A visão de Agnes Heller
Ex-discípula do filósofo marxista Georg Lukács, Agnes Heller, nascida em Budapeste, na Hungria, em 1929, dedicou-se a determinar num estudo acurado e erudito, intitulado ‘O Homem do Renascimento’, quais foram as transformações que ocorreram na época da Renascença italiana que mais contribuíram para que uma outra concepção de Homem gradativamente começasse a se impor aos olhos dos pensadores e escritores ocidentais.
Partindo da suposição de que nos tempos clássicos a concepção do Homem era estática, devido às enormes limitações que as potencialidades sociais e individuais sofriam, ela observa que o Cristianismo as ampliou. Mas mesmo assim o Homem encontrava-se balizado entre o Pecado Original e o Juízo Final, que atuavam como as fronteiras iniciais e derradeiras das possibilidades humanas. No Renascimento tudo mudou. Forjou-se naquela oportunidade um conceito dinâmico do Homem, que passou a ter sua própria história de desenvolvimento pessoal tal como a sociedade em que vivia.
E não era para menos. O Homem do Renascimento foi contemporâneo de notáveis transformações de toda ordem provocadas pela Revolução Comercial dos séculos XV-XVI que fez a glória e o esplendor das cidades-estados italianas, das cidades flamengas e alemãs, daquelas que compunham a Liga de Hansa no Báltico, ativadas pela vitalidade da economia monetária, pela emergência do sistema bancário (Banca Médici, Casa Fugger, etc.). Além disto, inteirou-se das navegações atlânticas dos portugueses, da viagem de Cristóvão Colombo, da chegada à Índia de Vasco da Gama, e da volta ao mundo feita por Fernão de Magalhães. Se o Homem do medievo tinha o seu horizonte limitado pelo feudo ou pelo burgo em que nascera e vivia, o Homem do Renascimento viu seu olhar estender-se pelo mundo inteiro
Novo entendimento do Cosmo
Ludovico o mouro, duque de Milão |
Há uma crescente confiança no Homem. Sobrevivente da Peste Negra do século XIV e dos tumultos da Idade Média, o renascentista começa a vislumbrar um outro cenário de atuação que o leva a pairar sobre o ilimitado, a sonhar com feitos até então impensáveis, tais como aparecem nos engenhos de Leonardo da Vinci( com seus projetos de submarinos e objetos voadores, além de uma quantidade incrível de máquinas fantásticas). Se ele ainda se sente minúsculo frente à grandiosidade do Cosmo, percebe-se grande, senão que gigantesco quando se trata da conquista do mundo, do aqui e do agora, daquilo que o cerca.
Esta nova liberdade, esta consciência de poder lançar-se no impossível foi fruto, segundo Heller, da ascensão do capitalismo. Ainda que em sua fase inicial, ele já se mostrava eficiente no processo de destruição e superação das relações dos indivíduos com a comunidade e com a família. Isto não só abalou com a rígida hierarquia e estabilidade do medievo como serviu como um impulso para que as personalidades, livres dos liames familiares ou clãnicos, aflorassem desejando marcar sua posição no cenário social e na História. Não foi sem motivos que data do Renascimento o gosto pelo retratismo. Nobres, burgueses, papas e demais membros do clero, desejavam imortalizar-se pelas artes. Queriam afirmar a sua presença singular na Terra de modo definitivo, sendo perenizados pela mão do pintor, gravador ou do escultor.
O Culto ao Homem
Celebra-se o aventureiro como Marco Pólo, trotador do mundo, ou o capitão mercenário que se torna senhor absoluto de uma cidade como ocorreu com Francisco Sforza (1401-1466) que se sagrou duque de Milão, ou ainda com Erasmo da Narni, dito Gattamelata, ditador de Pádua, tipos que saíram do nada e alcançaram a celebridade pela destreza das armas e pela audácia e ousadia sem freios.
Os príncipes de Maquiavel, gente sem escrúpulo, um tanto humanos, outro tanto feras, homens-lobos vorazes por fama e poder como foi César Borgia ou Giovanni dalle Bande Nere. Orgulhosos, arrogantes, contadores de vantagens e brigões, eram a antítese do ideal cristão.
Por não se deixarem coibir por regras ou pruridos morais da ética religiosa, viram-se compensados em seu atrevimento atrás da fortuna se tornando legendas ainda quando vivos.
O mesmo se aplica ao comerciante ou ao banqueiro bem sucedido, como foi o caso de Cosme de Médici em Florença, capaz de estabelecer ligações mercantis com lugares distantes da Europa ou do Levante. Aos navegadores audazes que enfrentaram mares desconhecidos e viram de perto reinos longícuos, africanos, asiáticos, ou do Novo Mundo, que imaginavam lendários e não reais, como foi o caso de Diogo Cão que colocou as marcas lusitanas na foz do rio Congo, ou o condottiero-almirante Andrea Dória, os espanhóis Cortes e Pizarro, e tantos outros desbravadores. Todos eles homens de ação e não de contemplação, comprometidos com a vida excepcional, ativíssima, repleta de riscos e incertezas, e não com o ócio monacal, fizeram com que assim o ‘homem se tornasse o centro do interesse’.
Deu-se então que a concepção de Gênio sucedeu a de Santo. Enquanto um estreitava a sua relação com o real (o gênio é inventivo) o outro se mantinha ligada ao sobrenatural (ao milagre);
O resultado disto foi o interesse crescente pelas coisas da Terra e não somente do Céu. Estudar o habitat, verificar o meio em que o Homem atua, as circunstancias sociais e materiais que o cercam e de que modo elas podem ser mais bem entendidas, daí a explosão dos mapa-múndi e da cartografia. A humanização da natureza foi um dos legados do Renascimento e o estudo das leis que a regem a sua conseqüência.
Ainda que a escolástica pudesse se sentir ameaçada e os dogmas sofressem perceptível desintegração, não houve ataque ateísta no Renascimento. Para isto foi preciso esperar-se pelo Iluminismo e pelo surgimento das escolas materialistas dos séculos XVIII e XIX.
Bibliografia
Heller, Agnes – O Homem do Renascimento. Lisboa: Editorial Presença, 1984.
Maquiavel, Nicolau – O príncipe. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.