Foto de Museu Egípcio do Cairo
Uma gazela de estimação de uma rainha era mumificada com a mesma pompa de membros da família real. Envolta em bandagens e posta num caixão de madeira feito sob medida, ela seguiu sua dona ao túmulo por volta de 945 a.C.
Em 1888, ao escavar a areia nas proximidades do vilarejo de Istabl Antar, um fazendeiro egípcio descobriu uma sepultura coletiva. Os corpos não eram humanos. Eram de felinos - um número assombroso de gatos da Antiguidade mumificados e enterrados em covas. Alguns envoltos em linho ainda pareciam apresentáveis e uns poucos exibiam caras enfeitadas. As crianças do vilarejo ofereciam os melhores espécimes aos turistas por qualquer troco. O resto era vendido a peso como fertilizante. Um navio chegou a transportar cerca de 180 mil gatos mumificados para Liverpool, uma carga que pesava algo como 17 toneladas, para serem espalhados pelos campos da Inglaterra.
Eram os idos tempos das expedições que escavavam por toda parte no deserto em busca de tumbas reais com esquifes e máscaras de ouro. Os muitos milhares de animais mumificados que apareciam não passavam de coisas a serem removidas para dar passagem ao que de fato interessava. Pouca gente dedicou-se a estudar esse material, e sua importância era ignorada.
No século seguinte, a arqueologia tornou-se menos uma caça aos troféus e mais uma ciência. Os escavadores se deram conta de que boa parte da riqueza dos sítios repousa na multidão de detalhes sobre pessoas comuns. As múmias de animais são parte importante dessa empreitada.
"Eles são de fato manifestações da vida cotidiana", afirma a egiptologista Salima Ikram. "Bichos de estimação, comida, morte, religião. Essa é a gama de interesses dos egípcios." Especialista em zooarqueologia – o estudo dos despojos de animais antigos -, Salima ajudou a encaminhar nova linha de pesquisa direcionada a gatos e outras criaturas. Como professora da Universidade Americana do Cairo, ela adotou a negligenciada coleção de animais mumificados do Museu Egípcio no âmbito de um projeto. Ao realizar mensurações precisas, espiar sob as bandagens de linho com raio X e catalogar suas descobertas, Salima criou uma ala para a coleção. "Você olha para esses animais e, de repente, diz 'Ah, o rei tal tinha um bicho de estimação. Eu também tenho'. E eis que os antigos egípcios saltam os mais de 5 mil anos que nos separam deles para se tornar gente como a gente."
As múmias de animais são agora uma das atrações mais populares no museu. Atrás de painéis de vidro jazem gatos envoltos em bandagens de linho, formando desenhos de diamantes, listras, quadrados e xadrês; musaranhos acondicionados em recipientes de pedra calcárea; carneiros em embalagens adornadas de contas; um crocodilo de carapaça, com 5 metros de comprimento, que havia sido enterrado ostentando múmias de jacarezinhos bebês dentro de sua bocarra; fardos recobertos de intrincados apliques contendo íbis, a ave de pernas longas e bico fino encurvado, endêmica ao longo do rio Nilo; gaviões; peixes. Até mesmo pequeninos escaravelhos com as bolotas de fezes que eles comiam.
Alguns animais eram preservados para que seus falecidos donos tivessem companhia na eternidade. Os antigos egípcios abonados preparavam suas tumbas com toda pompa, na esperança de que seus pertences pessoais estivessem disponíveis por vias mágicas depois da morte. A partir de mais ou menos 2950 a.C., os reis da primeira dinastia eram sepultados em seus complexos funerários, em Abidos, com cachorros, leões e burros. Mais de 2,5 mil anos depois, durante a 30ª dinastia, um plebeu de Abidos chamado Hapi-men foi levado ao jazigo com seu cachorrinho encolhido a seus pés.
Também mumificavam alimentos para os mortos. Os melhores cortes de carne, patos suculentos, gansos, pombos eram salgados, desidratados e envoltos em linho. "Provisões mumificadas", diz Salima Ikram. "Pouco importava se a pessoa tivesse ou não tido acesso a esses alimentos durante a vida. O fato é que, depois da morte, eles estariam lá à disposição."
Alguns animais eram mumificados por serem os representantes vivos de uma divindade. A cidade de Mênfis, capital do Antigo Egito durante boa parte de sua história, cobria 50 quilômetros quadrados no seu ápice, em torno de 300 a.C., com uma população de cerca de 250 mil habitantes. Hoje, a maior parte de sua glória jaz sob a aldeia de Mit Rahina. No entanto, ao longo de uma estrada poeirenta, as ruínas de um templo se erguem entre tufos de grama. Era ali o local em que se embalsamava o touro Ápis, um dos mais reverenciados animais daquela época.
