Invisível e microscópico, o vírus da gripe aterroriza a humanidade há milênios. Da canja de galinha aos atuais remédios, muitos tratamentos já foram usados, mas a doença continua imbatível
por Álvaro Oppermann
Em setembro de 1918, o mundo descobriu, atemorizado, um inimigo mortífero. Já não bastassem os horrores da Primeira Guerra Mundial, milhões de pessoas foram dizimadas por outra causa. A humanidade estava sendo atacada pela gripe espanhola - pelo menos um quinto da população mundial contraiu a doença -, e não sabia como se defender. Os sintomas eram violentos. O doente sentia dor de cabeça e era tomado por calafrios tão intensos que os cobertores se tornavam inúteis. Depois começava a tossir sangue e os pés ficavam pretos. Quando os pulmões se enchiam de uma mistura de secreções, era o fim. E tudo isso ocorria com velocidade assustadora: da saúde ao óbito, passavam-se poucos dias, ou mesmo horas. "Pessoas saíam de manhã para trabalhar e não retornavam", escreve a jornalista americana Gina Kolata em Gripe: a História da Pandemia de 1918. Sozinha, a gripe matou de 30 milhões a 100 milhões de pessoas. Mais que a Primeira Guerra, que deixou 10 milhões de vítimas fatais.
Ainda é cedo para saber como será o desdobramento do atual surto de gripe suína. Mas, a cada nova pandemia, o fantasma de 1918 retorna. E com bons motivos: os métodos de transmissão só foram identificados há poucas décadas, e ainda não se conhece a receita para interromper uma crise da doença, que parece ter se tornado mais fatal no século 20 (veja os quadros nesta e nas próximas páginas).
A primeira referência à gripe na História foi feita por Hipócrates. O médico grego relatou em 412 a.C. que uma doença respiratória atacou de forma epidêmica a Grécia e em poucas semanas matou centenas. Foram os gregos que cunharam a palavra "epidemia" para as doenças infecciosas que se abatem sobre grande número de pessoas em uma localidade. A expressão vinha de epidemos, indivíduos que não moravam nas cidades. "O médico [Hipócrates] fez tal comparação porque as doenças infecciosas não eram da região e iam embora", escreve o médico Stefan Cunha Ujvari em A História e suas Epidemias.
A epidemia de gripe só reapareceu em 1173 e o primeiro caso sério veio no século 16. Em 1580, uma pandemia se alastrou pela Europa a partir da Espanha. Os agentes do contágio teriam sido os soldados do rei Felipe II (1527-1598). No século 18, três novos grandes surtos provocaram o surgimento do termo "influenza". Muitas teorias versam sobre a origem do nome, da influência dos astros à interferência do frio (já que a gripe é mais comum no inverno). Em 1837, a combinação de doença e baixas temperaturas foi tão séria em Berlim que, em janeiro, o número de mortos pela gripe excedeu o de recém-nascidos.
As pandemias de gripe atravessaram o tempo, os vírus sofreram mutações e os tratamentos também mudaram muito desde a época de Hipócrates, que, no século 5, prescrevia sangrias. Adepto da teoria clássica dos humores (secreções do corpo), ele dizia que a sangria eliminaria o fluxo sanguíneo excessivo, o suposto causador da doença. Tal tratamento foi amplamente utilizado pelos médicos até o fim do século 19. Porém, ele nem de longe era o mais bizarro. No século 18, médicos franceses garantiam que a gripe era causada pelo excesso de relações sexuais e recomendavam a castidade. Em Londres, do fim do século 19 até a década de 1920, os banhos quentes e o vinho eram recomendados como tratamento certeiro. No Brasil, em 1918, ficou popular o uso do quinino e purgantes. Nem um nem outro tinham efeito algum sobre a doença. O quinino era usado para a malária, que, sabe-se hoje, é causada por protozoário, não por vírus. Os purgantes, por sua vez, só funcionavam para causar uma bela dor de barriga no doente, que já estava debilitado. A Diretoria Geral de Saúde Pública, em 1918, também indicava canja de galinha. Resultado: grandes armazéns no Rio de Janeiro e em São Paulo foram saqueados pela população em busca do frango salvador. A primeira vacina surgiria em 1945, nos Estados Unidos, feita de vírus mortos. As vacinas se popularizaram nos anos 1960, mas só em 2003 foi aprovado o uso de vírus vivos.
A descoberta do vírus
Graças ao microscópio, o estudo das causas e dos tratamentos só ganhou rigor científico no século 20. No século 19, já se conheciam as bactérias, mas o vírus da influenza A seria isolado apenas em 1933, pelos cientistas Wilson Smith, Christopher Andrews e Patrick Laidlaw. A versão B foi identificada em 1939, e a C em 1950. Essas letras, A, B e C, foram criadas nos anos 1950 para identificar os três tipos que existem: a C é a comum, a B é a típica gripe de inverno, que ataca especialmente as crianças, e a A é selvagem e perigosa - um verdadeiro peso-pesado.
