Chegada do homem ao território americano é alvo de pesquisas e polêmica
EVANILDO DA SILVEIRA
Pintura em caverna na serra da Capivara,
no Piauí / Foto: Evanildo da Silveira
Ao desembarcar na praia de uma ilha do Caribe, numa manhã ensolarada de uma sexta-feira, dia 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo foi recebido por um povo amistoso, os tainos, que ele estava convencido serem indianos. O navegador genovês a serviço da Espanha não sabia, mas sua chegada marcou, na verdade, o reencontro de duas linhagens evolutivas do Homo sapiens, que estavam separadas havia pelo menos 50 mil anos, a sua própria, europeia, e a dos americanos de então, mongoloides, aparentados com os povos asiáticos. Desde então, persiste o mistério: como as populações encontradas por Colombo chegaram a este novo mundo descoberto por ele, mais tarde batizado de América? Dois trabalhos recentes de pesquisadores brasileiros (um livro e um artigo científico) são uma tentativa de responder, pelo menos em parte, a essa questão.
As duas respostas não convergem, no entanto. Na verdade, elas aumentam a controvérsia que cerca o assunto há muito tempo. No livro O Povo de Luzia – Em Busca dos Primeiros Americanos, seus autores, o bioantropólogo Walter Alves Neves e o geógrafo Luís Beethoven Piló, ambos da Universidade de São Paulo (USP), apresentam sua teoria para a chegada do homem à América. Eles a chamam de Dois Componentes Biológicos Principais, porque, segundo essa tese, houve duas levas migratórias iniciais, a primeira há 14 mil anos e a segunda há 11 mil, vindas da Ásia pelo estreito de Bering. A mais remota seria composta por uma população com traços que lembram os dos africanos e aborígines australianos. "A segunda era de mongoloides, semelhantes aos asiáticos e índios americanos atuais", explica Neves.
O artigo, por sua vez, de autoria de três geneticistas brasileiros e um antropólogo argentino e que foi publicado em junho de 2008 na versão on-line do American Journal of Physical Anthropology, não nega a existência dessa diversidade de traços entre os primeiros americanos. A diferença é que os autores defendem que houve uma leva migratória principal, que chegou ao continente há 18 mil anos. Antes disso, a partir de 25 mil atrás até a saída para a América, os ancestrais dos migrantes haviam ficado "presos" na Beríngia, região que unia o Alasca ao nordeste da Sibéria e que naquela época não estava submersa (era o auge do último período glacial e o mar estava 120 metros abaixo do nível atual). "Essa população era morfologicamente diversificada e abrigava desde tipos semelhantes aos africanos até os parecidos com os índios atuais", explica Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma das autoras do trabalho.
Cruzando o Atlântico
Uma outra teoria brasileira sobre a ocupação da América, bem mais polêmica, foi proposta pela arqueóloga Niède Guidon, com base em suas descobertas em vários sítios arqueológicos na região do município de São Raimundo Nonato, no sul do Piauí. Segundo ela, o homem chegou à região há mais de 100 mil anos, vindo diretamente da África pelo Atlântico. Niède também considera que, nessa época, o planeta estava num período glacial, com o mar 120 metros abaixo do nível atual. "O número de ilhas entre a costa euro-africana e a costa sul-americana era bem maior", diz. "Além disso, as correntes marítimas favoreciam a passagem para leste, para o Caribe e para o litoral norte do Brasil."
As teorias dos pesquisadores brasileiros não são as únicas que tentam explicar a chegada do homem à América. Na verdade, elas são apenas as mais recentes e estão tentando se impor diante de outras explicações mais antigas e consagradas, propostas principalmente por arqueólogos norte-americanos. A mais velha e renitente delas é o modelo conhecido em inglês como Clovis-first (Clóvis-primeiro). Esse nome se deve a um sítio arqueológico assim denominado, descoberto em 1939, no Novo México, nos Estados Unidos. Nesse local, foram encontrados artefatos de pedra lascada, datados de 11,4 mil anos, com destaque para as famosas pontas de flecha e de lança.
