Nascimento, nome e caráter de Artaxerxes. II. É declarado sucessor de Dario. III. É coroado. IV. Como Oiro se prepara para a revolta. V. Liberalidade e bondade de Artaxerxes. VI. Ciro pede socorro aos acedemônios. VII. Ciro parte para a guerra contra Artaxerxes. VIII. Artaxerxes marcha ao seu encontro. IX. Espanto do exército de Ciro, à sua aproximação. X. Como Clearco causa a derrota de Ciro. XI. Ciro mata Artagerse. XII. Morte de Ciro. segundo a narração de Dinon. XIII. Segundo a narração de Ctésias. XV. Artaxerxes manda cortar a cabeça e a mão direita de Ciro. XVI. Contradição entre as palavras de Ctésias e as de Dinon e de Xenofonte. XVII. Presentes de Artaxerxes aos que tinham matado ou ferido a Ciro. XVIII. Vingança de Parisate contra eles. XXII, Morte de Clearco e de outros generais gregos. XXIV. Parisate faz morrer Estatira. XXV. Artaxerxes envia Parisate exilada a Babi lônia. XXVI. Agesilau leva a guerra à .Ásia. XXVII. Artaxerxei subleva a Grécia contra os lacedemônios à força de dinheiro. XXVIII. Paz de Antalcidas. XXIX. Deíxa-se êle morrer de fome. XXX. Ismênias e Pelópídas na corte de Artaxerxes. XXXI. Pre.sni tes magníficos de Artaxerxes a Timágoras. XXXII. Artaxerxes reconcilia-se com sua mãe Parisate. XXXIII. Casa-se com Atossa. XXXIV. Empreende a guerra contra os cadusianos. XXXV. Foz a paz com eles pela habilidade de Tiribaso. XXXVI. O luxo não tinha enfraquecido Artaxerxes. XXXVII. Toma-se desconfiado e cruel. XXXVIII. Declara a Dario, seu sucessor. XXXIX. Dario pede a seu pai sua concubina Aspásia. Artaxerxes a faz sacerdotiza de Diana Anitis. XL. Tiribaso irrita o ressentimento de Dário. Porque. XLI. Meios que Tiribaso emprega. XLII. Dário conspira com êle contra seu pai. XLIII. Descoberta da conjuração. Morte de Tiribaso. XLIV. Dário é decapitado. XLV. Morte de Ariaspes e de Arsames. XLVI. Morte de Artaxerxes.
Desde o primeiro ano da 81.ª olimpíada, até o terceiro da 104.ª, antes de Jesus Cristo, ano 362.
Plutarco – Vidas Paralelas
Baseado na tradução em francês de Amyot, com notas de Clavier, Vauvilliers e Brotier. Tradução brasileira de Padre Pedroso. Fonte: Ed. das Américas
ARTAXERXES
Artaxerxes (1), o primeiro destes nomes, entre os reis da Pérsia, príncipe benigno e magnânimo, como nenhum outro em sua descendência, foi apelidado Mão-longa, porque tinha a mão direita mais comprida que a esquerda, era filho do rei Xerxes: mas o segundo, do qual pretendemos escrever agora, foi apelidado Mnemon, isto é, grande memória, e era filho da filha do primeiro; pois o rei Dário e sua mulher Parisate tiveram quatro filhos, do sexo masculino, dos quais o primogénito foi este Artaxerxes, o segundo foi Ciro e dois outros mais moços, Ostanes e Oxartes. Ciro trouxe desde o princípio o nome do primeiro antigo Ciro, que em língua persa significa o sol: mas Artaxerxes antes chamava-se Arsicas, embora Dmon escreva que ele se chamava Oarses: todavia não é verossímil que Ctésias, ainda que seus livros estejam cheios de fábulas de toda a espécie, não somente incríveis, mas mesmo loucas e tolas, tenha ignorado o nome do príncipe com o qual ele vivia, ao qual servia (2) e seguia ordinariamente, ele, sua mulher e seus filhos. Ciro desde a mais tenra idade foi de natureza ardente e veemente e Artaxerxes, ao contrário, mais doce e mais ponderado em todas as suas açoes; suas paixões e afetos eram mais moderados e menos violentos. Teve como esposa uma honesta e linda senhora, que ele desposou por ordem de seu pai e de sua mãe, e depois a conservou contra vontade deles e até mesmo com sua proibição. Pois o rei Dário, seu pai, tendo feito morrer o irmão dela, queria que também ela morresse: mas tanto ele pediu a sua mãe e tanto fez com suas lágrimas, orações e rogos, para com ela, que com grande dificuldade obteve, não somente que ela não morresse, mas ainda que não se separasse dele. No entretanto, a mãe tinha mais afeto a Ciro do que a ele, e desejava que ele fosse rei depois da morte de seu pai.
(l) Artaxerxes ou Artoxerxes é evidentemente o mesmo nome. |Veja-se a série dos reis da Pérsia nas Observações no vol. XV.
II. Ciro estava no governo das províncias marítimas da Ásia, quando lhe determinaram que voltasse imediatamente à corte, porque seu pai adoecera da mesma doença de que depois veio a falecer; ele para lá se dirigiu com grande esperança de que sua mãe teria feito que seu pai o declarasse
DÁRIO
por testamento seu sucessor no remo da Pérsia: ainda mais, porque igualmente Parisate alegava uma razão de certo valor e da qual o velho Xerxes se tinha uma vez servido, em caso semelhante, por conselho de Demarato: dizia ela ter amamentado Arsicas antes que Dário, seu esposo, fosse rei, e Ciro depois que ele tinha recebido a coroa: todavia não o conseguiu, pois, filho mais velho, Arsicas, foi declarado sucessor no reino da Pérsia, e cognominado Artaxerxes e Ciro, governador da Lídia e lugar-tenente do rei em todas as províncias baixas e marítimas da Ásia.
III. Alguns dias depois da morte de Dário, o novo rei Artaxerxes foi a Pasargades, para aí ser sagrado pelos sacerdotes da Pérsia. Pasargades é um templo dedicado a uma deusa das armas, Minerva, como eu penso, e é necessário que o rei que nele entra, para ser consagrado, se despoje de suas vestes, e vista a que o velho Ciro usava antes de ser rei; ainda é necessário que ele coma uma torta feita de figos com terebinto e que beba uma bebida composta de vinagre e leite. Se há ainda outras cerimonias secretas que ele tem que observar, somente os sacerdotes é que o sabem, e mais ninguém. Quando, porém, Artaxerxes estava para realizai todas estas cerimonias, Tissafernes veio ter com ele, e trouxe-lhe um dos seus sacerdotes, que tinha sido preceptor e mestre de Ciro em sua infância, e lhe ensinara a arte da magia, e por esse motivo devia estar, tanto quanto os outros, ou ainda mais, admirado de que ele não tivesse sido declarado rei. Isso foi motivo de que se desse mais crédito às acusações que veio fazer contra ele: pois o acusou de ter conspirado contra a pessoa do rei, seu irmão, e de ter deliberado matá-lo, à traição, dentro do templo, quando ele se despisse de suas vestes. Alguns dizem que por esta simples acusação verbal Ciro foi preso. Outros escrevem que ele entrou no templo e lá, escondendo-se, foi depois descoberto e aprisionado pelo sacerdote; mas quando o quiseram fazer morrer, sua mãe tomou-o nos braços, enrolou-lhe o pescoço com suas tranças do cabelo e o ligou estreitamente a si mesma, chorando com tanto sentimento, clamando e suplicando ao rei, seu filho, com tanta insistência, que lhe salvou a vida, e o fez recolocar em sua posição de governo: ele, porém, não se contentou com isto,. e não gravou tanto na memória a graça que o rei, seu irmão, lhe havia concedido, dando-lhe a vida, como o despeito, por tê-lo feito aprisionar: de maneira que, por este episódio infeliz, êle desejou ainda mais, e mais do que nunca, fazer-se rei.(2) Leia-se: e do qual êle era o médico, bem como de sua esposa, de sua mãe e de seus filhos.
IV. Alguns escreveram que êle tomou as armas e se revoltou contra seu irmão, porque êle não tinha o necessário para manter o decoro de sua casa e de sua despensa ordinária: mas é tolice dizer-se isso: pois quando êle não tivesse tido outro meio, senão sua mãe, êle podia obter dela tudo o de que necessitasse e que lhe saberia pedir: e para mostrar que êíe por si mesmo era bastante rico, não é necessário senão citar os soldados estrangeiros que ele mantinha às suas expensas, em vários lugares, como o escreve Xenofonte; êíe não os reuniu todos de uma vez, porque desejava conservar oculto o seu empreendimento, o mais possível, mas tinha servidores e amigos que os recrutavam em diversos lugares e em várias ocasiões: e tinha também sua mãe que, estando junto do rei, afastava as suspeitas que se levantavam contra êle: e êíe também, por sua parte, enquanto fazia os seus preparativos, escrevia muito humildemente a seu irmão, pedindo-lhe alguma coisa, e às vezes contra-acusando e acusando também Tissafernes, a fim de que o rei compreendesse que era a êle que eles queriam e contra quem toda sua inveja e ira se dirigiam: como a natureza do rei fosse um tanto pesada e lenta por si mesma, o povo isso tomava por um proceder benigno e bondoso.
V. É verdade que quando cingiu a coroa êle seguiu bastante a bondade e a benignidade do primeiro Artaxerxes, do qual trazia o nome: êle escutava mais de boamente aqueles que tinham que tratar com êle, honrava e recompensava mais largamente os que o haviam merecido, e mandava castigar os delinquentes com tal moderação, que dava bastante a conhecer que não era por vingança nem por vontade desordenada de ultrajar a alguém que ele o fazia (3): quando recebia presentes, não mostrava menos contentamento e satisfação para com os que lho davam, do que êles mesmos, e dava com tanta franqueza e bondade: pois tudo o que se lhe apresentavam, por pequeno ou insignificante que fosse, ele não o desprezava, mas o aceitava de boa vontade. Como ele disse um dia de um certo Romises (4) que lhe fazia presente de uma romã bela, grande e vermelha: "Pelo sol (5) — disse ele — este homem em pouco tempo faria de uma aldeia uma grande cidade, que se lhe desse para governar". Uma outra vez, um modesto operário, vendo que cada qual oferecia ao rei algum presente, isto ou aquilo, quando ele passava, e nada encontrando no momento à mão em seu caminho, para lhe oferecer, correu ao no, encheu o côncavo da mão de água e foi levá-la a ele. O rei Artaxerxes apreciou tanto este ato que lhe enviou, dentro de uma taça de ouro maciço, mil dáncas, que eram moedas de ouro assim chamadas porque tinham nelas impressas a imagem de Dário.
