguradas no imaginário social, no campo simbólico da fantasia”, onde se espelha o mundo dos possíveis, o remoto, o ausente, o ainda obscuro, os objetos do desejo, o campo avançado das utopias. É também na ordem simbólica que as instituições sociais existem, e é nessa ordem que se articulam os componentes do imaginário com os da funcionalidade prática, “pois é no campo simbólico que se instauram os desejos inscritos nas perspectivas de futuro, antes de se constituírem em projetos manifestos de via e de ação solidária.”[6]
Na base de qualquer ideal, ou projeto de escola, situa-se a verdade do desejo, não apenas por parte daqueles que formalmente a instituem, mas, sobretudo, por parte dos que a fazem no dia-a-dia, dando-lhe vida e efetividade. As práticas que a instituem, mantêm ou transformam permanecem em relação com o que ainda não se realizou e com a evocação do possível. Portanto, entender a escola supõe entender as cabeças dos que a fazem no dia-a-dia, isto é, as mais recônditas razões que os movem. Qual o imaginário dos alunos? Quais as expectativas dos pais? E as dos professores? O que significa a escola na cultura em que se insere? Que aprendizagens sociais acham-se pressupostas nas intenções dos que criam a escola?
A história da escola, assim como da experiência escolar, não se constitui em sucessão de fatos, mas em construção e circulação de sentidos, exigentes não de descrição causal, mas de compreensão de como se constroem as redes que permitem suas articulações com o imaginário social, isto é, daquilo que as pessoas concebem como sendo a realidade. Articula-se o imaginário da escola com o imaginário social amplo, bem como com o imaginário da comunidade concreta a que ela se dispõe servir; e, no interior dela, os alunos, os professores, os funcionários articulam-se entre si, fazem-se instituintes de seu sistema de relações e “insere-se no campo do que está estabelecido na instituição, como resistência a ela e princípio de inovação”.[7]
Sendo assim, a compreensão de uma sociedade passa, entre outras coisas, pela forma como ela organiza seu processo educacional, uma vez que os desdobramentos de uma são sentidos e percebidos no outro.
Em estudo elaborado por Petitat, acerca da escola como construto social, aquele enfatiza a evidente participação da escola como reprodutora da ordem vigente. Entretanto, lembra o mesmo autor que a escola também contribui de forma substancial no processo de transformação desta sociedade, pois
... se trata de uma ordem dinâmica, de grupos e de classes em mutação, de técnicas em permanente renovação e de culturas que se redefinem periodicamente”. [8]
Refletindo sobre a educação, Durkheim define-a como algoeminentemente social. A educação atuará como promotora de transformações, integrando o indivíduo (instável e flexível) socialmente, uma vez que “a sociedade não [se] encontra pronta dentro das consciências [das] bases sobre as quais repousa; é ela própria [a sociedade] quem as constrói.” [9]
A ação sócio-pedagógica é analisada por Durkheim como responsável por imprimir, nas crianças, “elementos morais e intelectuais” em consonância com a organização social vigente. Segundo sua definição, “a educação é a ação das gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social” [10].
Nas sociedades atuais, o sistema escolar representa um papel preponderante como veículo de valores globais imprescindíveis à sociedade. Parsons considera a “revolução no ensino (obrigatoriedade do ensino e ampliação do período de estudo) ao lado das grandes revoluções industriais e democráticas”[11], o que significa compreender que a escola proporciona fundamentação de peso no processo da formação e manutenção de uma sociedade, assim como das identidades.
Com base no pensamento de Antônio Cândido, em estudo voltado à análise da estrutura da escola, compreende-se que, embora imbricada à dinâmica social, cada escola possui a sua própria dinâmica. Assim sendo, as instituições escolares diferem entre si “por apresentar características devidas à sua sociabilidade próprias”.[12] Partindo dessa premissa, o estudo voltado às práticas inscritas nas instituições escolares deve considerar, também, as especificidades de cada escola, de forma a alcançar uma compreensão ampla do objeto de pesquisa.
Assim como são distintas, as condições que cercam o surgimento das escolas também o são. Estudar as condições históricas que permitem o aparecimento e manutenção dessas instituições deve ser uma preocupação constante do pesquisador desse tema.