Símbolo de força e virilidade, o Ápis tinha ligações estreitas com o rei. Ele era meio animal e meio deus, e foi eleito para veneração por causa de um conjunto incomum de marcas que ostenta no corpo: um triângulo branco na testa, formas esbranquiçadas de asas nos quartos dianteiros e traseiros, a silhueta de um escaravelho na língua e pelo duplo na ponta do rabo. Ao longo de sua vida, era mantido em um santuário especial, onde se via paparicado pelos sacerdotes, adornado com ouro e joias e adorado pelas multidões. Ao morrer, acreditava-se que sua essência divina migrava para outro touro, deflagrando, então, a busca por esse novo escolhido. Nesse meio tempo, o corpo do falecido era transportado para o templo e depositado em um leito de travertino (um tipo de rocha calcárea), trabalhado com primor. A mumificação demorava pelo menos 70 dias - 40 para secar o enorme repositório de carne e 30 para cingi-lo de bandagens.
No dia do enterro do touro, os citadinos assomavam às ruas para presenciar esse momento de luto. Soltando lamúrias, eles se apinhavam no trajeto até a catacumba. Seguindo em procissão, os sacerdotes, os cantores do templo e as augustas autoridades depositavam a múmia na rede de túneis em abóbada escavados nas formações rochosas de calcáreo. Ali, encerravam o animal mumificado em um sarcófago de granito ou madeira. Nos séculos vindouros, porém, a santidade do lugar seria violada por larápios que, forçando a tampa do sarcófago, saqueavam as múmias à procura de seus ornamentos. Nem uma única tumba do touro Ápis resistiu intacta.
Diferentes animais sagrados eram reverenciados. Salima acredita que a idéia de tal divindade surgiu no alvorecer da civilização egípcia, época em que chuvas mais pesadas que as atuais tornavam a terra verdejante e fértil. Convivendo com os animais, as pessoas passaram a associá-los a divindades de acordo com os hábitos de cada bicho. Os crocodilos, por exemplo. Por instinto, eles depositam seus ovos na futura linha-d'agua no ápice das cheias anuais do Nilo, evento fundamental que irrigava os campos, permitindo ao Egito renascer ano após ano. "Os crocodilos eram seres mágicos", diz Salima, "por terem essa habilidade de antever o futuro."
As indicações de que a cheia seria boa ou ruim eram importantes em uma terra de fazendeiros. Assim, com o tempo, os crocodilos tornaram-se símbolos de Sobek, um deus aquático da fertilidade, e um templo foi erigido em Kom Ombo, um dos lugares ao sul do Egito em que a cheia montante era observada em primeiro lugar todos os anos. Naquele espaço sagrado, próximo da barranca do rio onde os crocodilos selvagens tomavam banho de sol, seus parentes cativos levavam uma vida mansa e, ao morrer, eram sepultados com os devidos rituais.
As múmias eram, em sua maioria, objetos votivos ofertados durante os festivais anuais nos templos dedicados aos cultos de animais. Esses encontros animavam os centros religiosos ao longo do Nilo. Os peregrinos chegavam às centenas de milhares. A rota da procissão enchia-se de música e dança. Mercadores vendiam comida, bebida e lembranças. Os sacerdotes viravam homens de vendas, oferecendo tanto múmias enroladas com simplicidade como as mais elaboradas a quem podia pagar mais - ou achava que podia. Com o incenso circulando por toda parte, os fiéis encerravam sua jornada depositando suas múmias no templo, em meio a orações.
Alguns lugares eram associados a somente um deus e seu animal simbólico. Entretanto, antigos sítios de veneração, como Abidos, comportavam coleções completas de animais votivos mumificados, cada espécie relacionada a um deus em particular. Em Abidos, terreno fúnebre dos primeiros governantes do Egito, as escavações revelaram múmias que aparentemente representavam Thoth, o deus da sabedoria e da escrita. É provável que os falcões evocassem o deus dos céus, Horus, protetor dos reis vivos. Cães eram vinculados a Anúbis, o guardião dos mortos, com sua cabeça de chacal. Ao doar uma dessas múmias ao templo, o peregrino visava obter favores de seu deus. "A criatura estava sempre a sussurrar no ouvido da divindade: 'Aqui está seu devoto, seja bonzinho com ele'", explica Salima.
A partir da 26ª dinastia, por volta de 664 a.C., as múmias votivas tornaram-se bastante populares. O país acabara de expulsar seus governantes estrangeiros e os egípcios sentiam-se aliviados por retomar suas tradições. O negócio das múmias floresceu, empregando legiões de trabalhadores especializados. Os animais tinham de ser alimentados, cuidados, sacrificados e mumificados. Era preciso importar as resinas, preparar as bandagens e cavar as tumbas.
Apesar do significado religioso das oferendas, as fraudes grassavam na linha de produção. As análises de Salima com raio X revelaram toda variedade de abusos contra o consumidor: um animal mais barato substituindo um mais raro e caro; ossos ou penas no lugar do bicho completo; belas bandagens circundando nada além de barro. Quanto mais atraente a embalagem, maior a chance de fraude, constatou a cientista.
