Quatrocentos e doze livros. Quem, numa única vida, conseguiria escrever tanto? O mineiro Francisco Cândido Xavier, ou simplesmente Chico Xavier, conseguiu. Ele afirmava ter psicogra-fado -- ou seja, recebido e transcrito -- mensagens enviadas por mais de 2 mil espíritos. Na prática, passou a vida inteira conversando com os mortos. Escreveu um livro atrás do outro, ou vários ao mesmo tempo, não para ganhar dinheiro -- já que sempre doou os direitos autorais a associações espíritas ou instituições de caridade --, mas para provar uma máxima do espiritismo: nossa alma é imortal. E acabou convencendo um número incalculável de pessoas ao longo de seus 92 anos. Se hoje o Brasil é considerado a maior nação espírita do mundo, com quase 2,5 milhões de adeptos e cerca de 30 milhões de simpatizantes, isso se deve, em boa parte, ao trabalho de divulgação executado por Chico - o homem mais importante da doutrina espírita mundial enquanto viveu, até junho de 2002.
Se ainda fosse vivo, Chico Xavier estaria completando 100 anos. Filho de pais analfabetos, nasceu no dia 2 de abril de 1910, na pequena cidade de Pedro Leopoldo (MG), 35 quilômetros ao
norte de Belo Horizonte. Foi criado na fé católica. E teve um fância, no mínimo, incomum . Enquanto as outras crian brincavam, ele recebia mensagens do além. "Uma noite, seu pai , Cândido Xavier, conversava a mulher, Maria João de Deus, sobre o aborto sofrido por uma vizinha, e desancava a moça", conta o jornalista Marcel Souto Maior, autor da biografia "As Vidas de Chico Xavier" (Planeta). "O filho interrompeu o julgamento e, do alto de seus 4 anos, proferiu a sentença: "O senhor está desiinformado. O que houve foi um problema de nidação inadequada do ovo, de modo que a criança adquiriu posição ectópica".
Quando Maria João morreu, em 1915, Chico tinha apenas 5 anos de idade -- e supostamente a comunicação com espíritos, que já era incrivelmente precoce, tornou-se ainda mais intensa. A madrinha, responsável pelo garoto na ausência da mãe, dava-lhe surras com vara de marmelo, irritada com as visitas que aquele "menino esquisito" afirmava receber: "Esse moleque tem o Diabo no corpo!", ela berrava. Hoje, os espíritas não têm dúvidas quanto à natureza daqueles fenômenos: Chico era um médium nato, que já veio ao mundo com o poder da mediunidade. E mais. Teria sido um espírito evoluído, daqueles que nem precisam reencarnar para chegar à perfeição.
Foi aos 17 anos, em 1927, que Chico começou a colocar no papel as supostas mensagens espirituais. Quatro anos mais tarde, segundo o médium, uma alma desencarnada veio à Terra especialmente para lhe entregar uma missão: escrever livros e divulgar o espiritismo. Seu nome era Emmanuel - representante do Império Romano numa de suas encarnações anteriores, vida na qual teria até conhecido Jesus Cristo. Nas palavras do espírito, as obras psicografadas por Chico Xavier seriam "a chuva que fertiliza lavouras imensas, alcançando milhares de almas". Dali em diante, Emmanuel seria seu mentor espiritual. E ditaria dezenas de livros ao longo das décadas seguintes.
O primeiro deles saiu em 1932: "Parnaso de Além-Túmulo" (FEB), uma coletânea de poemas atribuídos a vários autores brasileiros e portugueses, todos mortos -- entre eles, Augusto dos Anjos, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Olavo Bilac e Antero de Quental. Chico Xavier psicografou os poetas, mas teria sido Emmanuel quem apontou quais poemas deveriam ser publicados nas seguidas edições do livro. Dois anos depois, em 1934, morreria o poeta Humberto de Campos, ocupante de uma cadeira na Academia Brasileira de Letras desde 1920. E de lá, do além, ele seria mais um famoso a entrar em contato com Chico. De 1937 a 1969, o médium psicografou 12 obras supostamen-te ditadas por Campos -- entre as quais Brasil, "Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" (FEB), considerada uma das mais importantes de Chico Xavier (leia mais abaixo).
A viúva do poeta, Catharina de Campos, não gostou, e entrou na Justiça em 1944. A ação movida contra o médium e a Federação Espírita Brasileira, que publicava os livros, colocava ambos contra a parede. Se a autenticidade das psicografias fosse referendada judicialmente, ela reivindicaria diretos autorais -- afinal, era herdeira de Humberto. Caso a mediunidade de Chico não fosse reconhecida, abriria mão dos direitos, mas exigiria punição por uso indevido do nome de seu falecido marido. O juiz responsável considerou que a petição da viúva, na verdade, era uma consulta -- e a Justiça não poderia atuar como órgão consultivo. Resultado: a pendenga deu em nada. Mas foi a primeira de muitas suspeitas que seriam lançadas sobre Chico Xavier ao longo de toda a sua vida.
Impressionava ver o médium em transe, durante uma psicogra-fia. Chico se concentrava, fechava os olhos e aparentemente alcançava um estado alterado de consciência. Estabelecida a suposta ponte com o além, ele colocava a mão esquerda na testa e deixava que o espírito escrevesse com a direita. Uma pessoa sempre ficava ao seu lado, para trocar lápis e papel -- tamanha era a velocidade com que o médium escrevia.
Outro grande parceiro de Chico Xavier ao longo de sua profícua carreira foi o espírito André Luiz, que teria sido médico em sua encarnação anterior. Uma das 16 obras ditadas por ele foi "Nosso Lar" (FEB), de 1944 - o livro espírita brasileiro mais bem-sucedido da história. O sucesso acabaria conduzindo o médium mineiro à condição de líder do movimento espírita. Alguns o enxergavam quase como guru, um guia espiritual. Outros, como um homem santo. Os céticos, como um trambiqueiro cara de pau. Mas todos, sem exceção, como um personagem misterioso e fascinante.
Não é por acaso que os quatrocentos e tantos livros psicografados por Chico Xavier já acumulam mais de 25 milhões de exemplares vendidos -- um recorde, superado apenas por Paulo Coelho entre os autores brasileiros. Durante décadas, o médium foi um verdadeiro pop star. Hoje, algumas dessas obras são consideradas as mais relevantes do espiritismo mundial, quase tão importantes quanto os livros de Allan Kardec, o codificador da doutrina espírita.
A linha que ele imprimiu ao espiritismo, de aproximação com o catolicismo, foi mais um fato que impulsionou a expansão da doutrina por aqui. Seus livros popularizavam os códigos espíritas mas dentro dos preceitos cristãos, sem assustar os católicos. Na verdade, o que acontecia era exatamente o contrário. Ele transformou-se em exemplo abnegação e amor ao próximo, fez voto de pobreza e liderou ações filantrópicas; tudo isto à medida que conquistava a simpatia até dos mais raivoso.s adversários "Seguia à risca uma instrução ditada por Emmamuel: fidelidade irrestrita a Jesus Cristo e a Kardec, o codificador da doutrina", diz Souto Maior.
POR CARLA SOARES MARTIN E EDUARDO LIMA DESIGN MICHELE KANASHIRO
ILUSTRAÇÃO CAVANI ROSAS E MURILO MACIEL CALIGRAFIA ANDRÉA BRANCO
A partir da revista "Aventuras na História - Espiritismo". Aquira o exemplar na Loja Abril
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