Entre as 13 esposas de Maomé, Aisha era a predileta. Ciumenta e inteligente, seus relatos da vida conjugal viraram modelos de conduta e influenciaram a tradição muçulmana
por Adriana Maximiliano
Aisha bint Abu Bakr tinha 6 anos e estava se divertindo num balanço, no quintal, quando soube que ia se casar. A mãe da menina deu a notícia e avisou que, a partir daquele dia, estava proibido "brincar fora de casa". O futuro marido era o melhor amigo do seu pai e tinha 51 anos. Em uma cerimônia sóbria, na casa da família da noiva, em Medina, Arábia Saudita, a união foi oficializada em 623 d.C. Ela contava 9 anos e se tornava a terceira mulher de Maomé, o criador do islamismo. Foi, para sempre, a preferida do seu harém. Quando perguntaram ao profeta a quem mais amava no mundo, ele foi direto: Aisha. Nos braços dela, morreu nove anos depois, e no quarto da favorita foi enterrado.
A vida de Aisha é tema de um polêmico romance lançado na Europa e nos Estados Unidos, The Jewel of Medina, da norte-americana Sherry Jones. A editora Random House desistiu da publicação, após ameaças terroristas, e a casa da dono da Gibson Square, Martin Rynja, que insistiu na iniciativa, sofreu uma tentativa de incêndio. Os críticos consideraram o livro uma piada de mau gosto. Sherry desenha Aisha como uma menina ocidental do século 21, caída de paraquedas no colo de Maomé.
Mas o que se sabe realmente sobre a história dessa jovem? Segundo uma das principais biógrafas das esposas de Maomé, Nabia Abbott, a menina e o profeta costumavam tomar banho juntos e até brincavam de boneca. Foi ao lado dela que ele teve a maior parte de suas revelações, as verdades fundamentais que iriam compor o Corão. E a própria Aisha contou que Maomé gostava de rezar com a cabeça recostada em seu colo, enquanto suava vigorosamente e ouvia sinos tocar. Embora sejam escassos os registros sobre a aparência física da jovem, provavelmente de cabelos e olhos castanhos, como a maioria das moças árabes, os textos apontam pelo menos uma diferença entre Aisha e as outras 13 esposas (e duas concubinas): era a mais jovem e foi a única a casar virgem.
Mel e ciúme
O casamento com crianças era comum na época e Aisha jamais se lamentou. Pelo contrário, era possessiva e ciumenta. Uma vez, armou um plano para afastar o marido de sua quarta esposa, Hafsa, com quem ele andava se demorando mais do que o costume. O profeta adorava doce e Hafsa havia ganhado um pote de mel, verdadeiro motivo das atenções especiais que vinha recebendo. Aisha, então, chamou outras duas esposas, Sawda e Safiyya, e combinou que todas deveriam reclamar do hálito do esposo e culpar a alimentação das abelhas pelo cheiro ruim. Deu certo. Ele ficou cismado e não quis mais o mel de Hafsa.
Mas o que assombrava mesmo Aisha era o fantasma de Khadija bint Khouweylid, a primeira esposa de Maomé, rica, mais velha que ele e morta três anos antes do casamento da menina. Roía-se de ciúme porque o marido fora fiel a Khadija, que, por sua vez, o ajudara a fundar o islamismo. Foi para ela que ele primeiro contou sobre a visão do anjo Gabriel. Tiveram seis filhos - dois meninos, que morreram, e quatro meninas. Maomé seria pai somente mais uma vez, com uma de suas concubinas - mas o menino, Ibrahim, também morreria na infância.
Um mês depois da morte de Khadija, no ano 619, Maomé decidiu se casar de novo, por sugestão de uma tia, Khawla bint Hakin. Ela também sugeriu opções de noiva: "Se quiser uma virgem, [case] com Aisha, filha de seu amigo Abu Bakr. Se quiser uma não-virgem, com Sawda". Viúva vinda da Abissínia, a segunda indicação da tia do profeta aceitou de pronto o pedido, e eles se casaram.
Abu-Bakr, que era então o mais importante aliado de Maomé, também concordou em ceder a filha. Mas Aisha estava prometida a outro e era necessário desfazer o compromisso. Foi fácil. Os pais do menino eram cristãos e cancelaram o trato com alívio. Assim, começaram as visitas diárias do novo pretendente à namorada.
A união aconteceu logo depois da mudança de Meca para Medina, fugindo da perseguição dos judeus. Chamado de hégira, o êxodo de Maomé e de seus seguidores inaugurou o islamismo, em 622 da era cristã. A fuga deu início ao calendário maometano e fim à infância de Aisha. “Nenhum camelo ou ovelha foi sacrificado no meu casamento”, contaria ela. Todas as atenções estavam concentradas em consolidar a nova religião.