(3) Esta passagem no original, é-me suspeita. — Amyot. Não sei por que. O pensamento é bastante claro.
(4) Outros lêem aqui Omisés.
(5) Por Mitras; é o nome do sol, entre os persas.
E a um lacedemômo chamado Euclidas, que lhe dizia atrevidamente palavras injuriosas, conten-tou-se em lhe responder por um de seus generais: "Podes dizer-me o que te aprouver, mas a mim, que sou rei, é-me permitido tanto dizer como fazer o que me agrada". Outra vez, numa caçada, Tiribazo mostrou-lhe a veste toda rasgada: "Pois bem, — disse ele — que quer que eu faça?" Tiribazo lhe respondeu: "Majestade! Tome uma outra e dê-me essa que tem no corpo". O rei fê-lo e disse: "Tinbazo, eu te dou esta minha veste, mas eu proibo-te usá-la". Tinbazo tomou-a e não se inquietou por o rei tê-lo proibido usá-la, não que ele fosse homem de má vontade, mas somente irrefletido e temerário, que nada temia: vestiu imediatamente a veste real e, não contente com isso, adornou-se com jóias de ouro, que somente os reis costumam usar, e vários adornos de mulheres, de maneira que todos os da corte murmuravam, porque era coisa proibida pelas leis da Pérsia: mas o rei somente riu-se, e disse-lhe: "Eu te permito usar esses adornos de ouro, à maneira das mulheres, e essa veste real, à maneira de um louco". Além disso, sendo costume na Pérsia que jamais uma pessoa se sentasse à mesa do rei, a não ser sua mãe ou esposa, sentando-se a mae acima e a esposa abaixo, Artaxerxes fêz sentarem-se com êle seus dois irmãos Ostanes e Oxatres: o que mais ainda apreciaram os persas, foi que êle quis que sua esposa, que se chamava Estatua, -viajasse sempre em carro descoberto, e que fosse visitada e saudada por outras senhoras do país: isso fêz que o povo muito o amasse.
VI. É verdade que aqueles que desejavam novidades e que não podiam ficar sossegados andavam dizendo que os negócios exigiam um príncipe como Ciro, que era liberal de natureza, amava as armas, e fazia grandes bens aos seus servidores, e que a grandeza do império da Pérsia tinha urgente necessidade de um rei que tivesse um coração nobre e fosse desejoso de glórias e de honras: de medo que Ciro empreendeu a guerra contra o rei, seu irmão, não somente animado pelos que estavam no país baixo, junto dele, mas também nas províncias altas, junto do rei, e sobre isso escreveu aos lacedemônios, pedindo-lhes que lhe enviassem soldados, prometendo-lhes, aos que viessem a pé, dar-lhes cavalos, e, aos que já os tinham, dar-lhes carros, e aos que tinham propriedades dar-lhes aldeias inteiras, e, aos que já tinham aldeias, dar-lhes cidades. Numa palavra, que, quanto ao soldo ordinário dos que pegassem em armas para ele, pagar-lhes-ia, não por conta, mas segundo a medida: falando de si mesmo, dizia, vanglonando-se, que tinha um coração generoso, mas que seu irmão (6), que suportava todas as necessidades com muito mais ânimo do que ele, que entendia mais de magia, que bebia mais vinho e o tolerava mais, e que o rei, seu irmão, ao contrário, era delicado e tão covarde que, quando ia à caça, a custo montava num cavalo, e, à guerra, ia num carro. Os lacedemônios, tendo recebido suas cartas, enviaram (7) um bilhete a Clearco (8), pelo qual lhe ordenavam que obedecesse a Ciro em tudo o que ele lhe ordenasse.
(6) Leia-se: que ele era mais filósofo do que ele, que entendia mais de magia.
(7) Um bastão cilíndrico.
(8) Veja as Observações.
VII. Assim, partiu Ciro para fazer guerra ao próprio irmão, tendo reunido grande número de combatentes das nações bárbaras e gregos, pouco menos de treze mil, e dando a entender, ora uma coisa, ora outra, porque reunira tanta gente: mas não pôde por muito tempo dissimular, nem ocultar a sua intenção: Tissafernes, em pessoa, foi à corte levar a notícia do empreendimento, pelo que todo o palácio real muito se alvoroçou. Lançava-se a maior parte da culpa desta guerra à mãe do rei e eram seus amigos e servidores muito suspeitos de ter tido entendimentos com Ciro; o que mais aborrecia, porém, a Parisate, mãe do rei, era a rainha Estatira, a qual muito se afligia por ver esta guerra contra seu marido, e não fazia outra coisa senão gritar: "Onde está a fé que juraste? Onde estão as orações pelas quais salvaste da morte aquele que tinha atentado e conjurado contra a própria pessoa de seu irmão? e tendo-Ihe salvo a vida, não és causa desta guerra e de todos estes males e aflições em que agora nos encontramos?" Por estas queixas e recriminações, Parisate, que era mulher áspera e vingativa, e que guardava ódio, se pôs a querer mal a Estatira, tão cruelmente, que procurou, desde então, por todos os meios, fazê-la morrer: e diz o historiador Dinon que foi durante a mesma guerra que ela executou a sua má intenção. Mas Ctésias escreve que foi depois: e é mais verossímil que ele, que então residia ordinariamente na corte do rei da Pérsia, tenha sabido, com certeza, qual o tempo em que ela executou sua emboscada e sua traição e não há outro motivo para que ela tenha diferido o seu crime para outro tempo, que não aquele em que foi cometido, ainda que em vários outros lugares ele tenha tido o hábito de se afastar da verdade para dizer mentiras e ínverdades, à vontade. Por isso coloquemos os acontecimentos desse fato, na mesma ordem do tempo e do lugar em que ele o colocou.
VIII. Quando Ciro começou a se aproximar da região onde seu irmão estava, deram-lhe a notícia e correu mesmo a voz no seu acampamento, que o rei nao tinha deliberado combater tão depressa, nem vir à batalha contra ele, e que tinha proposto retirar-se para longe da Pérsia, para aí esperar que suas forças se reunissem de todas as partes. E que isso era verdade, o sabemos, porque o rei fez abrir através o campo uma trincheira de dez braçadas de largura (9) e o mesmo de profundidade, na extensão de vinte e cinco léguas de comprimento, ele a abandonou e deixou Ciro apoderar-se dela; penetrou depois, sem encontrar resistência alguma, até bem perto da mesma cidade de Babilónia. Todavia, Tinbazo, como se diz, foi o primeiro que teve a ousadia de lhe dizer que não devia fugir assim da batalha, nem ir se esconder no fundo da Pérsia, abandonando como presa ao seu inimigo os reinos da Média, de Babilónia e de Susa: mesmo porque ele tinha tantos combatentes já prontos, quantos seu inimigo, e inúmeros generais mais experimentados, e melhores para o aconselhar e combater por ele. Estas palavras de Tinbazo fizeram-no mudar de ideia, e de intenção, e tomar a deliberação de combater o mais depressa possível. Posse então imediatamente a caminho, para enfrentar o inimigo, com novecentos mil combatentes, muito bem armados e equipados, e marchando em boa ordem.
(9) Xenofonte, que a viu, diz, cinco de largo e três de profundidade.
IX. Isto, à primeira vista, espantou e perturbou muito os homens de Ciro, quando os viram tão bem organizados e armados diante deles, que estavam esparsos cá e lá em desordem, desarmados, porque confiavam demasiado em si mesmos, e desprezavam o inimigo: de maneira que Ciro teve muita dificuldade em organizá-los para a batalha no meio do tumulto e dos clamores: mais que todos, porém, foram os gregos quem mais estupefatos se mostraram quando viram o exército do rei marchar com tanta ordem, pois eles esperavam ver muita desordem, grande confusão numa tão grande multidão de homens, e julgavam que haveria muito alando e que não se entenderiam uns com os outros; mas, muito ao contrário, tudo estava muito bem ordenado (10); antes da batalha ele tinha disposto seus melhores carros de guerra, armados de foices, aos quais estavam atrelados os cavalos mais fortes e mais velozes que havia em todo o exército, esperando, pela impetuosidade de sua corrida, que eles abririam e romperiam as linhas dos inimigos, antes que eles pudessem alcançar e atacar as suas. X. Mas, esta batalha foi descrita por vários historiadores, especialmente por Xenofonte, que por assim dizer, no-la faz ver a olho e a representa aos que o lêem, não como coisa passada, mas presente, impressionando de tal modo, que parece que estão presentes à mesma, e no meio do perigo tão claramente o descreve; não seria, pois, conveniente que eu quisesse descrevê-la, senão apenas algumas particularidades dignas de serem mencionadas, e que ele por acaso omitiu, como o lugar onde se deu a batalha, que se chamava Cunaxa, longe de Babilónia, pouco mais de trinta léguas, e que antes da batalha Clearco aconselhou a Ciro que se conservasse atrás do batalhão dos gregos, sem arriscar, porém, a sua pessoa entre os primeiros: e que Ciro lhe respondeu: "Que dizes, Clearco? Queres que eu, que procuro fazer-me rei, me mostre indigno de sê-lo?" Ciro, porém, cometeu a falta de não ser cuidadoso quanto a si mesmo, mas muito temeraria-mente se lançou no perigo; o mesmo Clearco disse-lhe então outra frase não menos pesada, ou talvez mais ainda que a primeira, quando ele não quis alinhar e dirigir os homens ao lugar da batalha dos inimigos, onde estava a pessoa do rei, mas os foi reunir ao longo do rio, de medo que eles fossem envolvidos pela retaguarda; pois, se ele queria olhar assim de perto, e prover em todos os pontos a sua segurança a fim de não ser atacado de algum modo, ele não devia ter-se movido de casa. Mas, depois de ter tanto caminhado, desde a região baixa da Ásia até o lugar onde combateram, sem que ninguém os impedisse e obstaculizasse, somente para pôr a Ciro no trono real de seu pai, ir procurar um lugar de batalha, não onde pudesse prestar mais serviço ao senhor que o assalariava, mas onde pudesse combater mais à vontade e com menor perigo, era o mesmo que, se, por falta de coragem, ele tivesse perdido o senso do necessário, ou por deslealdade tivesse covardemente abandonado a empresa; pelo que, pois, sendo verdade que as tropas que estavam perto do rei jamais tinham sustentado o ataque dos gregos, e que derrotadas elas, o rei teria sido morto no campo de batalha ou obrigado a fugir, e Ciro teria ganho a jornada, e por essa vitória teria sido criado rei, o êxito da batalha o mostra e o testemunha assaz evidentemente. Por isso, ao invés deve-se dar a culpa da derrota desta luta à excessiva circunspeção de Clearco, do que à temeridade de Ciro: pois se o mesmo rei Artaxerxes tivesse escolhido de sua vontade um lugar no qual os gregos se devessem colocar, para menos prejuízo lhe causar, ele não teria podido encontrar um outro mais adequado e a propósito, do que aquele, que estava mais longe dele e de onde os gregos não tivessem podido nem ver, nem ouvir o que se fazia no lugar onde ele estava, como de fato sucedeu: pois Ciro foi feito em pedaços antes que se tivesse podido valer da vitória de Clearco, tanto ele estava longe dele: e ainda mais, Ciro soube muito antes do fato, o que era mais útil de se fazer; pois ele ordenou a Clearco que se alinhasse com sua companhia no meio da batalha e Clearco lhe respondeu, que ele de nada se inquietasse e que ele dana a ordem e tudo sairia bem. Tendo dito isto, depois, tudo ele pôs a perder, pois no lugar onde estavam os gregos, eles romperam os bárbaros que encontraram na frente, diante deles e os perseguiram quanto quiseram.