Para descobrir como os antigos embalsamadores trabalhavam - os textos da época silenciam -, Salima realiza experimentos de mumificação. Para os insumos, ela visita o centro do Cairo e, em uma lojinha, um funcionário se vale de uma velha balança de cobre para pesar cristais cinzentos em pedaços. Trata-se de natrão, o principal agente desidratante utilizado na mumificação, um tipo de sal que absorve umidade e gordura. O natrão ainda é extraído a sudoeste do delta do Nilo, e é vendido para uso em faxina, como a soda cáustica. No herbanário, a cientista encontra os óleos que farão com que corpos secos e duros se tornem flexíveis de novo, além de pedaços resinosos de olíbano que, derretidos, vão selar as bandagens. O vinho de palmeira que os antigos usavam para lavar as cavidades internas dos corpos depois da evisceração é substituído por um gim local.
A cientista começou mumificando coelhos. Eles têm um bom tamanho para se manipular e podem ser encontrados no açougue. "Em vez de fazer guizado de coelho, eu dei a vida eterna", brinca ela. O coelhinho Flopsy - Salima batizou suas múmias - foi enterrado inteiro no natrão. O corpo não durou dois dias. Gases se formaram dentro dele, e o bichinho explodiu. O coelho Tambor teve melhor sorte. Seus pulmões, fígado, estômago e intestinos foram removidos. Depois, ele foi recheado com natrão e enterrado na mesma substância.
Fofinha, a próxima candidata, ajudou a resolver uma charada arqueológica. O natrão com que foi recheada absorveu tanto fluido corporal que a coelha ficou visguenta, malcheirosa, repelente. Salima removeu o natrão encharcado e o substituiu por saquinhos de linho cheios de natrão fresco. Assim, ficava mais fácil remover o recheio quando ele estivesse encharcado, o que explicava a razão de se ter encontrado saquinhos similares em redutos de embalsamadores.
Pedro Coelho sofreu um tratamento diferente. Em vez de evisceração, foi-lhe aplicado um clister de aguarrás e óleo de cedro antes de ser colocado no natrão. Heródoto, o famoso historiador grego, escreveu sobre tal procedimento no século 5 a.C., mas os estudiosos sempre discutiram o quanto isso era confiável. Neste caso, o experimento provou que ele estava certo. As entranhas de Pedro Coelho se dissolveram, exceto o coração - único órgão que os antigos egípcios sempre deixavam no lugar.
Como os animais mumificados há mais de 3 mil anos, os bichos de Salima Ikram entraram felizes à posteridade. Uma vez realizado o trabalho laboratorial, ela e seus alunos seguiram o antigo protocolo dos embalsamadores e envolveram todos os corpos em bandagens estampadas com palavras mágicas. Recitando orações e queimando incenso, eles depositaram as múmias no armário de uma sala de aula, onde atraíram visitantes - inclusive eu. Deixei ali minhas oferendas, desenhos de cenouras e símbolos que os antigos usavam para multiplicar por mil os presentes desenhados. Salima Ikram me assegura que as imagens se tornam reais no outro mundo, e que seus coelhinhos estão agora muito alegres repuxando seus focinhos.
Fofinha, a próxima candidata, ajudou a resolver uma charada arqueológica. O natrão com que foi recheada absorveu tanto fluido corporal que a coelha ficou visguenta, malcheirosa, repelente. Salima removeu o natrão encharcado e o substituiu por saquinhos de linho cheios de natrão fresco. Assim, ficava mais fácil remover o recheio quando ele estivesse encharcado, o que explicava a razão de se ter encontrado saquinhos similares em redutos de embalsamadores.
Pedro Coelho sofreu um tratamento diferente. Em vez de evisceração, foi-lhe aplicado um clister de aguarrás e óleo de cedro antes de ser colocado no natrão. Heródoto, o famoso historiador grego, escreveu sobre tal procedimento no século 5 a.C., mas os estudiosos sempre discutiram o quanto isso era confiável. Neste caso, o experimento provou que ele estava certo. As entranhas de Pedro Coelho se dissolveram, exceto o coração - único órgão que os antigos egípcios sempre deixavam no lugar.
Como os animais mumificados há mais de 3 mil anos, os bichos de Salima Ikram entraram felizes à posteridade. Uma vez realizado o trabalho laboratorial, ela e seus alunos seguiram o antigo protocolo dos embalsamadores e envolveram todos os corpos em bandagens estampadas com palavras mágicas. Recitando orações e queimando incenso, eles depositaram as múmias no armário de uma sala de aula, onde atraíram visitantes - inclusive eu. Deixei ali minhas oferendas, desenhos de cenouras e símbolos que os antigos usavam para multiplicar por mil os presentes desenhados. Salima Ikram me assegura que as imagens se tornam reais no outro mundo, e que seus coelhinhos estão agora muito alegres repuxando seus focinhos.
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