Refletir sobre a educação, nessa perspectiva, levou-me a um diálogo com Romanelli.[13] Em estudo sobre a história da educação no Brasil, a autora argumenta que qualquer análise voltada às práticas escolares deve considerá-las como algo concreto, fruto de nossa herança cultural e extremamente ligada aos jogos de poder. Valores, poder, controle, demandas sociais são dados que entram necessariamente na construção do espaço escolar. Nessa perspectiva, percebe-se que a cultura, tanto quanto as lutas de poder, define o processo educativo. Romanelli sugere que a
... cultura é muito mais do que aquilo que a escola transmite e até muito mais do que aquilo que as sociedades determinam como valores a serem preservados através da educação”.[14]
Afirma ainda, com base em Max Scheler, que
... cultura é humanização. E humanização, aqui, tanto se refere ao “processo de nos fazer homens”, quanto ao fato de que os bens culturais também se humanizam. A história do homem, como história da cultura, é, assim, o “processo de transformação do mundo e simultaneamente do homem”.[15]
É justamente por esse aspecto predominantemente humano que a cultura não se aparta do social e, entre os instrumentos de que ela se utiliza para sobreviver está a escola. Pensar a ação educativa é considerar que ela se processa de acordo com a compreensão que se tem da realidade em que se está imerso, compreensão que muito tem a ver com a forma como representamos essa realidade.
Quando concebemos que o poder tem implicações na dinâmica da prática escolar, não podemos deixar de considerar que esta se organiza e se desenvolve, quer espontaneamente ou deliberadamente, em consonância com interesses de grupos sociais, ainda que os discursos construídos sobre e pelo sistema de ensino procurem universalizar esses interesses, remetendo-os à imagem do todo social. Sobre isso, Chartier[16] lembra que a realidade social, para existir concretamente, precisa ser significada, cabendo às representações sociais o papel de dar sentidos às práticas. É papel das representações, por exemplo, fazer desaparecer os interesses específicos pelo recurso à universalização dos propósitos inscritos em toda e qualquer prática social. Assim sendo, sempre caberá ao interessado no tema questionar quais imagens/representações são construídas para legitimar ou questionar o jogo de poder inscrito nas práticas escolares.
Isso me faz lembrar a advertência de Jennifer M.Gore, outra estudiosa do tema, para quem
O discurso é ambíguo... uma forma de poder que circula no campo social e pode ligar-se tanto a estratégias de dominação quanto a estratégias de resistência. (...) Não existem práticas pedagógicas inerentemente libertadoras ou inerentemente repressivas, pois qualquer prática é cooptável e qualquer prática é capaz de tornar-se uma fonte de resistência. Afinal, se as relações de poder são dispersas e fragmentadas ao longo do campo social, assim também o deve ser a resistência ao poder.[17]
Também, utilizando-se das reflexões folcaultianas, Gore enfatiza que:
...uma sociedade sem relações de poder só pode ser uma abstração... (...) A análise, a elaboração e o questionamento das relações de poder(...) é uma tarefa política permanente, inerente em toda a existência social.[18]
Não poderia ser diferente com as práticas escolares. Concordo com as reflexões de Penin, para quem a escola deve ser entendida “... como uma obra que, não obstante pertencer a uma instituição, é construída e transformada pela ação dos sujeitos presentes.” [19]
Como lembra Frossard, em pesquisa dedicada à reflexão sobre a prática escolar:
Partindo do entendimento de que a instituição escolar é, por natureza, um espaço de hierarquização, isto [implica] refletir sobre a rede de pequenos poderes que ali se engendraram e sobre como tal quadro se delineia nas representações de seus atores.[20]
O autor refere-se especialmente às práticas pedagógicas e às relações hierárquicas próprias da instituição escolar. Mas, não se pode perder de vista que as relações de poder que ali se inscrevem transcendem seus limites, associando-se a um contexto mais amplo. Em Jaraguá, no período enfocado, o estudo dessas relações de poder deve necessariamente considerar, por exemplo, os interesses dos chefes políticos locais.