(10) Leia-se: e êle tinha sabiamente oposto à falange dos gregos os melhores e os mais fortes de seus carros armados de foices, esperando que. etc…
XI. Ciro, tendo montado em um cavalo fogoso e vivo, mas difícil de governar, teimoso e se-mi-selvagem, ao qual chamavam de Pasacas, como diz Ctésias, o governador da província dos cadusianos, que se chamava Artagerse o avistou de longe e logo correu em sua direção clamando em altas vozes: "Ó traidor, o mais desleal e o mais insensato dos homens que jamais existiram sobre a terra, desonras o nome de Ciro, o mais belo dentre os persas, por trazeres aqui os gregos, valorosos combatentes, a uma empresa tão infeliz para saquear os bens dos persas, na esperança de arruinar e derrotar teu soberano senhor e teu próprio irmão, que tem inúmeros servidores e escravos, mais homens de bem do que tu em toda a tua vida: e tu o conhecerás aqui por experiência, presentemente, pois deixarás a vida antes que possas ver a face do rei, teu irmão". Dizendo estas palavras arremessou-lhe com toda a sua força um dardo que tinha na mão: mas a couraça de Ciro foi tão forte que ele não a atravessou: todavia o golpe foi tão violento que o fez cambalear sobre o cavalo. Feito isto ele virou rapidamente seu cavalo, e então Ciro atirou-lhe por sua vez um dardo com tanta pontaria que o atingiu no osso que une as duas espáduas, atravessando-lhe o pescoço de lado a lado.
XII. Todos os historiadores estão bem de acordo em narrar este fato, isto é, que Ciro matou imediatamente a Artagerse, como dissemos: quanto à morte de Ciro, porém, pois que Xenofonte não diz sequer uma palavra nem de passagem, porque não estava presente no momento e no lugar onde ele foi morto, não será mal descrevê-lo do modo como o faz Dinon, e outrossim Ctésias; Dinon escreve que Ciro, depois de ter matado Artagerse, foi furiosamente atacar a tropa que estava mais próxima da pessoa do rei, e que ele alcançou de bem perto, a ponto de matar o mesmo cavalo em que êle montava, de modo que ele caiu por terra; mas Tiribazo que Já se encontrava também, montou-o imediatamente em outro, dizendo-lhe: "Majestade, lembre-se deste dia, pois êle não merece ser esquecido" . Ciro, fustigando novamente seu cavalo atirou uma segunda seta, com a qual atingiu Artaxer-xes: mas à terceira carga, o rei não podendo mais se conter, disse aos que estavam em redor dele, que êle preferia morrer do que suportá-lo por mais tempo; e cavalgou então ao encontro de Ciro, o qual se lançava furiosamente, de cabeça baixa, no meio de inúmeros golpes, que lhe desferiam de todos os lados, e lhe atirou o seu dardo: assim fizeram todos os que estavam mais perto da sua pessoa, de modo que nessa confusão Ciro foi atirado ao chão. Uns dizem que foi pelo golpe que lhe desferiu o rei, seu irmão, outros dizem que foi um soldado da região da Cana, ao qual o rei como recompensa deu mais tarde o privilégio de levar em todas as batalhas, diante da primeira fileira um galo de ouro preso na ponta de um dardo, porque os persas chamam aos da região da Caria, de galos, porque eles costumam levar, na guerra, cristas semelhantes às dos galos, em seus elmos.
XIII. Eis como Dinon a descreve: mas Ctésias, para estender um pouco as palavras, diz que Ciro depois de ter matado a Artagerse, cavalgou diretamente contra o rei, e o rei contra êle, sem dizer uma só palavra nem um, nem outro. Arieu, um dos amigos de Ciro, atirou o primeiro dardo, mas não atingiu o rei: o rei, então com toda a sua força, lançou seu dardo, julgando ferir a Ciro: mas errou, e, no lugar dele, feriu Tissafernes (11), um dos mais valentes e dos mais leais servidores que Ciro tinha junto de si, e com esse golpe o atirou morto, por terra. Ciro então atirou-lhe um dardo, que o atingiu no estômago, tão fortemente que forçou a couraça, e entrou uns dois dedos na carne. Ante esse golpe, o rei caiu por terra pelo que a maior parte dos que estavam perto dele se assustou e fugiu: no entretanto, êle ainda levantou-se com o auxílio dos que estavam junto dele, entre os quais o mesmo Ctésias diz que estava e retirou-se a uma pequena colina ali bem perto, para reanimar-se. No entretanto, o cavalo de Ciro, que era ardente, como dissemos, e tinha muito má boca, levou-o contra sua vontade bem longe de seus homens mesmo no meio de seus inimigos, sem que ninguém o conhecesse porque já era noite, e seus homens não podiam procurá-lo: êle, porém, confiando em ter já ganho a vitória, pois era ardente de natureza, cheio de ânimo e de coragem, começou a andar cá e lá no meio dos inimigos, gritando em língua per sa: "Salvem-se! Pobres homens, salvem-se!" Ouvindo isto alguns afastavam-se para deixá-lo passar, íazendo-lhe reverência: mas, por infelicidade, sua tiara, que era um chapéu alto, real à maneira dos persas, caiu-Ihe da cabeça: e então um jovem persa, chamado Mitrídates, passando ao lado dele deu-lhe um golpe de dardo na fronte, perto dos olhos sem nem ao menos saber quem ele era. Imediatamente da ferida correu abundantemente o sangue, pelo que Ciro fora de si de espanto, caiu por terra e seu cavalo fugiu: mas a sela que estava sobre ele caiu por terra ensanguentada e um pajem de que o havia ferido a apanhou.
(11) Não sem dúvida aquele que o tinha denunciado a Ar-taxerxes, mas um outro, com o mesmo nome, a menos que se leia aqui Satiferne, como se encontra em alguns manuscritos.
XIV. Pouco depois, Ciro tendo voltado do seu espanto, alguns de seus eunucos, isto é (12), criados de quarto, castrados, que tinham permanecido perto dele, levantaram-no para montá-lo em outro cavalo, e tirá-lo daquele meio confuso: mas ele não podia ficar a cavalo; tentaram levá-lo caminhando mesmo a pé, e os eunucos tomaram-no por debaixo do braço, ainda atordoado como ele estava, não podendo ficar de pé, embora pensasse ter ganho a batalha, porque via os inimigos fugindo em redor dele, os quais gritavam: Viva o rei Ciro! e pediam-lhe que os perdoasse e tivesse compaixão deles. Mas, nesse ínterim, alguns pobres homens da cidade de Cauno que seguiam pelo campo do rei, ganhando a vida na execução dos mais baixos serviços que o homem pode fazer, esses pobres homens, por acaso, uniram-se ao grupo onde estava Ciro, pensando, que eram homens do rei, mas por fim perceberam pelo manto vermelho que usavam sobre suas armas, que eram inimigos, porque os do rei os usavam branco, e um dentre eles teve a ousadia de. desferir em Ciro um golpe de espada por trás, sem saber que era Ciro. O golpe atingiu o jarrete e cortou-lhe o nervo, de modo que ele caiu por terra, e caindo, por infelicidade bateu com a fenda da fronte em uma pedra, tão fortemente que morreu no mesmo instante. Assim descreve Ctésias (13) onde vemos que parece que ele lhe corta a garganta com uma espada recurvada, tendo o corte inutilizado, tanto lhe custou fazê-lo morrer.
(12) Isto não está no grego e não é verdade.
XV. Logo depois que ele morreu, Artasiras, um dos eunucos de Artaxerxes, ao qual na corte chamavam de olho do rei, passando por lá a cavalo, reconheceu os eunucos de Ciro, que se mostravam vivamente chorosos, e lamentavam a morte de seu senhor. Perguntou então àquele em quem mais Ciro confiava: "Quem é esse morto, ó Pariscas, que tu choras com tanto sentimento?" Pariscas respondeu-lhe: "Não vês, Artasiras, que é Ciro que acaba de morrer?" Artasiras ficou estupefato quando o viu, consolou o eunuco, aconselhando-o a ficar perto do corpo para guardá-lo; ele, no entretanto, galopando a toda brida, foi ter com o rei Artaxerxes que pensava ter perdido tudo, e estava sofrendo muito, quer pela sede que o devorava, quer pelo golpe que havia recebido no estômago. Chegando ao rei, o eunuco, tudo lho narrou com alegria, de como havia visto Ciro já cadáver; com isso rejubilou-se tanto o rei que teve vontade de ir ele mesmo imediatamente ao lugar onde Ciro estava, para vê-lo, e ordenou a Artasiras, que o levasse lá: mas depois de ter pensado um pouco melhor, aconselharam-no de não ir êle mesmo, em pessoa, pelo temor e perigo dos gregos, que se dizia terem ganho tudo, e estarem ainda no campo, assaltando e matando, mas antes, enviar um grupo de homens que poderiam mais facilmente informar-se e trazer-lhe notícias, com certeza se era ou não verdade. Foi aceita esta proposta, e foram mandados uns trinta homens com muitas tochas e lanternas: no entretanto, um dos eunucos, chamado Satíbarzanes, corria de cá para lá para ver se encontrava um pouco de água para o rei, que parecia querer morrer de sede, pois ali onde estavam não havia uma gota sequer de água, e estavam ainda muito longe do seu acampamento. Depois de ter corrido bastante, por fim encontrou aqueles pobres diabos caunianos, um dos quais levava dentro de um saco de pele de cabra mais ou menos oito copos de água, já estragada e imprópria para se beber: le-vcu-a assim mesmo, incontinenti, ao rei, que a bebeu toda, e depois de a ter bebido, o eunuco perguntou-lhe se aquela água ruim não lhe havia feito mal, e o rei jurou-lhe por todos os deuses que jamais havia bebido vinho tão delicioso nem água tão fresca e pura como aquela, tanto prazer lhe havia causado: "E portanto, — disse ele — rogo aos deuses, se não puder encontrar aquele que ta forneceu, para recompensá-lo, que o façam feliz e contente’ . Tendo ainda na mente esta resolução, voltaram os trinta homens com suas tochas e todos com o semblante alegre, confirmaram-lhe a boa-nova, que ele jamais havia esperado, e já de todos os lados, se havia reunido um número tão grande de soldados, em redor dele e muitos outros ainda vinham em fila, que ele começou a convencer-se de que era de fato verdade. Desceu então à planície, com muitas tochas e lanternas, e foi ao lugar onde ainda estava estendido por terra o corpo de Ciro, onde, segundo um antiga determinação e lei da Pérsia, contra os criminosos, de lesa-majestade, ele mandou cortar-lhe a cabeça e a mão direita, depois mandou trazer-lhe a cabeça e tomando-a pelos cabelos que Ciro usava longos e espessos, mostrava-a ele mesmo aos que ainda fugiam e duvidavam, para convencê-los da realidade e eles se admiravam, faziam-Ihe reverência, e reuniam-se à tropa do rei, de modo que em poucas horas, ele pôde reunir bem setenta mil combatentes, com os quais retomou o caminho para o seu acampamento.
