Na virada dos séculos XIX e XX, Santos Dumont era uma celebridade. E, a exemplo de muitas pessoas famosas, sua vida pessoal era - e é até hoje - alvo de controvérsias
por Luiz Guedes Jr.
No ano em que se comemora o centenário do maior feito de um brasileiro para o mundo, o vôo inaugural do 14 Bis, em 23 de outubro de 1906, Alberto Santos Dumont permanece um estranho entre seus conterrâneos. Muito antes de Pelé e Ayrton Senna, ele foi o primeiro a conseguir projeção internacional empunhando a bandeira verde e amarela. Muitos conhecem a saga do “pai da aviação”, contada e recontada nos livros escolares. Mas pouca gente sabe realmente quem foi o personagem que se aventurou a desbravar os céus. Que tipo de homem se escondia atrás dos longos bigodes, das vestes impecáveis e do inseparável chapéu panamá?
As polêmicas que cercam a vida do inventor, comumente omitidas do grande público, são reveladas nas biografias disponíveis em diversas línguas. Especulam, principalmente, sobre a sexualidade, a fama de mau perdedor e a doença que o levou ao suicídio. Mas esses são apenas pequenos tópicos de uma vida tão rica em detalhes quanto a trajetória que levou o homem a construir máquinas voadoras. Santos Dumont voou muito além do que contam os livros de colégio.
Excentricidade
Na virada dos séculos 19 e 20, a sociedade mudava radicalmente com inovações como a luz elétrica, o automóvel e o telefone. Em meio ao turbilhão de novidades, um intrépido brasileiro agitava a sociedade parisiense com recepções nada comuns: ao serem levados pelo mordomo à sala de jantar, os convidados deparavam com mesas e cadeiras de mais de dois metros de altura. Entre os presentes estavam a princesa Isabel, filha de D.Pedro II, último imperador brasileiro, o joalheiro Louis Cartier, o arquiteto Gustave Eiffel, projetista da torre que leva seu nome, alguns representantes da família Rothschild, a imperatriz Eugênia, viúva reclusa de Napoleão III, alguns duques, barões e outros membros da alta sociedade européia. Todos achavam divertido subir numa escada portátil para participar de mais um dos famosos “jantares aéreos”, como ficaram conhecidos os eventos promovidos por Santos Dumont em seu apartamento na Champs-Elysées.
Questionado sobre o motivo desses jantares, o anfitrião sempre respondia: “É para que todos imaginem como seria a vida numa máquina voadora”. Alguns convidados riam. Afinal, em 1890, as máquinas voadoras ainda não existiam. Santos Dumont, em tom mais sério, retrucava que em pouco tempo elas dominariam os céus. “Estarão em todas as partes”, dizia.
As declarações do brasileiro soavam devaneios de um desajustado, mas tinham uma explicação: sua infância fora cercada por obras de Júlio Verne, nas quais se destacava a imagem de um céu povoado de máquinas voadoras. Em 1901, quando realizou a ousada circunavegação da Torre Eiffel, recebeu diversos telegramas de congratulações e medalhas de louvor e coragem enviadas por diferentes chefes de Estado. Mas duas correspondências emocionaram-no em especial: a primeira foi a carta do próprio Júlio Verne; a outra, enviada por Pedro, amigo da época de criança: “Você lembra, meu caro Alberto, do tempo em que brincávamos de perguntar ‘passarinho voa?’, ‘urubu voa?’, ‘homem voa?’, e você sempre levantava o dedo afirmando que o homem voava? A recordação dessa época me veio ao espírito no dia em que chegou ao Rio de Janeiro a notícia do seu triunfo. O homem voa, meu caro! Você tinha razão em levantar o dedo. E não tinha mesmo que pagar a prenda”.
A brincadeira à qual se referia o colega de infância era uma das preferidas de Santos Dumont e dos irmãos na fazenda onde nasceu, em 20 de julho de 1873, em Minas Gerais. Os pais do inventor, Henrique Dumont e Francisca de Paula Santos, foram os primeiros brasileiros a viver no distrito de João Aires, na minúscula cidade de Cabangu – hoje rebatizada como Santos Dumont.
Aos 6 anos, Alberto mudou-se com a família para as terras férteis de São Paulo, onde seu pai, apelidado de “rei do café” pela imprensa, comprou uma propriedade tão extensa que foi possível construir nela uma estrada de ferro com 96 quilômetros de extensão. Nessa época, além de mergulhar nos livros de ficção, Santos Dumont tinha como passatempo predileto dirigir as enormes locomotivas, além de consertar todo o maquinário usado na produção do café. Henrique apreciava a fascinação do sexto de seus oito filhos e o caçula entre os três homens, mas não compreendia por que o menino não se interessava por outras atividades masculinas, como caçar ou mesmo brigar com os irmãos.