Como lembra Foucault, referindo-se à noção de micro-poderes,
A história não tem “sentido”, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas.[21]
O que significa considerar que a escola é uma entre muitas outras instâncias onde os micro-poderes são postos em prática, criando lutas, estratégias e táticas que se articulam a outras instâncias de poderes, justificando-as ou não. Como instância de poder, a escola ajudará a configurar, pela experiência que propicia, uma memória sobre o vivido.
Chaul, em trabalho dedicado à historiografia de Goiás, enfatiza que o coronel era uma personagem fundamental da representação do poder característico da região em foco.[22] Citando Carvalho, esse autor adverte para o prolongamento desse fenômeno no tempo, o que permite situar o período aqui estudado como ainda marcado pelos contornos do fenômeno do coronelismo :
Visto como a evolução do mandonismo, o estudo do coronelismo passa a ser a história da formação da cidadania. Não há nada de errado nisto e é uma história que pode ser feita. Mas fica-se na impossibilidade de precisar as fases do processo, e mesmo seu ponto final, de vez que algum tipo de clientelismo, de controle eleitoral através da distribuição de bens públicos e privados, dificilmente deixará de existir em país que se caracteriza pela pobreza da população e pela escassez de emprego.[23]
O coronelismo é visto como uma relação de compromisso, como nos mostram Gomes e Ferreira:
... uma troca de proveitos entre o poder público progressivamente fortalecido, e a decadente influência dos chefes locais, notadamente os donos de terra. Trata-se, portanto, de uma rede complexa de relações em que os remanescentes do poder privado são alimentados pelo poder público, em função de suas necessidades eleitorais de controlar o voto do interior.[24]
1.2. Memória, representação, relações de poder e processos identitários
Quando Scheerazade contava, cada episódio gerava em sua alma uma história nova, era a memória épica vencendo a morte em mil e uma noites.
(Ecléia Bosi)
A definição de meu objeto de estudo pautou-se por uma perspectiva teórica que considera importante desvincular este trabalho de uma certa tradição que vem marcando os estudos voltados à área da educação. Parto do princípio de que é necessário considerar as práticas educacionais como um espaço onde se definem relações de poder. Sustentando-me, entre outros, em Foucault, não apenas o poder no sentido de poder do Estado, de dominação, mas sobretudo o poder compreendido como positividade, responsável pela constituição de verdades, que se caracteriza por ser amplo, disperso, micro,[25] que acena para possibilidades, projetos.[26] Esses poderes devem ser investigados para que se possa entender as configurações que ganham essas práticas em diferentes momentos históricos. E, nas práticas encontradas, as representações ali presentes que ajudam a configurar sentidos às mesmas.
Roger Chartier lembra que a realidade social é construída por “esquemas” de representações que, forjados de acordo com os interesses dos grupos sociais, são responsáveis pela criação de “figuras”, graças às quais a realidade ganha sentido, tornando-se inteligível. Logo, para esse historiador, todas as relações sociais são intermediadas por representações.[27] As representações, portanto, são formas de apreensão do real. Mas são também, como lembra Pasavento, baseando-se em Bourdieu, “... um campo de manifestação de lutas sociais e de um jogo de poder.”[28]
Concordo com Silva, quando afirma que o tradicional binarismo, o qual opõe uma pedagogia repressora a uma outra libertadora, pouco avança em relação à discussão sobre o poder inscrito nas práticas educacionais, já que parte do pressuposto da existência de um sujeito e uma consciência desde sempre dados, naturalizando as relações e impedindo que se apreenda as estratégias de poder colocadas em jogo. Segundo Silva, deve-se considerar que “todo saber/conhecimento torna-se igualmente suspeito de vínculo com o poder”.[29]Em outras palavras, nenhum saber/prática é inerentemente libertador ou opressivo, como tão bem mostrou Foucault em seus trabalhos. É esse mesmo autor que adverte para inadequação de se enfrentar a questão do poder pela via da tradicional análise da ideologia. Para Foucault, a ideologia não é algo que se contrapõe a “alguma coisa que seria a verdade”.[30] Não se deve buscar uma verdade que estaria escondida em algum lugar. Antes, deve-se procurar “ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos.”[31] Se a advertência de Foucault serve para se entender as relações construídas no interior das práticas educacionais, esclarece, também, sobre como trabalhar as fontes que remetem àquelas experiências, sejam elas documentos de arquivo, sejam fontes orais.