Em Medina, ele construiu apartamentos de tijolo para cada uma das esposas. O local onde ficava o de Aisha, hoje, é a Mesquita de Medina. Ninguém imagine um palácio. “Os apartamentos das mulheres de Maomé eram tão pequenos que mal se podia ficar de pé dentro deles. Ele não tinha casa. Passava cada noite com uma esposa e o apartamento dela virava a sua residência durante o dia”, escreveu Karen Armstrong no livro Muhammad: a Prophet for our Time (“Maomé: um profeta para o nosso tempo”), sem edição em português.
Divórcio coletivo
Fora Aisha e Khadija, todas as mulheres de Maomé eram viúvas de aliados, que ele desposou para não deixá-las desamparadas. A menina, diferentemente, não foi escolhida por conveniência. E seus privilégios logo ficaram evidentes. Assim que Aisha entrou na vida do profeta, ele passou a evitar Sawda, que, com medo de ser abandonada, cedeu à rival seu dia (e noite) com o marido, garantido por direito. A história inspirou o versículo 128 da surata (capítulo) do Corão: “Se uma mulher notar indiferença ou menosprezo por parte de seu marido, não há mal em se reconciliarem amigavelmente, porque a concórdia é o melhor, apesar de o ser humano, por natureza, ser propenso à avareza”.
Os textos da Suna, código de ética islâmico, do século 8, também destacam o favoritismo. “A superioridade de Aisha em comparação às outras mulheres é como a do tarid [um prato de pão e carne que ele adorava] em relação a outros tipos de comida. Muitos homens alcançam esse nível de perfeição, mas nenhuma mulher o conseguiu, exceto por Maria, filha de Imran, e Asia, a mulher do Faraó”.
A preferência, contudo, nunca significou exclusividade. Quando Aisha perguntou ao profeta quem seria a sua mulher no paraíso, ele avisou: “Você será uma delas”. E, numa crise entre as esposas, ele até ameaçou se separar de todo o harém: ou as mulheres aceitavam suas condições ou ia pedir o divórcio. Diversas versões explicam a medida drástica. Segundo uma delas, Aisha e Zeinab bint Khuzainah, a quinta esposa, começaram uma disputa por animais abatidos. Outra versão diz que a quarta esposa, Hafsa, flagrou Maomé com uma concubina no dia de Aisha e contou a ela. Ao retornar das montanhas, um mês depois, nenhuma quis deixá-lo.
Maomé morreu deitado no chão do quarto de Aisha, com a cabeça no colo dela, em 632. As outras mulheres consentiram que, enquanto tratava de sua doença misteriosa, ficasse com a esposa preferida. O corpo foi enterrado no mesmo cômodo, que passou a ser chamado de Quarto Sagrado.
Com a morte do marido, Aisha se dedicou aos estudos. Tinha 18 anos, mas não teve filhos e foi proibida de casar de novo. Assim como as outras, não recebeu herança do profeta, que doou seus bens para caridade. Mas, pelo Quarto Sagrado, ganhou 200 mil dirhams, tanto dinheiro que precisou de cinco camelos para transportá-lo. As viúvas ficaram conhecidas como Mães dos Crentes e eram muito respeitadas. Em 641, começaram a receber uma pensão do Estado. Por ter sido a favorita, Aisha ganhava mais.
O pai da jovem esposa, Abu Bakr, virou o primeiro califa, sucessor do profeta e com poderes sobre todos os muçulmanos. O posto só foi extinto em 1924, quando a Turquia aboliu o Império Otomano. Mas, até lá, as disputas deixaram marcas. O quarto califa, Uthman ibn Affan, governou por 12 anos conturbados, até ser assassinado e substituído por Ali ibn Abu Talib, primo e genro de Maomé, marido de sua filha Fátima, e um antigo desafeto de Aisha.
Na guerra civil contra Ali, ela protagonizou, em 4 de dezembro de 656, sua primeira e única experiência militar. Por causa de Aisha, o confronto ficou conhecido como a Batalha do Camelo. A viúva poderosa foi à praça de guerra em seu camelo, Askar, dar apoio moral aos aliados, escondida por trás dos véus da sua howdah (o assento alto, usado sobre a sela). Mas Ali a descobriu e ordenou a todos os seus homens que atacassem Askar. O camelo e centenas de soldados morreram e Aisha acabou presa. Os muçulmanos, daí em diante, iriam se dividir entre xiitas, partidários de Ali, e sunitas, do rival Amir Muwiya.
O desastre no campo de batalha afastou Aisha da política e serviu de pretexto para que, no século 10, os muçulmanos atribuíssem à mulher um papel desbotado, escondida sob véus da cabeça aos pés. Na época de Maomé não era assim. Suas esposas usavam véus discretos, cobrindo o colo e apenas parcialmente a cabeça. Aisha morreu em 678, de doença desconhecida. Segundo as feministas, ela foi absolutamente relevante para a construção da tradição islâmica.
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