Segundo os defensores desse modelo, objetos como esses teriam dado origem a todas as demais formas de fabricar artefatos de pedra do continente. Além disso, de acordo com o livro de Neves e Piló, nessa teoria está implícito que houve apenas uma via de entrada para esses pioneiros, o estreito de Bering, e que teriam chegado representantes de apenas um grande estoque biológico humano, quer dizer, membros de um mesmo povo – aquele conhecido popularmente como mongoloide e que hoje domina quase completamente a Ásia. A chegada teria ocorrido há cerca de 12 mil anos e nenhum ser humano teria colocado os pés no continente antes dessa data. "Em razão do peso intelectual dos Estados Unidos na produção científica mundial, Clóvis-primeiro foi imposto de forma mais ou menos unilateral por profissionais da América do Norte para todo o continente", diz Neves.
Dogma enterrado
Há ainda uma teoria chamada Modelo das Três Migrações, proposta em 1983 pelo norte-americano Christy Turner, que se baseou num amplo levantamento da diversidade dentária, incluindo análises de populações pré-históricas da Austrália e da Melanésia, do sul, leste e nordeste da Ásia, além das três Américas. Diante dos resultados obtidos, ele concluiu que houve três levas migratórias da Sibéria para a América. A primeira, há 11 mil anos, teria dado origem a todos os índios das Américas Central e do Sul e à esmagadora maioria dos povos nativos norte-americanos. A segunda teria chegado há 9 mil anos e originou os índios de língua na-dene, ancestrais de apaches e navajos, representados sobretudo na costa pacífica dos Estados Unidos e do Canadá. A última seria bem mais recente – de cerca de 4 mil anos atrás –, e era composta pelos ancestrais dos esquimós e dos povos aleutas (do arquipélago das Aleutas, no Círculo Polar Ártico).
Em 1986, essa tese foi reforçada por dados da genética e da linguística levantados por dois colegas de Turner, Stephen Zegura e Joseph Greenberg. Essa nova explicação não contraria a teoria Clóvis-primeiro. Na verdade dá suporte a ela. "Do ponto de vista biológico, as ideias de Turner e associados dominaram todo o cenário acadêmico ligado à questão da ocupação do Novo Mundo durante grande parte dos anos 1980 e 90", diz Neves. "Elas têm sido usadas intensivamente pelos clovistas para dar sustentação ao modelo Clovis-first e ajudaram a torná-lo quase inexpugnável."
Por isso, Neves diz que o debate que se travava até há pouco tempo sobre quando os primeiros humanos chegaram à América podia ser facilmente dividido em dois grupos distintos de pesquisadores: de um lado os clovistas, de outro os pré-clovistas. "Poucas discussões na área da arqueologia e da antropologia atingiram temperaturas tão altas quanto essa no mundo acadêmico", escreve ele em O Povo de Luzia. "Clovistas ferrenhos recusavam-se até mesmo a examinar com seriedade qualquer possibilidade de que poderia ter havido humanos no continente americano antes dos fatídicos 11,4 mil anos, que marcam o início da cultura Clóvis na América do Norte. Já os pré-clovistas acreditam que existem evidências mais que suficientes, sobretudo na América do Sul, para que o dogma clovista seja definitivamente enterrado."
Isso de fato começou a ocorrer em 1997, quando Tom Dillehay, da Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, publicou um livro em que relata em detalhes os resultados de suas escavações no sítio de Monte Verde, localizado a apenas 60 quilômetros da costa do Pacífico, próximo à cidade de Puerto Montt, no sul do Chile. "Para muitos, incluindo vários clovistas empedernidos, os dados minuciosamente apresentados por Dillehay não deixaram margem a dúvidas: o homem estava mesmo presente em Monte Verde havia pelo menos 12,3 mil anos", diz Neves.
Provas contra Clóvis
Descobertas em outros sítios arqueológicos da América do Sul reforçaram essa constatação e a posição dos pré-clovistas. Entre esses sítios estão Taima-Taima, na Venezuela, onde foram encontrados indícios de presença humana de 15 mil anos; Piedra Museo e Los Toldos, na Argentina, com vestígios de 13 mil anos, além de Tibitó, na Colômbia, e Quebrada Jaguay e Pachamachay, no Peru, com datações antigas de até 11,8 mil anos. No Brasil, uma descoberta importante foi relatada em 1996, na revista Science, por Anna Roosevelt, então ligada ao Museu Field, de Chicago, dando conta de uma ocupação humana em plena floresta amazônica datada de 11,3 mil anos. Diante de tantas evidências, em março de 1998, a Sociedade Norte-Americana de Arqueologia, a maior defensora de Clóvis, reconheceu Monte Verde como o povoamento mais antigo da América.