Disto decorre um posicionamento teórico-metodológico que considera os documentos (de qualquer natureza) como discursos, o que exige, em primeiro lugar, que esses sejam apreendidos como construções históricas, reveladoras dos jogos de poder que se inscrevem em todas as relações sociais.
É a isso que se refere Brito, quando adverte que as fontes documentais não devem ser consideradas como “documentos que remetem à verdade do acontecimento. Preferimos vê-las como um outro acontecimento discursivo que, ao construir-se, institui sentidos para aquele.” [32]
Esse tipo de proposição pode ser encontrado, por exemplo, no programa de reflexão proposto pela Análise do Discurso, que encara o discurso como aquilo que constrói a realidade, representando-a. [33]
A palavra discurso sugere, etimologicamente, a idéia de curso, de correr, de movimento. Em outras palavras, todo discurso é histórico. Somente nele (e por ele) podemos encontrar o passado como foi concebido, construído, vivido. Ele não é tão somente “reflexo” da realidade à qual se remete. É a única realidade possível de se apreender. No entendimento de Orlandi:
...A análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social.(...) O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana.[34]
E, ainda,
... na perspectiva discursiva, a linguagem é linguagem porque faz sentido. E a linguagem só faz sentido porque se inscreve na história.[35]
Assim, trabalhar as fontes como discursos implica concebê-las numa perspectiva que não visa buscar o falso em meio a alguma secreta verdade, separando o joio (falso) do trigo (verdade), como pretenderam um dia os metódicos. Parto do princípio de que todo discurso é um trabalho de tradução do real, de busca de sentidos. Este foi o entendimento que guiou este trabalho.
Como lembra Silva, nenhuma linguagem é neutra, transparente.
Em vez disso, a linguagem é encarada como um movimento em constante fluxo, sempre indefinida, não conseguindo nunca capturar de forma definitiva qualquer significado que a precederia e ao qual estaria inequivocadamente amarrada.[36]
Foi essa a perspectiva que propus para analisar minhas fontes, procurando nelas os sentidos que os atores sociais procuram imprimir à realidade vivida. Exemplificando, não parti de nenhum pressuposto sobre o perfil desta ou daquela instituição analisada, entendendo que é no jogo cotidiano que as posições vão se definindo. Entendi, desde o início, que somente a análise das fontes, entendidas como produção histórica, cujos sentidos devem ser buscados na história, poderia informar sobre os jogos de poder que ali se inscreviam.
Quanto às fontes orais, também elas receberam o tratamento de discursos.
Considerando que as fontes, sejam elas de que natureza for (documentos oficiais, quadros estatísticos, textos literários, iconografia etc), nunca são neutras, pois “resultam de escolhas, fruto de lutas pela constituição de uma certa imagem que se tem (ou que se deseja fixar) do tempo que se vive”,[37] a tradicional oposição à subjetividade inscrita no documento oral, não me parecia justificar-se. Nesse sentido, discordo de Janotti e Rosa, quando alegam que “... inerente aos depoimentos orais, há uma pluralidade de aspectos subjetivos que os diferenciam das fontes escritas...”.[38] Porém, concordo com essas mesmas autoras quando refletem que: “As histórias de vida não esclarecem, necessariamente, os fatos passados, mas são interpretações atuais deles”.[39]Entretanto, cabe ainda indagar: existiria alguma fonte capaz de esclarecer, “necessariamente, os fatos passados”? Toda fonte, seja qual for sua natureza, não seria sempre uma interpretação do que se deseja registrar, tanto da parte de quem a produz, quanto do historiador que a trabalha?
Creio que essas questões perdem relevância quando se considera que trabalhar com a fonte oral significa fazer, também, uma história do nosso tempo, dos valores que nos inspiram e que modelam nossos comportamentos e crenças.[40]
Ainda assim, outras dimensões do documento oral foram consideradas. Refiro-me, mesmo que por ora brevemente, à preocupação em dar um tratamento teórico à questão da memória.