O habitat natural do vírus A, causador das grandes pandemias, como a espanhola e a gripe atual, é o mesmo dos patos e de outras aves aquáticas. Ele também pode viver em mamíferos como porcos, cavalos, baleias e leões-marinhos. Isso explica por que se costuma dizer que uma gripe é "suína" ou "aviária". O apelido indica a origem do vírus A.
Gripes do porco
Quando Smith isolou o micro-organismo, na década de 1930, notou que ele tinha uma estrutura muito simples. "É constituído apenas do seu material genético, seja DNA, seja RNA. Ao contrário das bactérias, não tem o maquinário necessário para reprodução", diz Stefan Cunha Ujvari. Por isso, precisa, necessariamente, viver dentro de um hospedeiro. Ele invade as células e lá dentro faz cópias exatas de si mesmo. É a forma de se replicar.
Os vírus têm extrema dificuldade de saltar de uma ave para um ser humano. Porém, conseguem fazer essa migração utilizando os porcos como "escala". Foi isso que aconteceu em 1918, segundo a teoria de dois eminentes professores de virologia, Robert Webster e Kennedy Shortridge. O causador da gripe espanhola, dizem eles, começou provavelmente em uma ave, foi transmitido a um porco, que por sua vez infectou pessoas - razão pela qual os sobreviventes da epidemia tinham anticorpos da gripe suína.
De acordo com Shortridge, foi na China, um milênio antes da era atual, que os plantadores de arroz começaram a criar porcos junto com patos. "Foi a oportunidade ideal para o vírus saltar para nós", diz o cientista. Devemos ficar bravos com os porcos? Bem, se eles pudessem entender de virologia, também teriam motivo para ficar irritados conosco. Afinal, esses bichos também pegam gripe dos seres humanos. No início de maio de 2009, cientistas investigavam o caso de um fazendeiro de Alberta, no Canadá, que teria transmitido a gripe para sua criação de porcos: 200 animais foram contaminados após ele passar uma temporada no México, onde contraiu o vírus originado em outros porcos. Se a suspeita se confirmar, o ciclo se fechará.
Vírus mortais
As cinco maiores epidemias de gripe da História
Gripe russa - 1889-1890
Sintomas - Febre e pneumonia.
Propagação - Foi carregada pelo vento e pelas linhas de trens, como o Expresso Transiberiano. Em 15 dias atravessou a Rússia inteira, da Sibéria a São Petersburgo.
Mortos - 1,5 milhão
Tratamentos usados na época - Acreditava-se que banhos quentes e vinho eram remédios. Durante o surto, casas de banho ficaram populares em Londres.
Gripe espanhola - 1918-1919
Sintomas - Pneumonia viral, sangramentos e calafrios.
Propagação - Chegou às Américas por navio.
Mortos - 30 milhões a 100 milhões
Tratamentos - Na Europa, cidades ficaram de quarentena. No Brasil, receitava-se bromo-quinino, sulfato de quinino, limonada purgativa, chá de canela e canja de galinha.
Gripe asiática - 1957-1958
Sintomas - Febre alta, dor de cabeça e cansaço.
Propagação - Alastrou-se devagar, principalmente por terra e por mar, com surtos localizados.
Mortos - 2 milhões
Tratamentos - A tecnologia da época permitiu a fabricação de vacinas, porém não em quantidade suficiente.
Gripe de Hong Kong - 1968-1969
Sintomas - Febre alta, dor nas articulações e cansaço.
Propagação - Carro, trem, navio e avião. Os voos intercontinentais foram um fator decisivo.
Mortos - 1 milhão
Tratamentos - Antibióticos e vacina.
Gripe aviária - 1997/2004
Sintomas - Febre alta, tosse, dor de garganta.
Propagação - Em 1997, 18 pessoas foram infectadas por frangos. Depois o vírus ganhou uma mutação, o subtipo H9N2, e se espalhou através das aves.
Mortos - 300
Tratamentos - Sacrifício de 1,5 milhão de frangos em Hong Kong. O grupo farmacêutico Novartis tem um projeto de vacina contra o vírus A H5N1.
Saiba mais
LIVROS
O Monstro Bate à Nossa Porta, Mike Davis, Record, 2009
O especialista em teoria urbana relembra o passado e alerta para os perigos de uma pandemia no presente. O livro, de 2006, acaba de ser reeditado
A História e Suas Epidemias - A Convivência do Homem com os Micro-organismos, Stefan Cunha Ujvari, Senac, 2003
Referência no assunto, a obra do infectologista brasileiro está para ser relançada.
Fonte: