Para o que serve a educação? Para ler corretamente? Para contar sem errar? Para escrever sem dificuldade? Muita gente pode achar que é apenas para isso, mas Paulo Freire acreditava que a educação servia para muito mais. Para ele, mais que entender como somar, dividir ou decodificar os sons das letras, na escola se deveria ganhar o passaporte para a dignidade. Fundador da pedagogia da libertação, o filósofo e pedagogo pernambucano entrou para a história como o fundador de uma nova linha de pensamento em que lápis e livros tomam o lugar das ferramentas na luta por uma vida melhor.
Nascido em uma família de classe média de Recife, em 19 de setembro de 1921, Paulo Reglus Neves Freire poderia ter levado uma vida de conforto, protegido dos males do mundo. No entanto, quando tinha 8 anos, a crise desencadeada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York, que levou ao período de depressão da década de 1930, apresentou ao menino bem nascido uma realidade comum a muitos brasileiros: a fome. Dizem que as experiências vividas na infância são para a vida toda. Com o garoto Paulo não foi diferente. Mesmo com a recuperação da economia, que levou sua família de volta à classe média, as marcas ficaram no seu modo de pensar.
Ao se formar em direito, pela Universidade de Recife, em 1946, o pensador decidiu que não seguiria a carreira. Decidiu tornar-se educador em uma escola de ensino médio na periferia da cidade. Por se destacar como docente, acabou sendo nomeado chefe do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social de Pernambuco, cargo que lhe possibilitou realizar suas primeiras experiências na alfabetização de jovens e adultos. “Até então, tudo que se tinha na área pedagógica era voltado para crianças, enquanto o número de adultos analfabetos no país só crescia e nenhum política era elaborada para esse público”, lembra Maria Madalena Torres, educadora popular do Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia.
Diante dessa realidade, o pernambucano iniciou os primeiros programas educacionais do país voltados exclusivamente para adultos. O resultado foi tão bom que, em 1961, Freire foi nomeado chefe do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife e, no ano seguinte, desenvolveu um de seus trabalhos mais marcantes: criou um método que permitiu alfabetizar um grupo de 200 cortadores de cana-de-açúcar em apenas 45 dias.
A experiência bem-sucedida com os cortadores resultou no que é conhecido hoje como Método Paulo Freire. “Apesar do nome, não se trata de um método e sim de um complexo sistema no qual a educação é instrumento de desenvolvimento do adulto”, conta Maria Madalena. O diferencial do instrumento freiriano foi aproximar educadores e metodologia da realidade do aluno, aumentando o interesse dos educandos e diminuindo drasticamente a evasão escolar, um dos principais problemas da educação de jovens e adultos (EJA) até hoje.
“Como ensinar uma pessoa que com a letra f se escreve foca se, provavelmente, ele nunca viu um animal desses?”, indaga a pedagoga. Por isso, no método criado por Paulo Freire, todo trabalho é baseado em palavras e situações próximas do cotidiano do educando. Outra preocupação é não infantilizar a educação de adultos. “Até hoje, é muito comum utilizar na alfabetização de pessoas mais velhas palavras como pirulito, doce, brinquedo, que são ligadas ao universo infantil. Pelo método de Paulo Freire, essas expressões são ligadas a palavras mais adultas, como trabalho, salário, ferramenta, comida”, explica.
Consciência
Além da mudança metodológica que Paulo Freire trouxe para a educação, sobretudo a de adultos, outra mudança fez seu trabalho ainda mais importante. “Ele revolucionou filosoficamente a maneira como encaramos a educação, de simples ensinar, para uma forma de promover a liberdade do indivíduo”, conta o senador Cristovam Buarque (PDT-DF). Ex-ministro da Educação, Buarque trabalhou com o educador em dois momentos: na época de estudante universitário, participando dos projetos educacionais de Paulo Freire, e como reitor da Universidade de Brasília (UnB), quando Freire fez parte do conselho diretor da Fundação ligada à UnB.
Para Freire, ao aprender a ler e a escrever, o indivíduo se tornava mais consciente politicamente e socialmente, tendo melhores condições de lutar por seus direitos. Ele propunha uma pedagogia da libertação, ou pedagogia do oprimido. “Esse pensamento influenciou pedagogos do mundo todo, em especial de regiões mais pobres, como a América Latina e a África. Certa vez, em uma visita a El Salvador, encontrei, em um determinado local, um busto de Paulo Freire”, conta Cristovam Buarque.
A revolução que Paulo Freire provocou em algumas comunidades nordestinas acabou tomando proporções nacionais, e ele foi convidado pelo então presidente da República, João Goulart, para expandi-la para o restante do país. A iniciativa que poderia ter causado a erradicação do analfabetismo brasileiro, no entanto, teve uma vida curta. “Com o início do regime militar, todos os programas que ele conduzia foram cancelados. Se hoje temos 64 milhões de brasileiros sem ensino fundamental e 14 milhões de analfabetos é porque os projetos dele foram interrompidos”, acredita Maria Madalena Torres.
Preso e exilado pelo regime militar, que se incomodava com a influência marxista em sua obra, Paulo Freire permaneceu no exterior até os anos 1980, quando, beneficiado pela Lei da Anistia, pôde finalmente retornar ao país. Após seu retorno, fundou o instituto que leva seu nome e trabalha para divulgar suas idéias e seu trabalho. Em 2 de maio de 1997, morreu vítima de um ataque cardíaco em São Paulo. Em 2009, a Justiça Federal, no Fórum Mundial de Educação Profissional, realizado em Brasília, fez o pedido de perdão póstumo à viúva e à família do educador, assumindo o pagamento de reparação econômica. Para muitos especialistas, porém, o maior prejuízo foi do país, que se viu privado, durante anos, das ideias do educador.
Fonte: Correio Brasiliense – Max Milliano Melo