Como mostrou Ecléia Bosi, baseada nos estudos de Halbwachs,
... a lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, por que nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor.[41]
A estreita ligação entre o estudo da memória e o das representações é lembrado por Ecléia no trabalho já referido: “... a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações”.[42] Em outras palavras, a memória é instrumento que auxilia na constituição de representações que tanto remetem ao passado quanto à realidade atual, configurando sentidos à mesma e interferindo sobremaneira na construção dos processos identitários sempre em andamento.
Woordward, em estudo sobre identidade, sugere que
Ao afirmar uma determinada identidade, podemos buscar legitimá-la por referência a um suposto e autêntico passado – possivelmente um passado glorioso, mas, de qualquer forma, um passado que parece “real” – que poderia validar a identidade que reivindicamos.[43]
O sujeito fala a partir de um referencial histórico e cultural específico, que assegura sustentação e embasamento ao que ele diz. A (re)descoberta do passado sugere um processo de construção de identidade que passa inclusive pela representação do sujeito concebendo sua experiência – aquilo que foi – e refletindo sobre o que se tornou. Em síntese, procurando responder a indagações do tipo: quem sou eu? o que eu poderia ser? quem eu gostaria de ser? Isso ocorre porque os indivíduos, enquanto sujeitos construtores de suas identidades, utilizam-se dos discursos e dos sistemas de representação para construírem os lugares a partir dos quais podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. O passado tem fundamental importância neste processo, pois é nele que se procura encontrar validação para essas construções. Por outro lado, o presente elege e valida os eventos passados, “evocando origens, mitologias e fronteiras do passado”.[44]
Considerando-se estas reflexões, deve-se entender que o trabalho de memória está sempre associado ao trabalho de construção da identidade. Não é qualquer passado que a memória evoca, mas aquele que traduz o esforço de construir uma identidade que responda aos anseios do depoente no presente. Com isso não se quer dizer que essa memória seja falsa, apenas que ela é, e sempre será, seletiva.
Entendido dessa forma, o trabalho da memória deve ser apreendido em toda a complexidade que marca a estreita relação (passado/presente) que o informa.
... a lembrança pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, traz à tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida. Daí, também, o caráter não mecânico, mas evocativo do seu aparecimento por via da memória. Sonho e poesia são, tantas vezes, feitos dessa matéria que estaria latente nas zonas profundas do psiquismo.[45]
Halbwachs, em seu trabalho sobre a memória coletiva, também argumenta sobre a importância de seu estudo para uma melhor compreensão histórica da sociedade e enfatiza que:
(...) Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais. Tudo se passa como se confrontássemos vários depoimentos . É porque concordam no essencial, apesar de algumas divergências, que podemos reconstruir um conjunto de lembranças de modo a reconhecê-lo.[46]
Outra categoria central na realização deste trabalho foi a de cotidiano, pois entendo que é na vida cotidiana que as representações são elaboradas e colocadas em prática. Com o que corrobora Penin, ao afirmar que
... a cotidianidade, (...) apresenta-se como o império das representações. No cotidiano, as representações nascem e para ali regressam. No cotidiano cada coisa (...) é acompanhada de representações que mostram qual é o seu papel.[47]
Ccomo bem lembra Lefebvre, o cotidiano nada mais é que “um nível da realidade social” [48], por sinal, dos mais ricos. Baseando-se nesse autor, Penin afirma que
... a vida cotidiana apresenta-se como um nível de ‘totalidade’, da mesma forma que são níveis, e podem ser investigados como tal, o biológico, o fisiológico, o psicológico, o econômico etc.”[49]
Uma pesquisa, cuja proposta fundamenta-se na tríade memória/representação/cotidiano, deveria considerar, ainda, que os depoimentos não poderiam ser apreendidos tomando-se como referência noções como verdade/mentira, por exemplo. Mais uma vez lembrando Eclea Bosi, constatou-seque nesse tipo de investida isso é o que menos importa. Relatando como resolveu esses impasses em sua própria pesquisa, a autora lembra que:
A veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história oficial. Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se na história de sua vida.[50]
Afinal, como informa Lefebvre, “as representações se formam entre o vivido e o concebido, diferenciando-se de ambos.” [51] Portanto, passou longe a pretensão de contar “o que realmente aconteceu”, meta rankiana cuja impossibilidade ninguém mais põe em dúvida.