(13) Entretanto o autor do primeiro livro da retirada dos dez mil, conhecido sob o nome de Xenofonte, e que Plutarco cita como sendo dele, está quase inteiramente de acordo com Dinon, e toma como garantia, a Ctésias, que estava presente, diz êle.
XVI. É verdade que Ctésias diz que ele não tinha quatrocentos mil combatentes ao todo, mas Dinon e Xenofonte dão-lhe muito mais: quanto ao número de mortos Ctésias diz que haviam dito ao rei que eram mais ou menos nove mil, mas que lhe parecia que, ao vê-los, eram não menos de vinte mil: quanto a esta afirmação, porém, poder-se-ia discutir num e noutro ponto: mas quanto ao resto, sobre no que diz que o rei o mandou com Failo, o Zacintiano, aos gregos e a alguns outros ainda, isto é mentira certa: pois Xenofonte sabia muito bem que Ctésias estava a serviço do rei, visto que ele faz menção disso em alguns lugares da sua história, e se êle tivesse sido deputado pelo rei para ir levar aos gregos palavras de tão grande importância, é verossímil que Xenofonte não o teria calado nem ocultado, onde êle cita apenas Failo (14), o Zacintiano: mas Ctésias, como se nota muitas vezes em seus escritos, era homem muito ambicioso e apoiava os lacedemônios, principalmente Clearco e procurando sempre a ocasião, fazendo mesmo apa-recer de propósito, para falar de si mesmo, em seu proveito, da Lacedemônia, como de Clearco.
(14) Palleno, segundo Diodoro de Sicília; Paleno, segundo Xenofonte .
XVII. Depois desta batalha, o rei Artaxer-xes enviou belos e ricos presentes ao filho de Artagerse, que Ciro tinha matado com suas próprias mãos, e honrou assim a Ctésias, ele o diz e a vários outros, e não se esqueceu de mandar procurar o pobre homem cauniano que lhe havia dado a água para que ele bebesse naquela difícil contingência, quando apertado pela sede: e tendo-o encontrado, fê-lo de pobre e desconhecido, que era antes, homem rico e nobre. Usou ainda de um sensato e reto modo de julgar, no castigo daqueles que tinham faltado ao próprio dever, como um certo medo, chamado Arbaces, o qual no dia da batalha tinha fugido do lado de Ciro, depois, quando soube que ele tinha sido morto, voltara para o primeiro lado: julgando que era, antes, fraqueza e covardia, do que traição ou má vontade, que o tinha feito agir assim, condenou-o a trazer sobre o pescoço uma meretriz completamente nua, por toda a praça, durante um dia. E a um outro, que além de se ter ido entregar aos inimigos, ainda se vangloriava mentirosamente que tinha matado dois, fêz-lhe atravessar a língua com três golpes de sovela em três lugares. Por fim, sendo de opinião que êle mesmo tinha matado a Ciro, com suas próprias mãos, e querendo que todos o pensassem e o dissessem também, enviou presentes a Mitrídates, que o tinha ferido na fronte, por primeiro, e ordenou àquele que os levava a ele, de lhe dizer de sua parte: "O rei envia-te presentes, porque por primeiro tendo encontrado a sela do cavalo de Ciro tu a trouxeste a ele". O Cariano também, que lhe havia cortado o jarrete, depois do que ele caiu por terra, também pediu o seu presente, que o rei lhe deu, e mandou dizer-lhe, por aquele que lho entregou: "O rei te faz este presente, porque foste o segundo que lhe levou a boa notícia; porquanto Artasiras foi o primeiro e tu, o segundo, que lhe anunciou a morte de Ciro".
XVIII. Mitrídates, porém, ainda que tivesse ficado bastante descontente com estas palavras, contudo retirou-se sem nada dizer, no momento, em contrário: mas o infeliz Cariano se deixou levar pela sua loucura a uma paixão assaz comum aos homens: pois a alegria que sentiu repentinamente, como é natural, de ver diante de si o belo e rico presente que o rei lhe enviava, o exaltou e cegou até a fazê-lo aspirar e pretender coisas maiores do que as que o seu estado e condição o comportavam: assim, não quis aceitar o presente que o rei lhe mandava, pelo motivo de ele lhe ter anunciado a morte de Ciro, mas começou a se irritar, gritando e chamando os deuses como testemunhas que unicamente ele, somente ele, e nenhum outro, tinha matado a Ciro, e que assim se lhe fazia grande injustiça querendo-se privá-lo dessa glória. O rei tendo ouvido isso, irritou-se, e ordenou que imediatamente lhe cortassem a cabeça: mas Pansate, sua mãe, estando presente a esta ordem, dísse-lhe: "Não faças morrer assim, este malvado, deixa-me a mim, eu o castigarei bem por ter se atrevido a falar com tamanha ousadia e temeridade". O rei Jhe permitiu e ela mandou prender o infeliz Cariano pelos executores da alta justiça, e o fez martirizar durante dez dias, continuamente, e no fim dos dez dias lhe fez arrancar os dois olhos da cabeça, e finalmente mandou despejar-lhe metal derretido dentro dos ouvidos até que nesse tormento ele morreu.
XIX. Mitrídates também morreu pouco tempo depois, miseravelmente, por uma mesma loucura: pois fora convidado a um banquete, ao qual estavam lambem presentes os eunucos do rei, e sua mãe, e lendo ele vindo, sentou-se à mesa com a mesma veste de ouro que o rei lhe havia dado. Quando se chegou ao fim do jantar que começaram a se trocar os brindes, um dos eunucos de Parisate, se pôs a dizer: "O rei deveras te deu esta linda veste, Mitrídates, e belas correntes e colares de ouro, e também a cimitarra que ele te deu é assaz rica e suntuosa: de modo que quando tu a tens ao teu lado, ninguém há que não te julgue feliz", Mitrídates, ao qual os vapores do vinho já começavam a turbar a mente e subir à cabeça, respondeu-lhe imediatamente: "Que é isso, Esparamix? Eu merecia muito mais e coisas muito mais belas no dia da batalha". Então Esparamix replicou-lhe, sorrindo: "Eu nao digo isso por inveja, que tenho de teu bem, Mítrídates, mas falando aqui entre nós, francamente, porque os gregos dizem num provérbio comum, que a verdade está no vinho, eu te peço, dize-me, que grande e magnânima proeza é ter recolhido a sela de um cavalo, que tinha caído por terra, e tê-la levado ao rei?" isso o eunuco lho dizia maliciosamente, não que ele não soubesse bem da verdade, mas para provocá-lo, para que ele falasse, e para que saísse fora dos limites sabendo que ele era homem leviano por natureza, e que não sabia refrear a língua, principalmente então que havia bebido, como de fato aconteceu: Mítrídates, não sabendo mais conter-se, replicou: "Vós falais de sela de cavalo e de coisas confusas, tanto quanto quereis, mas eu vos digo, com certeza, que Ciro foi morto por esta minha mão, e não por outra: pois eu não dei o meu golpe em vão, como fez Artagerse, mas o feri na fronte, bem perto dos olhos: e tendo-lhe atravessado a cabeça de lado a lado eu o derrubei ao chão, e ele morreu por aquele golpe". Não tinha terminado ele estas palavras que todos os que estavam à mesa abaixaram os olhos, prevendo desde então a ruína e a morte daquele infeliz Mítrídates, mas quem dava o banquete, tomando a palavra, disse: "Mítrídates, meu amigo, bebamos e estejamos alegres, adorando e agradecendo a boa sorte do rei; deixemos esses assuntos que são muito elevados e não nos pertencem . Ao sair dali o eunuco foi imediatamente referir aquelas palavras a Parisate, afirmando que Mitrídates as tinha dito publicamente, em presença de muita gente, e ela as referiu ao rei, que imediatamente se encheu de cólera, como sentindo-se desmentido e obrigado a perder aquilo que ele tinha de mais honroso e agradável em sua vitória: pois êle queria que todos, tanto os gregos como os bárbaros, acreditassem certamente que, na luta entre êle e seu irmão, êle tinha sido gravemente ferido, mas que o tinha matado com suas próprias mãos. Mandou então que matassem também a Mitrídates, com o suplício dos coxos que é assim:
XX. Tomam-se dois recipientes vazios e ocos, semelhantes ao coxo, onde bebem os animais, e iguais em tamanho; dentro de um coloca-se a pessoa que vai ser supliciada, deixando fora, por orifícios, a cabeça, os pés e as mãos: o resto do corpo fica encoberto e escondido, dentro, pelo outro que vai por cima. Dá-se-lhe de comer e se êle se recusar, obngam-no à força, picando-lhe os olhos com uma sovela: depois que ele comeu dá-se-lhe de beber mel destemperado com leite, e derramam-lhe não somente pela boca, mas pelo rosto todo de modo que o sol lhe bate sempre dentro dos olhos: o rosto então estará todo coberto de moscas, e fazendo, dentro dos coxos, todas as necessidades que o homem comendo e bebendo deve fazer, êle chega a produzir podridão e decomposição em suas fezes e os vermes então lhe começam a roer o corpo até as partes mais nobres: quando vêem que o paciente está morto, removem o coxo de cima, e sua carne está toda devorada, pelos vermes que dele mesmo se geraram, até às entranhas. Mitrídates, depois de ter agonizado durante seis dias ou sete, nesse miserável estado, finalmente morreu entre dores atrozes.