A vida em Paris
O mundo de Santos Dumont ganhou novas dimensões quando ele tinha 18 anos. Seu pai sofrera uma queda de cavalo e acabou hemiplégico aos 60 anos. Sem chances de cura no Brasil, vendeu os negócios da família por 6 milhões de dólares (uma fortuna hoje, e ainda maior naquele tempo) e partiu para a Europa com a esposa e o jovem Alberto. A esperança de cura estava em Paris, onde Louis Pasteur revolucionava a medicina com suas vacinas.
As descobertas na capital francesa encantaram o jovem brasileiro, em especial os motores de combustão interna, que ele jamais havia visto. Em visita à fábrica da Peugeot, comprou um dos dois únicos automóveis produzidos pela marca naquele ano de 1891. Poucos meses depois, após seu pai perceber que a medicina européia não lhe restauraria a saúde, voltou com a família para o Brasil, trazendo a bordo do navio o estranho veículo de apenas 3,5 cv (capaz de atingir 16 quilômetros por hora). Ao dirigir a novidade nas ruas de São Paulo, Santos Dumont não só espantou os pedestres, mas também ficou conhecido como a primeira pessoa a circular de automóvel em toda a América do Sul.
Sem esperanças de cura, Henrique teve uma longa conversa com o filho. Disse-lhe que não precisaria se preocupar em ganhar dinheiro e adiantou-lhe a herança de meio milhão de dólares. Depois, instruiu-o a voltar a Paris, onde parecia ter se adaptado muito bem. Santos Dumont seguiu o conselho. Chegou à Cidade Luz no verão de 1892, e seu pai morreu em agosto. Tímido para freqüentar qualquer universidade, recorreu a um professor particular, que desenvolveu um intenso programa de estudos englobando física, química, engenharia mecânica e elétrica. Ocasionalmente, visitava os primos na Inglaterra, onde aproveitava para assistir às aulas na Universidade de Bristol. Como era aluno ouvinte, não corria o risco de ser interrogado em público.
O estilo Dumont
Somente após cinco anos como “cidadão francês”, o brasileiro iniciou suas experiências com balões. Naquela época, a aeronáutica funcionava como um clube de cavalheiros, e Santos Dumont foi imediatamente aceito por sua origem abastada. Em pouco tempo, seus inventos ganharam espaço na imprensa local e internacional, e o brasileiro tornou-se coqueluche na alta sociedade européia. Foi talvez o homem mais prestigiado e um dos mais noticiados em todo o mundo no início do século 20. E sua imagem elegante estampava caixas de charutos, fósforos e até de aparelhos de jantares. Estilistas prosperaram com réplicas de seu chapéu e dos colarinhos altos e duros, que ele mesmo desenhara de modo a alongar seu pescoço e disfarçar a baixa estatura (cerca de 1,60 metro). Outros artifícios com essa finalidade eram os ternos sempre escuros com listras verticais, os sapatos com saltos e o tradicional chapéu panamá.
Apesar dos recursos para parecer mais alto, os jornais lhe deram o apelido carinhoso de “petit Santos”, o que muito o incomodava, embora continuasse a ditar moda: fabricantes de brinquedos produziam réplicas em miniatura de seus balões, que também inspiravam os bolos feitos pelos confeiteiros, sempre em forma de charuto e com as cores da bandeira brasileira. Em outra ocasião, reclamou com o amigo Louis Cartier, cujo avô fundara a Maison Cartier havia meio século, que era muito perigoso tirar as mãos dos comandos em pleno vôo e levá-las ao relógio de bolso. Cartier criou para Santos Dumont um dos primeiros relógios de pulso de uso civil, que imediatamente tornou-se acessório indispensável para parisienses mais sofisticados.
Além do estilo copiado por homens e mulheres, o aviador invariavelmente ganhava as manchetes devido ao seu temperamento difícil. Meteu-se em inúmeras brigas com o Aeroclube de Paris, quase sempre por não concordar com as regras dos concursos. Santos Dumont não enxergava a aviação como atividade científica. Para ele, voar era um esporte, um desafio entre homens para ver quem vencia. E seu espírito excessivamente competitivo não lhe permitia sair derrotado. “Não me importo com o dinheiro das competições”, dizia ele, que doava aos pobres os valores conquistados em campeonatos. “Mas o prêmio atrai um número maior de rivais para que eu possa mostrar minha coragem. Essa é a importância da competi&cce
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