Atualmente, a elaboração de uma pesquisa história abre um leque de possibilidades interdisciplinares que muito auxilia o profissional da área que se vê, finalmente, livre dos paradigmas da história tradicional, em que era tido como um mero narrador dos acontecimentos passados. Através dessa nova postura, o historiador pode hoje se desvencilhar das antigas e já tão criticadas amarras que por tanto tempo pautaram seu ofício. Refiro-me, principalmente, à ilusão de que no documento se inscreveria uma verdade capaz de ser captada pelo olhar atento e rigoroso do historiador.
Sem deixar de reconhecer a importância da fonte documental, sem a qual não haveria trabalho histórico, pode-se hoje interpretá-la com maior abertura, privilegiando o diálogo interdisciplinar, buscando apreender as representações inscritas nas fontes/discursos. Reconhece-se, portanto, com J. Le Goff, que “não há história sem documentos”. E mais, segundo o mesmo historiador, “há que tomar a palavra documento no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem ou de qualquer outra maneira[52], mas considerou-se, sobretudo, a necessidade, já lembrada no início deste capítulo, de fazer a leitura das fontes fortemente decidida a deixar a pesquisa fluir como uma “verdadeira aventura”.
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[1] O presente artigo faz parte do trabalho de mestrado em História, apresentado à UnB em 2002 sob o título “Se não me falha a memória... Representações da Experiência Escolar em Jaraguá -(1927/1999)
[2] Meste em História – UnB; Especialista em Metodologia do Ensino Superior – UEG; Graduada em História – UFG. Professora Efetiva do Instituto Federal Goiano-Campus Ceres e professora convidada da UEG.
[3] Paulo Miceli. “A terceira margem – notas breves sobre a representação do Espaço no Trabalho do historiador” in MIGUEL, Antonio e ZAMBONI, Ernesta. (org.).Representações do Espaço: multidisciplinaridade na educação. Campinas/SP: Autores Associados, 1996, 09.
[4] Idem, ibdem, p. 10.
[5] Cornelios Castoriadis. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.159.
[6] Mário Osório Marques. “Escola, Aprendizagem e Docência: Imaginário Social e Intencionalidade Política” in Ilma Passos Alencastro Veiga (org.) Projeto Político-Pedagógico da Escola: uma construção possível. Campinas/São Paulo: Papirus, 1995, p. 11.
[7] Idem. Ibdem, p. 13.
[8] 1André Petitat. Produção da Escola/Produção da Sociedade: análise sócio-histórica de alguns momentos decisivos da evolução escolar no ocidente. trad. Eunice Gruman.Porto Alegre: Artes Médicas, 1994, p. 11.
[9] E. Durkheim. Educação e Sociologia. Paris, PUF, 1968, p.82. Apud Petitat, André. Produção da escola/produção da sociedade: Op. cit. p. 13.
[10] Idem. p.13.
[11] T. Parsons. O Sistema das Sociedades Modernas. Paris, Dumond, 1973, p.2. Apud André Petitat. Produção da escola/produção da sociedade: Op. cit., p. 18.
[12] Antônio Cândido. A Estrutura da Escola. São Paulo: Pioneira, 1998, p.273.
[13] Otaíza de Oliveira Romanelli. História da Educação no Brasil Petrópolis: Vozes, 1996.p. 10-26.
[14] Idem, ibdem, p. 20.
[15] Idem, ibidem p.20.
[16] Cf. Roger Chartier. História Cultural: Entre Práticas e Representações. Op. Cit., p. 183.
[17] Jennifer M. Gore. “Foucault e Educação: Fascinantes Desafio” in Tomaz Tadeu da Silva (org.). O Sujeito da Educação. Estudos foucaultianos. Op. cit., p.15.
[18] Idem, ibidem, p. 18.
[19] Sonia Penin. Cotidiano e Escola: a obra em construção. 2ª ed., São Paulo: Cortez, 1995, p. 17.
[20] Everson Lopes Frossard. Escola: “Rizonha e Franca?” – “Representações douradas”, “representações de chumbo” e configuração atual no cotidiano brasiliense. Dissertação de Mestrado, Departamento de História da UnB, 1998, p. 3.