XXI. Não restava então a Parisate, para terminar a sua tarefa, senão Mesabate (15), um dos eunucos do rei, que tinha cortado a mão e a cabeça a Ciro; vendo que ele se conservava sempre vigilante e atento em suas palavras e atitudes, não lhe dando ocasião de prendê-lo, por fim, armou-lhe ela uma cilada: era mulher de muito espírito, e que dentre outras coisas sabia muito bem jogar dados e antes da guerra frequentemente o fazia com o rei. seu filho: depois da guerra, ainda, depois de ter feito seus deveres, não deixou de jogá-lo e de passar o tempo como antes, até a conhecer os segredos de seus amores, e a ajudá-lo a deles gozar: em suma, não o perdia de vista, dele se afastava o menos possível, deixando apenas à esposa Estatira, o pouco tempo de que ela podia dispor para estar com ele, quer porque a odiava mais que qualquer outra pessoa no mundo, quer porque queria ter mais crédito e prestígio perante o rei do que ninguém mais. Um dia, então, vendo o rei quase na ociosidade, e não sabendo como passar o tempo, ela lhe propôs jogar mil dáricas nos dados, e propositalmente quis perder, pagou-o em moedas contantes, mostrando, porém, que estava aborrecida e se sentia irritada: pediu-lhe então que jogassem, desta vez, um eunuco, e o rei ficou satisfeito com a proposta: mas antes de jogar puseram esta condição no jogo, que um e outro excetuaria nomeadamente os cinco que lhe eram mais fiéis e que lhe eram mais caros, e o resto, aquele que perdesse teria que entregar prontamente ao ganhador aquele dentre os outros eunucos que lhe fosse pedido. Puseram-se a jogar com essa condição e ela fazendo tudo o que sabia e podia nessa modalidade de jogo, com todo o cuidado e atenção e com o que os dados a favoreciam, tanto fez que ganhou e pediu a Mesabates por ter vencido, porque ele não era dos que o rei tinha excetuado. Tendo-o entre suas mãos, antes que o rei pudesse suspeitar do que ela queria fazer, ela o entregou aos carnífices e ordenou-lhes que ainda vivo lhe tirassem a pele e depois o crucificassem e atassem seu corpo em três cruzes, e estendessem sua pele sobre um outro pedaço de madeira, à parte. Isso foi feito, e o rei ficou muito desgostoso e descontente quando veio a saber, irritando-se vivamente com ela: ela, porém, não se importou, e ainda disse-lhe em tom de zombaria: "Verdadeiramente tens motivo de te irritar, por teres perdido um velho e mau castrado (16) quando eu perdi mil dáricas, e tive paciência, sem dizer nem uma palavra". Nada mais houve, porém, senão que o rei ficou muito aborrecido, e se arrependeu de ter jogado e de se ter assim deixado enganar. Mas a rainha Estatira, além de em todas as outras coisas lhe ser sempre contrária, não deixava nesse caso de dizer abertamente, que era uma ofensa feita a ela, matarem cruelmente e sem razão bons e leais servidores do rei e por amor de Ciro.
(15) Bagapate, diz Ctésias.
XXII. Mas, por fim, depois que Tissafernes, lugar-tenente do rei Artaxerxes, enganou a Clearco e aos outros generais gregos, faltando infelizmente à palavra, que lhes tinha dado, e os enviara de mãos e pés atados ao rei, Ctésias diz que Clearco rogou-lhe que lhe fizesse trazer um pente, e tendo-o usado, penteando-se, sentiu com isso tanto prazer que lhe deu em recompensa o anel com o qual ele selava e timbrava suas cartas, para lhe servir de testemunho e de insígnia aos seus parentes e amigos, e da amizade que existira entre ambos; dizem que na pedra desse anel havia gravada uma dança das Canátides. Êle diz ainda que os outros soldados, que estavam prisioneiros com Clearco, lhe tiravam a maior parte dos víveres que lhe eram enviados, deixando muito pouco para ele, e que êle a isso remediou ordenando que lhe mandassem em maior quantidade e que se pusesse a porção de Ciearco, à parte, e a dos outros soldados, à parte, também: o que ele fazia, diz-se, com a notificação e a ordem de Pansate (17), a qual, sabendo que todos os dias se mandava presunto a Ciearco, entre outros alimentos, avisou-lhe, uma vez, que era suficiente mandar-lhe dentro do presunto uma pequena faca, a fim de que ao termo da vida, tão valente general e homem de bem, não ficasse à disposição da crueldade do rei, mas que ele teve medo de o fazer, e não ousou mesmo fazê-lo, e que o rei prometeu e jurou a sua mãe, que o rogou muito afetuosamente, que não o fana morrer: todavia, depois, tendo sido solicitado e persuadido do contrário pela rainha Estatira, ele os fez matar a todos, exceto Menon, pelo que Parisate desde aquele momento, diz-se, começou a procurar todos os meios de fazer morrer e de envenenar a rainha Estatira.
(16) Em grego, eunuco
(17) Creio que assim se deve traduzir: "como se mandasse todos os dias presunto a Ciearco, èle rogou a Ctésias, e o convidou a esconder uma pequena faca, etc,"
XXIIf. Não me parece, porém, verossímil que Parisate se pusesse a maquinar um ato tão infeliz, tão mau e perigoso, como o de fazer morrer a mulher legítima do rei, da qual ele já tinha filhos que deveriam um dia também cingir a coroa, somente por amor e por causa de Clearco: é fácil de se compreender que se inventou tudo isto para honrar e engrandecer mais a memória de Clearco: e que é verdade, pode-se facilmente conjeturar, pelas evidentes mentiras que depois se acrescenta, dizendo que os generais, tendo sido mortos, foram os corpos de todos os demais estraçalhados pelos cães e pelas aves de rapina; sobreveio ao depois um vendaval fortíssimo que cobriu o corpo de Ciearco, com um grande monte de terra, e que em redor desse amontoado, pouco tempo depois surgiram da terra várias palmeiras, das quais se fez como um pequeno bosque bastante espesso, de sorte que cobriu e ensombrou todo aquele lugar, de tal modo que o mesmo rei, pouco depois, se arrependeu de tê-lo feito morrer, por ter matado um homem de bem e querido dos deuses. Não foi então o amor de Ciearco, mas uma antiga raiva que Pansate tinha guardada no coração e uma inveja concebida há muito tempo, contra a rainha Estatira, por que ela via bem que o crédito e a autoridade, que ela tinha perante o rei, procediam de uma reverência filial que lhe tinha ele para honrá-la somente; e ao contrário, o crédito de Estatira estava muito mais bem fundado, pois procedia do amor que ele lhe dedicava e da confiança que tinha nela. Eis a verdadeira causa que a incitou a conspirar e a maquinar a morte da rainha, tendo determinado que era necessário que ela ou a rainha morressem.
XXIV. Ela tinha uma criada de quarto, chamada Gigis, que tinha bastante ascendente sobre ela, e na qual tinha inteira e absoluta confiança. Dinon escreve que ela se servia dela para executar os seus envenenamentos; todavia, Ctésias diz que ela o sabia, somente: e que foi contra sua vontade; que quem forneceu o veneno foi um certo Belitaras, ao qual todavia Dinon chama de Melantas: e embora elas tivessem se reconciliado, aparentemente, fin gindo ter esquecido todas as suas querelas e inimizades passadas, e começavam a se encontrar frequentemente, comendo e bebendo juntas, todavia sempre desconfiavam uma da outra, e se precaviam diligentemente, estando sempre em guarda, comendo das mesmas iguanas, servidas pelos mesmos criados e nas mesmas vasilhas. Ora, há na Pérsia um pequeno pássaro, no qual não há nada que não seja bom para se comer, pois está cheio de gordura, por dentro, de maneira que se julga que êíe se nutre do vento e do orvalho, e, para louvá-lo, chamam-no em língua Persa, de Rintaces. Parisate, como diz Ctésias, apanhou um que cortou pelo meio em duas partes, com uma pequena faca, a qual estava envenenada de um dos lados somente e pôs imediatamente na boca a parte contrária ao veneno, sem ter tocado nela com a parte envenenada da faca, e deu o outro pedaço a Estatira, que estava contaminado pelo veneno. Todavia Dinon escreve que não foi a mesma Parisate quem lho deu, mas sim o seu escudeiro Melantas, que trinchava, diante dela e que costumava servir à rainha, a carne que tinha tocado do lado envenenado da faca. Estatira caiu logo doente, e dessa enfermidade morreu, com muitas dores e contorsôes nos órgãos interiores, e bem se sabia que ela tinha sido envenenada por Parisate, e o disse ao rei, que tinha a mesma opinião contra sua mãe, ainda porque ele muito bem conhecia a sua natureza cruel e vingativa, que jamais perdoava quando tinha tomado uma deliberação .
XXV. Querendo então esclarecer tudo, logo depois da morte de sua mulher, ele mandou prender todos os servidores, criados e os oficiais de sua mãe, e a todos fez supliciar, para obrigá-los a dizer a verdade, exceto Gigís, que Parisate manteve escondida em seu quarto muito tempo, sem querer entregá-la ao rei que a exigia também: todavia, por fim, ela mesma pediu a Parisate, que a deixasse ir, ao seu aposento, certa noite; o rei sabendo disto, fê-la vigiar, e a sua passagem, prendeu-a, e condenou-a a morrer com o suplício que se usa na Pérsia contra os envenenadores, e é o seguinte: metem-lhe a cabeça debaixo de uma pedra chata e com uma outra batem-lhe por cima, com força, até que a cabeça fique despedaçada. Gigis foi assim executada. Quanto a Parisate, nem lhe fez, nem lhe disse outro mal, mas mandou-a a Babilónia, como ela mesma havia pedido e jurou que enquanto ela vivesse, jamais Babilónia a veria.
XXVI. Eis o estado em que se encontravam os seus negócios domésticos: Artaxerxes, então, fez todo o esforço possível para apanhar os gregos que lhe tinham vindo fazer a guerra até no centro do seu reino, como desejará derrotar a Ciro e conservar seu estado; jamais pôde, porém, chegar a isso: pois ainda que tivessem perdido aquele que os tinha assalariado, isto é, Ciro, e todos os generais particulares que os haviam conduzido, eles se salvaram do fundo do seu reino, mostrando por experiência que todo o feito dos persas não era senão ouro e prata, muitas delícias e belas mulheres, e por fim, pompa vã, somente exterioridade; com isso toda a Grécia se sentiu muito animada e confiante, e teve um grande desprezo pelos bárbaros, de tal modo que os lacedemônios julgaram que lhes seria uma grande vergonha, se não libertassem os gregos que habitavam na Ásia, da servidão dos persas, e não os defendessem dos ultrajes e das insolências dos bárbaros. Tendo outrora pretendido fazer isso, por um lermédio de seu general Timbron, e ainda depois, por Dercilidas, que eles enviaram com um exército, sem no entretanto ter conseguido fazer coisa digna de memória, finalmente eles deliberaram enviar seu mesmo rei Agesilau, o qual, passando à Ásia com navios, começou imediatamente, apenas desceu em terra, a pôr mãos à obra, com sabedoria: pois logo na chegada venceu em combate a Tíssafernes, lu-gar-tenente do rei, e fez rebelasse contra ele a maior parte das cidades gregas que estão na Ásia.
