Ao tratarmos sobre a condição do escravo no Brasil, somos muitas vezes tentados a salientar repetidamente a situação degradante desses sujeitos históricos. De fato, o trauma causado pelo sequestro na terra natal e a imposição de uma rotina de trabalho acaba justificando tal perspectiva. Contudo, muitas vezes deixamos de salientar a possibilidade de processos dinâmicos que vislumbrem o escravo como uma figura ativa no contexto histórico em que viveu.
Uma questão que pode mostrar esse escravo de outra forma pode ser vista quando tratamos das funções desempenhadas por esses durante e após o período colonial. Em geral, por conta da grande demanda inerente a esse tipo de atividade, muitos escravos eram conduzidos até as propriedades monoculturas envolvidas no desenvolvimento do mercantilismo europeu.
Ao longo do dia, desempenhavam diferentes funções trabalhando nas lavouras e demais instalações da propriedade rural. Ao fim de um exaustivo dia, os escravos eram conduzidos até a senzala para descansar para o próximo dia de trabalho. Nesse local acabavam firmando laços de socialização e, até mesmo, utilizavam daquele momento para promoverem algumas manifestações culturais. Contudo, não podemos nos limitar ao ambiente da lavoura e da senzala quando falamos dos escravos.
Na residência do proprietário, havia uma parcela de escravos que se dedicava ao cuidado das tarefas ligadas ao ambiente doméstico. Geralmente, esses escravos possuíam uma condição de vida relativamente melhor e acabavam também se relacionando mais proximamente com a família de seu senhor. Em algumas pesquisas, temos a descrição de situações em que escravos desempenhavam funções que só eram possíveis por meio de um laço de confiança com seu dono.
Nos centros urbanos, a recorrência desses escravos domésticos também era bastante expressiva. Ao saírem de casa, algumas mulheres pertencentes à elite costumavam vestir suas escravas com luxuosas peças e acessórios para rechaçar sua condição social abastada. Não sendo um espaço ligado à exploração da terra, devemos salientar que as cidades abriam portas para que muitos escravos fossem utilizados em outras atividades econômicas.
Muitas vezes, aproveitando das habilidades de um negro, o proprietário acabava transformando-o em um “escravo de ganho”. Nessa situação o escravo poderia vender “doce de tabuleiro”, realizar o transporte de cargas e pessoas, cuidar de um estabelecimento comercial ou fabricar utensílios. Geralmente, o seu dono ficava com a maior parte dos lucros obtidos ao longo do dia. A parcela destinada ao escravo poderia ser utilizada para alimentação, vestuário e, até mesmo, para a compra de sua alforria.
Em outros casos também podemos assinalar a existência dos chamados “escravos de aluguel”. Geralmente, um senhor que passava por dificuldades financeiras ou não tinha meios para explorar todo o seu plantel acabava cedendo parte de suas “peças” para um terceiro, que em troca lhe recompensava com uma quantidade de dinheiro. No Distrito Diamantino, por exemplo, vemos que a própria administração colonial utilizou desse recurso para empreender a extração de pedras preciosas no século XVIII.
Por meio dessa breve explanação, observamos que a compreensão do negro como sujeito histórico vem perdendo sua tradicional imagem de “escravo subordinado”. Ultimamente, novas obras permitem valorizá-lo como indivíduo portador de suas próprias tradições. Dessa forma, a condição de escravo não mais anula sua capacidade de interferir no tempo em que viveu através de ações e estratégias que lhe concedem voz própria.
Por Rainer Sousa
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