[21] Michel Foucault. “Verdade e poder” in Microfísica do Poder. Op. cit, p.5.
[22] Nasr Nagib Fayad Chaul. Caminhos de Goiás: da Construção da decadência aos limites da modernidade. Goiânia: Ed. UFG. Goiânia, 1997
[23] José M. de Carvalho. Dicionário histórico-biográfico brasileiro: 1930-1983.Verbete: “Coronelismo”. V.2., p. 932. Apud. Nasr Nagib Fayad Chaul. Op. cit., p. 113. (grifos meus).
[24] Ângela de Castro Gomes e Marieta de Moraes Ferreira. “Primeira república: um balanço historiográfico”. In Estudos Políticos. Vol. 2, nº 4, Rio de Janeiro: s/d, p. 251.
[25] Cf. Michel Foucault. . “Verdade e poder” in Microfísica do Poder. 7ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1988.
[26] Cf. Moacir Ganotti. Educação e Poder: introdução à pedagogia do conflito. 11 ed., São Paulo: Cortez, 1998.
[27] Cf. Chartier Roger. História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertand Brasil, 1990.
[28] Sandra J. Pasavento “Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário” In Revista Brasileira de História. Representações. Vol. 15, nº29, São Paulo:Contexto/ANPUH, 1995, p. 18.
[29] Tomaz Tadeu da Silva. “O adeus às metanarrativas educacionais” in Tomaz Tadeu da Silva (org.). O Sujeito da Educação. Estudos foucaultianos. Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p. 250.
[30] Michel Foucault. “Verdade e poder”in Microfísica ... Op. cit., p. 7.
[31] Idem, ibidem, p. 8.
[32] Eleonora Zicari c. de Brito. “Sobre o acontecimento discursivo” in Tania Navarro Swain (org.) História no Plural. Brasília: Edunb, 1994, p. 190.
[33] Essa proposta pode ser encontrada, por exemplo, em: Eni Pulccinelli Orlandi.Análise de Discurso. Princípios e procedimentos. Campinas/São Paulo: Pontes, 1999.
[34] Idem, ibdem, p. 15.
[35] Idem, Ibdem, p. 25.
[36] Tomaz Tadeu da Silva. Op. cit., p. 249.
[37] Eleonora Zicari C. de Brito e Rosana U. Botelho. “O historiador e suas fontes” in Catálogo de História Oral. Paracatu: Arquivo Público Municipal/Fundação Municipal Casa da Cultura/ prefeitura de Paracatu, 1998, p. 22.
[38] Maria de Lourdes M. Janotti e Zita de P. Rosa . “História Oral: uma utopia?” inRevista Brasileira de História. Memória, História e Historiografia. vol.13, nº 25/26, São Paulo: Marco Zero/ANPUH, 1992/93, p. 13.
[39] Idem, ibdem, p. 14.
[40] Muitas dessas reflexões foram formuladas tomando-se por base o artigo, ainda no prelo, de Eleonora Zicari Costa de Brito, cujo título é: “Entre a lembrança e o esquecimento: trabalhando a memória nas fontes orais.”
[41] Ecléia Bosi. Memória e Sociedade. Lembrança de Velhos. 3ª ed., São Paulo: Cia das Letras, 1994, p. 55.
[42] Idem, ibdem, p. 9.
[43] Kathryn Woodward. “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual” in Tomaz Tadeu da Silva (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2000, p. 27.
[44] Idem, p. 23.
[45] Idem, p. 11. (grifos meus)
[46] Maurice Halbwachs.A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice/ Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 25.
[47] Sonia Penin. Cotidiano e Escola: a obra em construção. 2ª ed., São Paulo: Cortez, 1995, p. 26/27
[48] Lefebvre Apud Penin. Op. cit., p. 15.
[49] Sonia Penin. Op. cit., p. 16.
[50] Eclea Bosi. Op. cit., p. 1.
[51] Lefebvre Apud Penin. Op. cit., p. 27.
[52] Le Goff, Jacques. “Documento/monumento” in Enciclopédia Einaudi. Vol I, Lisboa, Casa da Moeda/Imprensa Nacional, 1985, p.98.
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