XXVII. Considerando isto, o rei Artaxerxes pensou sabiamente e encontrou o meio pelo qual era-lhe necessário fazer a guerra aos gregos: enviou um rodiano, chamado Hermocrates, no qual ele confiava, com bastante ouro e prata à Grécia, para dar e distribuir aos que ele visse ter crédito e autoridade nas principais cidades dela, a fim de fazer uma liga de todos os outros gregos contra os lacedemônios. Hermocrates executou sabiamente sua comissão pois as mais poderosas cidades da Grécia passaram para o lado da Pérsia contra os lacedemônos: de tal modo que todo o Peloponeso se convulsionou e o conselho da Lacedemônia foi obrigado a chamar Agesilau para a Grécia. Sendo, contra sua vontade-, obrigado a partir da Ásia, disse ele, a seus amigos, que o rei da Pérsia os expulsava com trinta mil arqueiros, porque na moeda da Pérsia havia gravada a figura de um arqueiro. Êle restituiu também os lacedemônios do principado do mar por meio do general Conon, ateniense, que Farnabazo, um de seus lugar-tenentes lhe havia conquistado, pois Conon, depois da batalha naval, que perdeu no lugar chamado rio da Cabra (18), tinha sempre permanecido na ilha de Chipre, não somente para ali ficar em segurança, quer sua pessoa, quer seus bens, mas também porque era um lugar muito próprio para esperar que os negócios da Grécia mudassem de rumo: e sabendo que os discursos que concebera na mente não tinham força para serem executados, mas, ao contrário, que o poder do rei tinha necessidade de um homem de eloquência e inteligência, para dele se servir, escreveu-lhe uma carta, comunicando-lhe o que tinha em mente realizar, ordenando expressamente àquele que lha deveria levar, que, se lhe fosse possível, ele a fizesse apresentar por um candiota, que se chamava Zenon, e era bufão do rei, ou por Policnto, nativo da cidade de Mende, que era seu médico: e se por acaso esses dois lá não estivessem, que a entregasse a Ctésias, para apresentá-la ao rei. Aconteceu que a carta caiu nas mãos de Ctésias, o qual, ao que se diz, acrescentou, além do que já estava escrito, que o rei o enviasse a ele, pois que era um personagem que seria muito útil ao seu serviço, com relação aos serviços da marinha. Ctésias não diz isso, mas escreve que o rei, de sua própria vontade, lhe confiou esse encargo.
(18) Egospotamós.
XXVIII. Mas depois que Artaxerxes, por meio de Conon e Farnabazo, ganhou a batalha naval perto da ilha de Gnido, e que por meio dela, derrotou e afastou os lacedemônios do domínio dos mares, foi tido em grande estima e reputação em toda a Grécia, de tal modo que deu aos gregos, com as condições que quis exigir, aquela tão afamada paz de Antalcidas. Antalcidas era um cidadão de Esparta, filho de Leon, o qual, favorecendo aos negócios do rei, tanto fez que, pelo tratado dessa paz, os lacedemônios deixaram a Artaxerxes todas as cidades gregas que estão na Ásia, e todas as ilhas compreendidas nas mesmas, para gozarem pacificamente dela e fazer-lhes pagar imposto e tributo à sua vontade. Esta paz feita com os gregos, (se é que se pode chamar de paz a uma traição, uma mancha e uma infâmia de toda a Grécia, tão ignominiosa que nenhuma guerra jamais teve termo tão vergonhoso e infame para os vencidos) o rei Artaxerxes que, por outro lado, odiava de morte a todos os lacedemônios, e que os julgava, como Dinon o escreve, os mais desavergonhados homens do mundo, ao contrário, amou singularmente a Antalcidas, e lhe fez a melhor acolhida possível, quando êle foi à Pérsia; diz-se que um dia o rei tomou uma coroa de flores que mergulhou num óleo de perfume preciosíssimo, o mais perfumado possível, que se preparava para os banquetes, e o enviou a Antalcidas, de sorte que todos ficaram muito admirados, de ver tantos sinais de simpatia, e tão grande obséquio que o rei lhe prestava: mas também era êle um homem bem digno de viver entre as delícias e superfluidades dos persas, e merecia que se lhe enviasse uma coroa tal (19), visto que tinha tido a coragem de dançar, num baile diante dos persas, para os quais imitava, por zombaria, Leônidas e Calicrátides, dois dos mais valorosos homens que jamais existiram em toda a Grécia. Pelo que alguém lhe disse, ainda na presença do rei Agesilau: "Como é mfeliz hoje a pobre Grécia, na qual os lacedemônios Persistem", isto é, aderem aos persas (20) : e o rei Agesilau respondeu-lhe prontamente: "Não é assim, mas ao contrário, que os persas Lacoritzam", isto é, aderem aos lacedemônios. Todavia, a argúcia desta resposta, assim revertida, não destruiu a vergonha do fato, e pouco tempo depois (21) os lacedemônios perderam a jornada de Leuctras e outrossim a primazia que há tanto tempo tinham conservado sobre toda a Grécia, embora já antes eles tivessem perdido a reputação, por ter consentido e concordado com o tratado de uma paz tão vergonhosa.
XXIX. Enquanto a cidade de Esparta permaneceu aos seus pés e conservou o primeiro grau de dignidade entre os gregos, Arraxerxes também sempre conservou a Antalcidas consigo e o tratou como seu hóspede e amigo: mas, depois que os lacedemônios perderam a batalha de Leuctras, ficando bastante inferiorizados, e tendo ainda falta de dinheiro, eles enviaram Agesilau ao Egito, e Antalcidas foi a Artáxerxes, na Pérsia, para rogá-lo que o ajudasse e aos lacedemônios: mas o rei fez pouco caso e o desprezou, rejeitando todas as suas propostas e pedidos, de modo que ele voltou confuso e envergonhado a Esparta sem nada ter conseguido, vendo-se ainda posto em ridículo por seus inimigos, temendo ainda mais que os éforos o mandassem prender e condenar, preferiu ele mesmo matar-se, de fome.
(19) Veja as Observações.
(20) Ou seguem os costumes dos persas. — Amyot.
(21) Quatorze anos.
XXX. Mais ou menos por esse mesmo tempo, foram também à corte de Artáxerxes, na Pérsia, ísmênias e Pelópidas, ambos tebanos, depois que ganharam a jornada de Leuctras; Pelópidas nada fez de indigno nem de desonesto, mas ísmênias, tendo-se-lhe ordenado que se inclinasse, para fazer a reverência ao rei, deixou cair seu anel aos seus pés e abaixou-se para apanhá-lo; pensou-se que ele o fizera, para se inclinar diante do rei.
XXXI. Outra vez Artáxerxes, tendo acha do bom um aviso secreto que Timágoras Ateniense lhe dera, por um secretário, chamado Beluris, deu-lhe dez mil dáricas: e, por estar ele indisposto, tinha necessidade de leite de vaca, para se fortificar, o rei mandou-lhe oitenta vacas, para ter delas leite fresco em abundância, todos os dias, e mandou-lhe também um leito com colchão, cobertores e todas as outras coisas e também criados de quarto para arrumá-lo, dizendo que os gregos nada entendiam e não sabiam como estender um leito; mandou-lhe ainda outros homens para carregá-lo nos braços até ó mar, porque êle estava enfermo e enquanto esteve na corte, fê-lo tratar sempre magnífica e cuidadosamente, de modo que um dos irmãos do rei chamado Ostanes disse-lhe: "Timágoras, lembra-te deste serviço de mesa, pois não deve ser por coisa de pouco que assim te servem tão magnificamente". Esta palavra era mais uma reprovação de traição, que uma recordação de favores recebidos. Também os atenienses condenaram o citado Timágoras, a morrer por ter tomado dinheiro do rei da Pérsia. XXXII. Mas Artaxerxes, como recompensa por tantas outras coisas que êle tinha feito, com grande desprazer dos gregos, lhes deu grande contentamento, quando mandou matar Tissafernes que era o mais aguerrido e feroz inimigo que eles tinham. Pansate muito ajudou para isso, agravando as acusações contra êle: pois o rei não guardou por muito tempo o ódio nem a raiva que tinha contra sua mãe, mas reconciliou-se com ela, e mandou buscá-la de volta, vendo que ela tinha a inteligência e a coragem necessárias para governar um grande reino e ainda também porque não havia mais o impedimento que não lhes permitia aproximarem-se e viver juntos, como eles desejavam, de medo de dar ocasião de inveja e de enfado a outrem. Pelo que de ali por diante, Parisate se pôs a agradar e satisfazer aos desejos do filho, que era rei, e fingia nada achar de mal em tudo o que ele fazia, pelo que conquistou tanto prestígio perante ele que nada lhe era recusado se tivesse tido a ousadia de lho pedir.
XXXIII. Perceberam que ele estava desesperadamente apaixonado por uma das suas próprias filhas, que se chamava Atosa, mas que ele dissimulava sua afeição, o mais possível, e disfarçava por causa dela principalmente, embora alguns dissessem que ele já a tinha deflorado. Logo que Parisate descobriu este amor, começou a tratá-la com mais deferência e mais cuidados e atenções do que antes, falando ao pai, louvava ora a sua beleza, ora a sua graça e suas doces maneiras, dizendo que ela parecia sua rainha e sua grande princesa: de maneira que, pouco a pouco, ela o persuadiu a desposá-la publicamente, sem contrariar absolutamente as leis e as opiniões dos gregos, pois que Deus o tinha dado aos persas, para fazer leis e lhes definir o que era justo ou injusto, honesto ou desonesto. Há ainda alguns historiadores, entre os quais está Heráclides, nativo de Cumes, que escrevem que Artaxerxes não desposou somente a primeira de suas filhas, mas também a segunda, que se chamava Amestris, da qual falaremos dentro em pouco: mas tendo desposado a primeira, ele a amou tão afetuosa e ardentemente que, embora lhe tivesse sobrevindo uma doença a que chamam vulgarmente de o mal da santa Mão (22), que lhe cobriu todo o corpo, não deixou de amá-la menos por isso, mas fez continuamente preces por ela a Juno, não adorando nem rogando a outra deusa senão a essa somente, prostrando-se diante dela por terra, e mandando-lhe por meio de seus amigos muitíssimas ofertas e dons, que por toda a estrada que ia desde seu palácio real até o templo de Juno, que distava uma boa légua (23) dali, estava repleto de jóias de ouro e de prata, riquíssimos panos tingidos de púrpura e cavalos que ele lhe enviava.