É nesse contexto que se inserem as descobertas dos brasileiros e as teorias que elaboraram a partir delas. Em seu livro, Neves e Piló contam a história de mais de 150 anos de pesquisas nas grutas e abrigos calcários da região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Iniciadas em 1835 pelo dinamarquês Peter Lund, as escavações feitas por vários cientistas ao longo desse tempo todo desenterraram provas de ocupações passadas, tanto do homem como da chamada megafauna do Pleistoceno – período geológico que se estende de 2 milhões até 10 mil anos atrás –, composta de animais hoje extintos, como tatus e preguiças-gigantes e tigres-dentes-de-sabre.
A obra, lançada em abril do ano passado, também traz à luz a história dos trabalhos realizados nas últimas duas décadas pelos autores na mesma região estudada por Lund. Neves e Piló relatam como foi feita a reconstituição do rosto de Luzia a partir de seu crânio, descoberto em 1974 pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire no sítio chamado Lapa Vermelha IV, em Lagoa Santa. Durante mais de 20 anos, os restos desse indivíduo jovem, do sexo feminino, ficaram guardados no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Em 1995, Neves fez medidas antropométricas do crânio e apresentou os resultados preliminares em 1998, num congresso da Associação Norte-Americana de Antropologia Física. Os dados mostravam que Luzia tinha mais a ver com os africanos do que com os índios atuais.
Traços ancestrais
Essa análise ganhou mais força no ano seguinte, quando foi apresentada a reconstrução da fisionomia de Luzia, feita pelo especialista britânico Richard Neave, por encomenda da rede de comunicação BBC, que estava produzindo um documentário sobre a chegada do homem ao continente americano. "A reconstrução facial realizada por Neave, sem ter nenhuma informação prévia sobre o assunto, convergiu totalmente com estudos que havíamos realizado anteriormente com base no crânio seco: Luzia não era mongoloide."
O resultado deu mais visibilidade à teoria de Neves, segundo a qual os primeiros americanos podem ter partido da Ásia, apesar de sua semelhança com africanos, rumo à América pelo estreito de Bering. A diferença dessa ideia com outras que dizem o mesmo é que esse deslocamento teria ocorrido antes que essa população evoluísse até adquirir a aparência asiática. Quer dizer, esse povo mantinha os traços de seus ancestrais, que haviam deixado a África cerca de 60 mil anos antes. "Assim, conseguimos explicar a existência de uma morfologia não-mongoloide no continente americano sem apelar para modelos pirotécnicos insustentáveis, como o das viagens transoceânicas", diz Neves.
O pesquisador da USP se refere à teoria proposta por Niède Guidon. Segundo essa arqueóloga paulista que fez carreira na França, retornou ao Brasil e desde 1978 realiza escavações no sul do Piauí, os primeiros homens passaram das ilhas e da costa africana para a América entre 150 mil e 110 mil anos atrás. Essa passagem se fez para o Caribe e para a costa norte do Brasil, com um ponto de chegada próximo ao atual rio Parnaíba, então muito grande. "Depois, ao longo de milênios, esses seres humanos se espalharam pelo continente, migrando inclusive para o norte, onde se encontraram, muito mais tarde, com os asiáticos que entraram pelo estreito de Bering", explica Niède.
Durante muito tempo essa ideia foi ridicularizada pela comunidade arqueológica. As provas apresentadas por Niède – ferramentas de pedra e restos de fogueiras descobertos pela pesquisadora em São Raimundo Nonato – nunca foram aceitas. Suspeitava-se que ambas não fossem obra do homem, mas da própria natureza. Em 2006, no entanto, Niède marcou um tento importante na luta para que sua teoria seja aceita. Uma análise feita por Eric Boëda, da Universidade de Paris, considerado um dos maiores especialistas do mundo em tecnologia lítica (de pedra) pré-histórica, mostrou que os artefatos foram mesmo produzidos por humanos. "O que se está discutindo agora é como esses homens chegaram aqui", diz Niède.
Modelo integrado
Assim como outros pesquisadores, o grupo binacional composto por um argentino e três brasileiros acredita ter a resposta para isso. Para elaborar sua explicação de como se deu a ocupação da América, eles se basearam em dados da genética, da morfologia craniana, da arqueologia e da linguística. O grupo analisou 10 mil amostras de dados genéticos e as características anatômicas de 576 crânios de populações extintas e atuais do continente americano. "Nosso trabalho é o primeiro em muitos anos a propor um modelo com essa integração de dados em um cenário coerente", diz Sandro Bonatto, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), um dos membros do grupo.
