Há 500 anos, uma nau cheia de ouro afundou diante de uma praia coalhada de diamantes.
Perdido em 1533, um "excelente" espanhol vem à luz em uma mina da Namíbia.
A história raramente se desenrola como fábula. Mas considere o seguinte: uma nau mercante portuguesa do século 16 transportando uma fortuna em ouro e marfim rumo a um famoso porto de especiarias na costa da Índia desvia-se de sua rota por causa de uma forte tempestade ao tentar dobrar o extremo sul da África. Dias depois, avariada, a embarcação se espatifa em um misterioso e nevoento litoral juncado de diamantes - mais de 1 milhão de quilates deles -, escárnio cruel do sonho de riquezas dos marujos. Nenhum dos náufragos jamais voltou para casa.
Tão improvável peripécia teria se perdido para sempre não fosse pela espantosa descoberta, em abril de 2008, de um barco afundado nas areias da praia no Sperrgebiet - o rico e famoso território privado da mineradora de diamantes De Beers, na boca do rio Orange, ao sul da costa da Namíbia. Um geólogo da companhia que trabalhava na área de mineração U-60 topou com uma aparente meia esfera de pedra perfeitamente arredondada. Curioso, apanhou o objeto e se deu conta de que se tratava de um lingote de cobre. Uma estranha marca de tridente na superfície gasta revelou-se o emblema de Anton Fugger, um dos mais ricos financistas do Renascimento europeu. O lingote era do tipo que, na primeira metade do século 16, se trocava por especiarias nas chamadas "Índias", designação genérica de uma região que compreendia mais de uma dezena de países atuais, desde a Índia e o Paquistão até a Malásia e a Indonésia.
Os arqueólogos descobririam mais tarde uma impressionante partida de 22 toneladas desses lingotes debaixo da areia, além de canhão, espadas, presas de elefante (marfim), astrolábios, mosquetões e cotas de aço - ao todo, milhares de artefatos. E ouro, lógico, ouro a mancheias: mais de 2 mil lindas e pesadas moedas, a maioria excelentes, a moeda espanhola do século 16 com as efígies dos reis da Espanha Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Havia também uma miscelânea de moedas venezianas, mouras, francesas e portuguesas, estas últimas ostentando o brasão de armas do rei D. João III.
É de longe o mais velho naufrágio já localizado na costa da África subsaariana, e o mais rico. Seu valor em dólares ainda é incerto, mas nenhum de seus tesouros teve o condão de atiçar a imaginação dos arqueólogos de todas as partes do mundo com a mesma intensidade quanto o navio sinistrado em si mesmo: um East Indiaman português, como chamavam as embarcações que faziam a rota das Índias Orientais, datado dos anos 1530, em pleno apogeu da era dos descobrimentos, com seu carregamento de valores e produtos comerciais intacto, depois de repousar intocado e insuspeito por quase 500 anos.
"É uma oportunidade inestimável", diz Francisco Alvez, decano dos arqueólogos marítimos portugueses e chefe da arqueologia náutica do Ministério da Cultura. "Sabemos pouco sobre esses grandes navios. Esse é só o segundo que já foi desenterrado por arqueólogos. Todos os demais foram saqueados por caçadores de tesouros."
Caçadores de tesouros nunca serão problema aqui, no meio de uma das minas de diamante mais resguardadas do mundo, em um litoral cujo próprio nome - Sperrgebiet - significa "zona proibida" em alemão. Longe de saqueadores, as autoridades da De Beers e do governo da Namíbia, que nessa área arrendada formam uma joint venture denominada Namdeb, suspenderam as operações no local do naufrágio, convocaram uma equipe de arqueólogos e passaram semanas a minerar história em vez de diamante.
Pesquisadores vão levar anos estudando a riqueza do material coligido no "Naufrágio dos Diamantes", como foi chamado. "Há muita coisa desconhecida", afirma o português Filipe Vieira de Castro, coordenador do programa de arqueologia náutica da Texas A&M University. Castro passou mais de dez anos estudando as naus mercantes portuguesas, desenvolvendo modelos computadorizados com base em escassos achados arqueológicos. "Esse naufrágio vai nos proporcionar novos dados sobre tudo, desde formato do casco, cordame e evolução desses barcos até detalhes como o jeito como se cozinhava a bordo e os pertences levados em grandes jornadas."
Um trabalho detetivesco em meio a raros manuscritos e arquivos reais em Lisboa amealhou quantidade suficiente de peças e fragmentos históricos para reconstituir o caso, rico em ironia e alegoria tanto quanto em ouro, de uma viagem há muito esquecida e de um navio desaparecido.
A história tem início na sexta-feira 7 de março de 1533, primavera em Lisboa, quando as grandes naus da frota que seguiria para as Índias naquele ano zarparam em grande estilo da foz do rio Tejo para o imenso Atlântico, com bandeiras e flâmulas a tremular, sedas coloridas e veludos a decorar os castelos de proa e de popa. Esses barcos eram o orgulho de Portugal, os ônibus espaciais da época, a caminho de uma odisseia de 15 meses para trazer fortuna em especiarias de longínquos continentes. Goa e Cochin (Índia), Sofala (Moçambique), Mombasa (Quênia), Zanzibar (Tanzânia) e Ternate (ilhas Molucas, Indonésia): lugares lendários e tão remotos quanto as estrelas na época, hoje, são portos rotineiros, incorporados à língua portuguesa graças ao engenho e à tecnologia da brava gente lusitana.
As naus que zarparam do Tejo em 1533 eram robustas e destras. Duas delas, novas em folha, pertenciam ao próprio rei. Uma era a Bom Jesus, capitaneada por D. Francisco de Noronha, e levava cerca de 300 pessoas, entre marujos, soldados, mercadores, sacerdotes, nobres e escravos.
Atribuir nomes e uma história a um naufrágio anônimo de cinco séculos, descoberto por acaso em um litoral distante, requer astúcia investigativa e mais que sorte - sobretudo se tiver sido de uma nau portuguesa. Ao contrário do reino de Espanha, sobre o qual há documentos de época, Portugal sofreu, em novembro de 1755, uma sequência de catástrofes - terremoto, tsunami e incêndios - que varreu Lisboa do mapa. A Casa da Índia, o edifício que abrigava a maioria de preciosos mapas, cartas marítimas e registros de navegação, desabou sobre o Tejo. "Isso abriu um buraco em nossa história", diz o arqueólogo Alexandre Monteiro. "Sem contar com arquivos sobre as Índias para análise, tivemos de achar meios mais imaginativos de obter informação."
Assim, uma pista vital emergiu das moedas encontradas no sítio do naufrágio, em particular as portuguesas, belas e raras, da época do rei D. João III. Elas foram cunhadas alguns anos antes, a partir de 1525. Depois de 1538, foram recolhidas, derretidas e nunca mais relançadas. A presença de tantas reluzentes e novas moedas é forte indicativo de que o navio foi ao mar em algum momento durante esse inervalo de 13 anos. Além disso, a carga de lingotes de bronze sugere que a embarcação não retornava a Portugal, e sim seguia para as Índias para adquirir especiarias.
Embora os registros completos da Casa das Índias tenha se perdido há tempos, alguns fragmentos restaram em bibliotecas e arquivos que sobreviveram ao terremoto de 1755. Entre eles encontram-se as “Relações das Armadas”, ou seja, os relatos sobre as expedições. Um estudo das narrativas mostra que 21 naus se perderam a caminho das Índias entre 1525 e 1600. Apenas uma delas foi a pique em algum ponto próximo à Namíbia: a Bom Jesus, que navegou em 1533 e "se extraviou ao dobrar o cabo da Boa Esperança".
Outro sinal intrigante indicando a Bom Jesus veio de uma carta que Monteiro desenterrou dos arquivos reais. Datada de 13 de fevereiro de 1533, ela revela que o rei D. João III acabara de enviar um nobre a Sevilha para apanhar 20 000 cruzados em ouro das mãos de um consórcio de negociantes que havia investido na frota prestes a zarpar para as Índias - a mesma que incluía a Bom Jesus. Os arqueólogos, antes disso, haviam se mostrado pasmos diante da alta quantidade de moedas espanholas encontrada no naufrágio - cerca de 70% das unidades de ouro eram de excelentes, algo inesperado em se tratando de uma nau lusitana. "Essa carta representou um grande salto", afirma Monteiro. "Os investidores espanhóis, ao que parece, tiveram grande participação na expedição de 1533, fato pouco usual."
Um torno raro do século 16 chamado "Memória das Armadas" chega a permitir fantástico vislumbre da nau Bom Jesus. Editado como um volume comemorativo, ele contém ilustrações de todas as frotas que partiram para as Índias, ano a ano, desde a expedição pioneira de Vasco da Gama, em 1497. Entre as imagens de 1533, encontra-se uma vinheta que mostra dois mastros encordoados com o velame aberto em vias de desaparecer pelas ondas adentro com a legenda "Bom Jesus". E um simples epitáfio: "Perdido".
O que aconteceu? Ao que parece, uns quatro meses depois de sua partida de Lisboa, a primeira frota de 1533 foi atingida e dispersada por uma tempestade. Os detalhes são pura especulação. O relatório da viagem feito pelo capitão D. João Pereira, comandante da frota, extraviou-se. Tudo que resta é o registro de um funcionário acusando o recebimento do texto de D. João com menção ao desaparecimento da Bom Jesus na borrasca em algum lugar na costa do Cabo. É fácil imaginar o que sucedeu depois: a nau avariada pela tempestade viu-se colhida pelos poderosos ventos e pelas correntes que se manifestam ao longo da costa sudoeste da África e foi levada a centenas de quilômetros para o norte. Assim que a vegetação rasteira esbatida de ventos do deserto da Namíbia se tornou visível, a nau condenada chocou-se contra recifes a cerca de 140 metros do litoral. O forte impacto arrancou grande pedaço da popa, derramando toneladas de lingotes de cobre no mar e mandando a Bom Jesus a pique.
Avance agora cinco séculos até o sítio arqueológico envolvido em uma aura um tanto surreal. Vários pesquisadores escavam um navio naufragado que jaz a 6 metros abaixo do nível do mar cujas águas atlânticas são mantidas afastadas por um massivo muro de contenção. Câmeras de circuito fechado, espalhadas pelo perímetro do sítio, monitoram os movimentos - uma lembrança de que, apesar da excitação da descoberta, isso aqui ainda é uma mina de diamantes. E uma das mais ricas, onde as gemas preciosas podem estar misturadas à areia que os arqueólogos varrem.
"Não fosse pelo peso desses lingotes que fez tudo se enterrar na areia, não teria sobrado nada", diz Bruno Werz, diretor do Instituto Sul-Africano de Arqueologia Marítima, que presta assistência à escavação. "Cinco séculos de tempestades e ondas teriam desgastado e sumido com tudo."
Werz e alguns pesquisadores têm se debruçado sobre os destroços, medindo, fotografando
e escaneando tudo com um equipamento a laser tridimensional. Tentam reconstituir os últimos momentos da nau, que não devem ter sido fáceis. Os espatifados despojos do casco e do castelo de proa, com um emaranhado de velas, mastros e cordame se espadanando em meio aos vagalhões, tudo à deriva rumo ao norte pela corrente, vagando pelo mar. E o que foi feito do pessoal a bordo, D. Francisco e os demais?