XXXIV. Êle iniciou a guerra contra os egípcios, e fez seus lugar-tenentes a Farnabazo e ífícrates Ateniense, que nada aí fizeram, porque caíram em desinteligência e em divergência entre si mesmos, um contra o outro; mas depois êle foi em pessoa a essa empresa, da conquista dos cadusianos (24) com trezentos mil combatentes de infantaria, e dez mil de cavalaria, penetrou no seu país, que é bastante áspero e sempre escuro e cheio de nuvens, onde a terra não dá fruto algum, que os homens semeiam, mas nutre seus habitantes de peras, maçãs e outras frutas, e no entretanto os homens são fortes, ousados e corajosos. Tendo êle se adiantado na região, não reparou que estava com seus víveres quase acabados, e por conseguinte, em grande perigo, porque seus homens não encontravam em todo o país coisa alguma que fosse boa para se comer, e não se podia ir buscá-la em outra parte, por causa da dificuldade e aspereza do terreno, em todos os lugares: de modo que seu acampamento não se podia mais sustentar, senão com carne de animais de transporte, que matavam para comer e ainda assim chegava a custar tão caro, que a cabeça de um asno custava sessenta dracmas de prata (25). Em suma, a necessidade foi extrema, tanto que os víveres vieram a faltar e tinha-se somente um pequeno número de cavalos, porque todos os outros, já tinham sido comidos.
(22) Uma espécie de lepra, em grego.
(23) Em grego, dezesseis est ádios, dois terços de légua.
(24) Povo da M édia, perto do mar Cáspio.
(25) Seis escudos. — Amyot. 46 libras 13 s. e 9 d. em nossa moeda.
XXXV. Tiribazo, então, o qual muitas vezes gozara da primazia e de prestígio perante o rei, por ser um homem valente, e muitas vezes tinha sido também demitido e rebaixado por suas loucuras e leviandades, como então, quando não tinha mais autoridade alguma, serviu-se de um estratagema, pelo qual salvou o rei e todo seu exército: havia nesse país dos cadusianos dois reis, e ambos estavam em guerra, com seus exércitos acampados ao lado um do outro. Tiribazo, depois de ter falado com o rei Artaxerxes e lhe ter comunicado o que ele pretendia fazer, foi ter com um deles, e ao mesmo tempo enviou secretamente seu filho ao outro, enganando a ambos, e dando a entender, a cada um, que o outro rei tinha sido mandado a Artaxerxes para tratar da paz e da aliança com ele, sem que o seu companheiro o soubesse: e portanto, dizia ele: "Se tu és sensato, é preciso que tomes a dianteira e que te apresses antes de que o tratado seja concluído entre eles, e de minha parte eu te ajudarei em tudo o que eu puder".. Um outro destes reis prestou crédito a estas palavras, cada qual pensando que seu companheiro lhe tinha inveja, de modo que um mandou imediatamente seus embaixadores a Artaxerxes com Tiribazo e o outro também o fez, com seu filho: mas, porque Tiribazo demorou-se muito nessa viagem o rei Artaxerxes começou a suspeitar dele, e os que o queriam mal, se puseram a caluniá-lo na sua ausência, estando o rei muito aborrecido, arrependendo-se de ter confiado nele, e prestando de boamente ouvidos aos que diziam mal dele: mas, finalmente, ele voltou e também seu filho, e cada qual levou a ele seus embaixadores cadusianos, com os quais a paz foi firmada.
XXXVI. Tiribazo então cresceu em prestígio perante o rei, e sua estima também aumentou mais do que antes; partindo depois com o rei, o qual assim mostrou claramente que a covardia e a fraqueza de ânimo não procedem das delícias, pompas e superfluidades, como alguns pensam, julgando que isso é que efemina os costumes e enfraquece o espírito (26) dos homens, mas vem de uma baixa e vil natureza, que se põe preferivelmente a seguir a má opinião do que a boa: pois nem as jóias de ouro, nem as vestes reais, nem os outros adornos e ornamentos que este rei tinha sempre em sua pessoa de valor mais ou menos de (27) doze mil talentos, como se diz, não o impediam de trabalhar e de esforçar-se como o último homem do seu exército: pois ele marchava à frente, a pé, levando sua bagagem às costas, seu escudo no braço, e caminhava através de montanhas rudes e ásperas, de maneira que os soldados, vendo a coragem e o trabalho que o rei se dava a si mesmo, caminhavam tão expeditamente que parecia que êles tinham asas: pois êles faziam diariamente doze léguas e meia (28), e mais. Tanto caminharam que chegou êle a uma de suas residências reais, onde havia pomares e parques sombreados e agradáveis, e que estavam muito bem equipados; mas, nas cercanias a região era desprovida e nua, de modo que não havia árvores, até a uma boa distância dali, e fazia muito frio: êle permitiu aos soldados cortar belos pinheiros e ciprestes do parque e como eles não ousassem fazê-lo, ele, tomando um machado, assim mesmo como estava, foi cortar pelo pé o mais belo e o maior dentre eles; vendo isso os soldados puseram-se também a cortar cada qual por seu lado, de modo que em poucas horas eles tinham uma boa provisão de lenha, com que fizeram um grande fogo em vários lugares, em redor dos quais passaram a noite comodamente .
(26) Se isso não é verdade, é preciso refazer a história do mundo.
(27) Sete milh ões e duzentos mil escudos. — Amyot. 56.025.000 libras de nossa moeda.
(28) Em grego, mais de 200 est ádios, um pouco mais de oito léguas. .
XXXVII. Todavia, nessa viagem ele perdeu um grande número de homens valorosos e quase todos os seus cavalos: por esse motivo, pensando ser desprezado pelos seus, por ter falhado na empresa, começou a suspeitar dos primeiros homens que tinha junto de si: de tal sorte que mandou matar alguns por despeito; mais ainda, porém, àqueles dos quais ele desconfiava: pois nada há mais cruel, nem mais amante do sangue, do que um tirano covarde, como, ao contrário, nada há tão doce e tão humano, nem menos suscetível de suspeita, do que um homem valente e corajoso: e por isso os animais, que nunca se aprisionam, são em geral covardes e temerosos, e, ao contrário, são nobres e corajosos, os que facilmente se apanham e se acostumam ao homem, porque eles não têm medo, nem recusam as carícias e a amizade que o homem lhes dispensa.
XXXVIII. Estando já Artaxerxes bem adiantado em anos, soube que havia discórdia entre seus filhos, pela sucessão ao trono e ao governo do reino, depois de sua morte, e que essa discórdia se estendia mesmo aos seus amigos e pessoas da nobreza. Os mais razoáveis queriam, que, como ele, por um direito de primogenitura, tinha sucedido ao seu pai no reino, assim ele o deixasse também depois da morte, ao seu filho mais velho, que se chamava Dano: mas o segundo, que se chamava Oco, sendo homem decidido e ardente por natureza, tinha na corte homens que eram do seu partido e esperava, com confiança, poder conseguir sobrepujar aos demais e obter o seu intento por meio de sua irmã Atossa, à qual ele fazia a corte, tendo prometido desposá-la e fazê-la rainha, se chegasse a ser rei, depois da morte de seu pai, e corria ainda a voz que, mesmo durante a vida de seu pai, ele a possuía secretamente: todavia Artaxerxes jamais soube de coisa alguma: mas querendo quanto antes tirar a Oco toda a esperança de lhe suceder no trono, de medo que esta esperança não o fizesse empreender o que Ciro tinha posto na sua cabeça, e que por esse meio seu remo não viesse a ser dividido e atribulado por guerras civis e intestinas, ele declarou seu filho mais velho Dário, que já tinha cinquenta anos (29), rei, depois da sua morte e lhe concedeu o privilégio, desde então, de usar a ponta de seu chapéu, reta.
(29) Outros lêem aqui vinte e cinco anos, e Plutarco de fato o chama, um pouco mais adiante, de jovem,
XXXIX. É costume no reino da Pérsia, quando alguém é declarado sucessor ao trono, que peça um presente àquele que o declara então seu sucessor: este lho concede aquilo que ele lhe pedir, contanto que seja coisa possível. Dano pediu a seu pai uma concubina, que se chamava Aspásia, a qual antes tinha sido de Ciro (30) e mais ardentemente amada por ele do que por nenhum outro, e então servia a Artaxerxes; ela era do país da Jônia, nascida de pai e de mãe francos e livres, e tinha sido educada pudica e honestamente; um dia, porém, foi levada a Ciro, como se pensa, com outras mulheres, que se sentaram, sem serem convidadas, mui perto dele e gostaram quando Ciro começou a brincar com elas e a tocá-las, dizendo a cada qual uma palavra de gracejo, sem se mostrarem aborrecidas: ela, porém, ficou de pé, sem dizer palavra, perto da mesa, e embora Ciro a chamasse, jamais quis ir a ele, e quando os criados a quiseram agarrar para levá-la, ela disse-lhes: "O primeiro que puser as mãos em mim, arrepender-se-á", de modo que todos os presentes a julgaram uma louca ou de juízo apoucado, que não conhecia nem o bem, nem a honra: Ciro, porém, que estava de bom humor, não fez senão rir-se e disse àquele que as tinha trazido: ‘Não vês que de todas aquelas que me trouxeste não há uma que seja inteiramente honesta, a não ser essa?" Desde aquele dia Ciro começou a amá-la, mais ardente e continuadamente que nenhuma outra, e a apelidou de Sábia. Ela foi tomada com o resto da bagagem de Ciro quando ele foi derrotado e seu acampamento saqueado totalmente, e Dário, como dissemos, pediu-a de presente ao próprio pai, o qual ficou muito aborrecido: pois os bárbaros, entre outras coisas, são muito ciosos de seus prazeres e voluptuosidades, de sorte que não somente aquele que tivesse ousado falar com a concubina do rei ou tocar-lhe, ao passar, ou que andando pelos campos se aproximasse dos carros onde elas estão, seria castigado de morte: e todavia sua filha Atossa, que ele tinha desposado, contra todas as leis, vivia ainda, e tinha ainda ele outras trezentas e sessenta concubinas, todas modelos de beleza: e, no entretanto, quando seu filho lhe pediu aquela, ele respondeu que ela. era livre e que se ela o quisesse, ele ficaria muito contente se a tomasse: mas se ela não quisesse ir, de sua espontânea vontade, ele não queria que a obrigasse-. Mandaram então perguntar a Aspásia de quem ela gostaria mais de ser. Ela respondeu que era de Dário, contra toda a esperança do rei Artaxerxes, o qual, obrigado pelos costumes e pela lei, foi obrigado a lha entregar: mas pouco depois ele a arrebatou, dizendo que a queria consagrar a Diana, a que está no país de Ecbátana, onde a chamam de Anitis (31) para ali servir à deusa e viver, castamente, todo o resto da vida: pensando assim castigar seu filho não grave e injuriosamente, mas, moderado e misto de gracejo e zombaria, com a pena que lhe havia de causar: todavia o filho não suportou este golpe com moderação e paciência, quer porque estava mesmo tomado de violenta paixão por Aspásia, quer porque ele se sentia ofendido, zombado, desprezado e injuriado por seu pai, com aquela deliberação .