Por essa teoria, com o aumento gradual da temperatura após o auge do período glacial, as geleiras foram derretendo e abriram as portas da América para o povo que estava "preso" na Beríngia. Uma parte dele migrou pela costa do Pacífico e iniciou uma rápida colonização do continente, a princípio pelo litoral, tendo alcançado o sul do Chile mais de 12,3 mil anos atrás.
A diversidade morfológica desses migrantes explica por que, apesar de ser de fato mais parecida com os aborígines da Austrália ou com os africanos do que com os índios atuais, Luzia não representa uma onda migratória separada, que teria chegado ao continente antes dos asiáticos típicos (mongoloides). "Também sugerimos que mais recentemente, alguns milhares de anos atrás, deve ter ocorrido alguma migração entre a Sibéria e o Alasca, o que explicaria a morfologia altamente diferenciada dos esquimós americanos e asiáticos atuais", acrescenta Bonatto.
Seja como for, esses três modelos são tentativas diferentes de contar uma história que, como lembra Maria Cátira, é única. Quer dizer, o fato é que o homem chegou à América num dia do passado e a povoou. Resta descobrir quando, de onde e como veio. Na visão dos proponentes de cada uma das teorias, as outras têm falhas. Na opinião de Niède, nenhuma proposta, exceto a sua, explica a antiguidade de suas descobertas. À medida que as escavações progrediram no sítio da Pedra Furada, em São Raimundo Nonato, as datações foram ficando cada vez mais recuadas, chegando, no caso das ferramentas de pedra lascada, a 58 mil anos pela técnica do carbono 14. A fogueira mais antiga seria de 100 mil anos atrás, conforme estabelecido por meio de termoluminescência – recurso que no entanto é questionado. De acordo com Maria Cátira, a proposta de Niède não é aceita porque é frágil. "Não há ossos [fósseis] datados desse período, apenas supostos artefatos", critica. "É uma ideia extraordinária que precisa de provas incontestáveis para ser aceita. Como esses povos chegaram? Por onde? Onde estão as outras linhas de evidência? Onde estão os fósseis?"
Vencendo resistências
Neves, que por mais de duas décadas foi adversário intelectual e crítico contundente das ideias de Niède, hoje é menos cético em relação à proposta dela. Já admite que a arqueóloga possa ter de fato encontrado artefatos feitos pelo homem, mas no máximo com até 32 mil anos, que é o limite de datação precisa pelo método do carbono 14. "Estou 99,9% convencido disso, mas não tenho nenhuma explicação sobre como esses humanos chegaram aqui em data tão antiga", diz.
Quanto ao trabalho do quarteto argentino-brasileiro, Neves está preparando um artigo como resposta, a ser publicado no mesmo American Journal of Physical Anthropology, mas diz que não pode adiantar seus argumentos. Limita-se a afirmar que a proposta do grupo é uma tentativa precipitada de espremer os dados de várias ciências para encaixá-los no modelo da biologia molecular. "Eles sacrificam coisas essenciais das outras áreas para que caibam na teoria de migração única defendida pela maioria – não a totalidade – dos biólogos moleculares", diz.
O antropólogo argentino Rolando González-José, do Centro Nacional Patagónico, membro do quarteto, responde a Neves, mas evita polemizar. "Em nosso artigo não atacamos nenhum dos modelos anteriores, mas apenas os flexibilizamos", explica. "A teoria de Neves, por exemplo, deve ser modificada para que não se recorra a duas ondas migratórias, mas sim a uma população ancestral heterogênea somada a um fluxo genético circum-ártico."
Na verdade, o estudo dos quatro pesquisadores tenta conciliar as teorias anteriores existentes. "Nossa análise permitiu demonstrar que é compatível a história contada por ossos humanos antigos do continente (como os de Luzia) com os dados do DNA de povos indígenas modernos", explica outro integrante da equipe, Fabrício Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Controvérsias à parte, o que se tem como certo sobre a dispersão do Homo sapiens pelo planeta é que ele surgiu na África entre 200 mil e 100 mil anos atrás e dali saiu em época bastante remota em direção ao que hoje é a Europa e a Ásia, tomando rumos evolutivos diversos, que levaram às diferenças de aparência que se podia notar entre Colombo e os povos que o receberam nas praias ensolaradas do Caribe.
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