"Uma tempestade de inverno aqui não é brincadeira", diz Dieter Noli, arqueólogo que trabalha e reside ao longo desse trecho do deserto da Namíbia há mais de dez anos. "Deve ter sido horrível, com ventos de mais de 125 quilômetros por hora e uma tremenda rebentação. Chegar à praia seria impossível. Por outro lado, se a tempestade amainou e o barco derivou para a praia num desses neblinosos dias de bonança que temos por aqui, bom, isso abre todo tipo de possibilidade."
Algo do gênero pode ter acontecido. Embora a descoberta de ossos de dedos do pé dentro de um sapato preso debaixo de uma pilha de madeiras indique que ao menos uma pessoa não sobreviveu - esses foram os únicos despojos humanos recuperados. Havia também poucos objetos pessoais entre os artefatos encontrados. Tais fatos levaram os arqueólogos à crença de que, apesar do esfacelamento do navio, muitas, senão a maioria, das pessoas a bordo lograram chegar à terra.
E depois? Esse é um dos lugares mais inóspitos do planeta, uma imensidão desabitada de areia e vegetação rasteira a se estender por centenas de quilômetros. Era inverno, todo mundo molhado, exausto, com frio, afundado em desolação. Não havia a menor esperança de resgate, pois ninguém no mundo sabia que eles estavam vivos, e menos ainda por onde iniciar a busca. Tampouco havia chance de algum navio passar por ali. Eles estavam fora das rotas comerciais. Quanto à chance de voltar para Portugal, era a mesma que teriam se houvessem naufragado em Marte.
De todo modo, as coisas não precisavam ter acabado mal para os náufragos, de acordo com Noli. O rio Orange fica a apenas 25 quilômetros ao sul do sinistro, uma fonte de água fresca cuja vegetação típica eles podem ter notado ao passar à deriva pela foz. Havia muita comida: mariscos, ovos de aves marinhas e caracóis do deserto.
Além disso, os portugueses podem ter cruzado com especialistas locais em matéria de sobrevivência. O inverno era a estação na qual o povo de caçadores-coletores conhecidos hoje como bosquímanos se aventuravam ao norte ao longo desse litoral na esperança de encontrar carcaças de baleias-franca-austrais que iam dar na praia.
Como os portugueses se saíram nesses encontros é algo que dependeu deles, diz Noli. " Se conseguiram negociar, em vez de tomar as coisas à força, não há razão para supor que não tivessem se dado bem". Os poucos bandos de caçadores-coletores às margens do rio não sofriam pressões populacionais por recursos escassos e, portanto, não havia por que se mostrarem agressivos para com os recém-chegados. Ao contrário, um cavalheiro português alto e garboso em sua armadura pode muito bem ter sido encarado como um atraente genro em potencial por algum nativo.
Seja qual tenha sido seu destino, os sobreviventes da nau Bom Jesus não tinham a menor ideia da rara ironia com a qual suas preces, tempos atrás, em Lisboa, haviam sido acolhidas. Eles haviam se lançado em uma jornada em busca de riquezas, suplicando diante de altares e santos por ajuda e sucesso. Agora lá estavam eles, em uma praia de inimaginável riqueza - um trecho de 300 quilômetros de deserto recheado com um volume fantástico de diamantes de alta qualidade, a ponto de, no início do século 20, o explorador Ernst Reuning ter apostado com um colega em quanto tempo encheriam uma caneca com as gemas soltas na areia. Levou só dez minutos.
Por longas eras o grande rio arrasta milhões - bilhões mesmo - de diamantes desde jazidas situadas a distâncias que chegam a 2 735 quilômetros terra adentro. Apenas as mais sólidas, brilhantes e refinadas pedras, algumas pesando centenas de quilates (1 quilate = 0,20 grama), sobreviveram à viagem. Elas se despejaram no Atlântico na boca do rio e foram empurradas para a costa pela mesma corrente fria que um dia viria conduzir a Bom Jesus ao desastre.
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