(30) Aquele do qual descrevi há pouco o trágico fim.
(31) Leia-se: Anaitis.
XL. Vendo isso, Tiribazo, que percebera ter ele ficado vivamente ferido no coração, se pôs a irritá-lo ainda mais, reconhecendo a mesma paixão que sentia em si em certa ocasião: O rei Arta-xerxes tinha várias filhas e tinha prometido em casamento a Farnabazo a que se chamava Apama e a Orontes, Rodogouna, e a Tiribazo, Amestris. Ele deu aos dois outros as que lhes havia prometido e logrou a Tiribazo, com relação à sua: pois ele mesmo desposou Amestris e, em lugar dela, pro-meteu-lhe que lhe daria a mais jovem, Atossa, da qual ele se tornou apaixonado, e a esposou: por isso Tiribazo ficou tão desgostoso e despeitado, que lhe votava mal de morte, não que ele fosse, por natureza, um traidor e sedicioso, mas apenas leviano e estouvado: por isso, às vezes ele conquistava autoridade e prestígio como os demais, para também depois, quase repentinamente, fazer algo que desgostava ao rei, e ser então rebaixado e rejeitado; assim nao procedia ele bem, nem em um, nem em outro casos: pois quando êle gozava de estima, fazia-se odiar pela arrogância, e quando era rejeitado, não se queria nem humilhar, nem dobrar, mas era mais altivo e orgulhoso do que nunca.
XLI. Acrescentou-se assim fogo ao fogo, quando Tiribazo começou a frequentar a companhia de Dário, pois lhe soprava todos os dias ao ouvido que de nada lhe servia trazer seu chapéu de ponta reta, se êle não fizesse também retamente suas obras e ações: que êle estava bem enganado, se nao soubesse que seu irmão, por meio das mulheres que o rodeavam, aspirava secretamente à coroa, e que, sendo seu pai tão volúvel e variável como era, não devia êle ter tanta certeza de vir a sucedê-lo no remo, fosse qual fosse a declaração que êle fizera em seu favor: pois se êle, dizia ainda, por causa de uma vil mulher grega, defraudara a mais santa e a mais inviolável das leis da Pérsia, não devia ter como certa qualquer coisa que igualmente tivesse prometido: mostrava-lhe ainda que nao havia semelhante empecilho a Oco, de não poder chegar onde pretendia, como a êle, de ser privado do que já possuía: porque Oco podia viver como um homem particular, sem que ninguém lho impedisse: mas êle já tinha sido declarado e designado rei, era pois necessário que êle fosse mesmo rei, ou que então deixasse de viver.
XLII. É universalmente verdadeiro o que diz o poeta Sófocles:
A persuasão para fazer o mal, caminha ligeiramente para a própria perda e ruína,
pelo que o caminho é fácil se conduz o homem a acreditar o que ele quer, e os homens ordinariamente querem antes o mal que o bem, porque o mais das vezes eles não têm conhecimento nem experiência do bem. Mas além disso, a grandeza do reino e o temor que Dano tinha de seu irmão Oco, davam grande força às insinuações de Tiribazo: e talvez mesmo Vénus fizesse alguma coisa, pela inveja e pelo despeito de o terem privado de Aspásia: mas como quer que fôsse, a coisa chegou a tal ponto que Dano foi levado a conspirar contra seu pai juntamente com Tiribazo.
XLIII. Havendo já grande número de conjurados, um dos eunucos percebeu-o, e foi contá-lo ao rei; manifestou-lhe o modo de como haviam deliberado surpreendê-lo, estando bem certo do que tinham resolvido entre eles, matá-lo à noite, em seu leito. Artaxerxes, vindo a saber de tudo, pensou que não era absolutamente necessário fazer pouco caso de uma coisa de tão graves consequências, que lhe punha a vida em perigo, e também que seria coisa muito leviana prestar imediatamente fé à palavra de um eunuco, sem antes ter alguma prova da veracidade do que ele dizia. Pensou então agir deste modo: ordenou ao eunuco, que lhe havia dado a notícia, que se conservasse perto dos conjurados, e os seguisse por toda a parte, para saber o que eles faziam: fez entretanto furar a parede por trás de seu leito, onde preparou uma porta encoberta por um grande tapete: quando chegou o dia e a hora que os conjurados haviam marcado para tal execução, logo que o eunuco o pode avisar, Artaxerxes os esperou atrás do leito e não se moveu até que não visse um por um o rosto dos que tinham vindo para matá-lo: depois, quando eles se dirigiam a êle de espadas em punho, repentinamente tirou o tapete e passou à sua antecâmara, fechando a porta atrás de si e gritando em altas vozes: Aos assassinos! Assim os conjurados tendo sido vistos e reconhecidos por êle, sem terem podido realizai o seu desígnio, fugiram por onde haviam entrado, e disseram a Tiribazo ao qual advertiram que se salvasse, porque tinha sido conhecido, e espalhando-se cá e lá, uns e outros, fugiram rapidamente: mas Tiri-bazo foi logo aprisionado, depois de ter matado vários da guarda do rei, defendendo-se valentemente, ainda que não o tivessem podido agarrar, até que um dardo, atirado de longe o derrubou por terra.
XLIV. Dário também foi preso e levado com seus filhos, e o rei lhe deu juízes reais, para organizarem o processo, pois êle não quis estar presente ao julgamento, e mandou a outros em seu lugar para acusá-lo: ordenou porém, aos escrivães, que transcrevessem por escrito a sentença de cada um dos juízes e a trouxessem. Não houve um só, dentre os juízes, que não se pronunciasse contra ele e não o condenasse a morrer. Então os servos o agarraram e o levaram a um quarto da prisão para onde veio o carrasco, com a navalha na mão com a qual costumava cortar a garganta dos que eram condenados pela justiça: entrando no quarto, percebeu que era Dano e encheu-se de espanto e temor; voltou imediatamente para a porta por onde tinha entrado, não se atrevendo a por as mãos sobre a pessoa do rei: mas os juízes, que estavam também na sala, disseram-lhe que voltasse e o executasse se não quisesse ele mesmo sofrer a pena. Êle então voltou e tomou a Dano pelos cabelos com uma das mãos, e, fazendo-o abaixar a cabeça, cortou-lhe o pescoço com a navalha que empunhava na outra. Outros escrevem que este julgamento foi feito na presença do mesmo rei Artaxerxes, e que Dário, tendo sido provada a sua culpabilidade pelas provas apresentadas contra ele, lançou-se aos pés de seu pai, pedindo misericórdia, e que seu pai, encolerizando-se e desembainhando sua cimitarra, deu-lhe tantos golpes que o fez rolar pelo chão diante dele: depois, voltando ao palácio, adorou o sol, e voltando-se para os outros persas, que o seguiam, disse-lhes: "Ide-vos, senhores persas, ficai satisfeitos e alegres em vossas casas, e dizei aos que não estiveram presentes, que o grande Oromazes (32) vingou aqueles que tinham preparado e arquitetado executar a infeliz e vergonhosa traição contra mim’. Eis como terminou a conjuração de Dário.
XLV. Depois disso Oco teve grande esperança de suceder ao pai, no reino, também pelo favor de sua irmã Atossa: todavia, ele temia seus irmãos legítimos, um que se chamava Ariaspes, que vivera sempre sozinho, e o bastardo Arsames: não porque Ariaspes fosse mais velho que ele: porque era manso, afável, benigno e simples de natureza, os persas queriam que ele fosse rei: por outro lado, Arsames era homem inteligente, e Oco via bem que ele era muito estimado por seu pai. Determinou então armar uma cilada a ambos: e sendo homem cauteloso, cruel e malicioso, por natureza, empregou sua crueldade contra Arsames, e sua malícia contra Ariaspes: pois, sabendo-o simples, mandava-lhe todos os dias alguns eunucos, criados de quarto e servos do rei, que lhe proferiam ameaças e palavras injuriosas do rei, dando-lhe a entender que ele tinha deliberado fazê-lo morrer cruel e ignominiosamente, e, cada dia mais, inventava destas notícias, como coisas muito secretas, fazia-o passar momentos de terror dizendo que o rei tinha resolvido executar alguma das suas ameaças, dentro de pouco tempo e as outras logo depois, de modo que o pobre homem ficou de tal modo amedrontado e de tal modo desesperou-se que bebeu veneno e as-sim por si mesmo deixou esta vida. O rei, seu pai, sabendo como ele tinha morrido, lastimou-o muito e sentiu bastante a sua morte, e suspeitou igualmente de alguma coisa pela qual ele tinha falecido: mas nada pôde averiguar nem fazer indagações por causa da sua velhice, e lhe deu este acidente ocasião de amar ainda mais a Arsames, mostrando evidentemente que confiava mais nele, do que em Oco, e manifestava-lhe familiarmente todas as coisas, pelo que Oco não teve paciência de diferir por mais tempo a sua deliberação e encarregou Harpaces, filho de Tiribazo, dessa incumbência, por meio do qual matou a Arsames.
(32) O grande deus dos persas, o deus da luz, ou o sol.
XLVI. Artaxerxes estava já tão velho e caduco que pouco faltava também para que êle deixasse de viver, pelo que o acidente da morte de Arsames veio apressar o fim, porquanto êle não pôde suportar esse golpe nem resistir a êle, e morreu de dor e de tristeza, depois de ter vivido durante noventa e quatro anos e reinado sessenta e dois (33) . Foi considerado príncipe manso e humano, que amava seu povo e seus súditos, principalmente depois de terem experimentado a Oco, seu sucessor, que em crueldade e desumanidade sobrepujou a todos os homens do mundo.
(33) Diodoro da Sicília dá-lhe apenas 43 anos de reinado, e pôe a sua morte no terceiro ano da 104.ª olimpíada, antes de Cristo, ano 362.
Fonte:
http://www.consciencia.org/artaxerxes-do-imperio-persa-plutarco-vidas-paralelas