Ensino de escrita a deficiente auditivo precisa ser revisto no Brasil, defendem linguistas. Despreparo da escola para lidar com esse aluno especial prejudica aprendizagem.
Por: Célio Yano
A comunicação por sinais é a língua materna dos surdos, que, para compreender as informações grafadas à sua volta, acabam por ter que aprender a ler e escrever em português. (foto: Julia Freeman-Woolpert/ Sxc.hu)
Aprender a expressar e interpretar frases em português parece tendência natural a qualquer pessoa que nasce em meio a falantes do idioma. Não para o surdo, que, desconhecedor de fonemas, tem como língua materna a comunicação por sinais – e não o português.
Por isso, o processo de letramento de deficientes auditivos deve ser diferente daquele que se pratica com ouvintes. Mas as escolas brasileiras não estão preparadas para essa distinção. A consequência é o prejuízo de aprendizado de alunos surdos ao longo de toda a formação escolar.
A questão foi discutida no VII Congresso Brasileiro de Linguística, realizado de 9 a 12 de fevereiro em Curitiba (PR). No evento, foram apontados modelos de ensino que poderiam minimizar as dificuldades enfrentadas por surdos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, cerca de 3,4% da população do país apresentam algum nível de surdez.
A linguista Heloísa Salles, da Universidade de Brasília, entende que a premissa básica para o ensino da escrita a deficientes auditivos é reconhecer que os surdos brasileiros formam uma comunidade à parte, que, embora não tenha território próprio, conta com língua e cultura distintas das dos demais cidadãos.
Diferente do que muita gente pensa, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) não é mera representação do português por meio de gestos. Trata-se, na verdade, de uma língua independente, com vocabulário e gramática próprios e que – vale notar – não guarda qualquer relação com a Língua Gestual Portuguesa, utilizada em Portugal.
Assim como o português, a Libras é considerada oficial no Brasil, mas seu uso fica restrito a deficientes auditivos e a pessoas à sua volta. Como o idioma não possui forma escrita, os surdos brasileiros, cercados por informações grafadas em português, acabam por ter o bilinguismo – que é opcional para a maior parte das pessoas – como conhecimento inevitável.
A importância da palavra
Uma criança ouvinte aprende a ler e a escrever geralmente por meio da associação de letras e sílabas aos fonemas que cada sinal gráfico representa. Como o deficiente auditivo é incapaz de encontrar correspondência entre imagem e som, o ensino deve considerar palavras – e não letras ou sílabas – como unidades mínimas de significado, defende a linguista Sueli Fernandes, coordenadora do curso de graduação em Letras/Libras da Universidade Federal do Paraná.
Assim, os surdos devem ser letrados, embora não alfabetizados, em português. “É como um falante de português aprender a reconhecer o significado de ideogramas chineses sem saber pronunciá-los”, explica a pesquisadora, especialista no ensino de português como segunda língua para surdos.
Recentemente, Fernandes acompanhou o letramento de estudantes de ensino médio na região de Curitiba e observou que a atual prática de ensino oferecida na rede pública torna os portadores de surdez incapazes de acompanhar o nível de escolaridade dos demais colegas.
A desigualdade em relação aos outros estudantes é grande, tanto no aprendizado de língua portuguesa quanto no de outras disciplinas, já que o surdo não entende plenamente o idioma em que o conteúdo das aulas é escrito.
Vantagem cognitiva
Segundo a linguista Evani Viotti, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), o bilinguismo dos surdos é visto no Brasil em geral como um problema, quando, na verdade, o conhecimento de duas línguas por deficientes auditivos é uma vantagem cognitiva.
Um exemplo prático da afirmação foi demonstrado em uma experiência realizada na USP em 2003 com o filme A história da pera, que em seis minutos mostra uma série de eventos, alguns em sequência, outros simultâneos, com graus diferentes de relevância. Um voluntário surdo precisou de apenas 30 sinais para descrever o vídeo em Libras. Um falante de português, por sua vez, usou 150 palavras em sua redação.
A diferença é explicada pelo caráter quadridimensional da língua de sinais. Além das três dimensões de que a comunicação gestual pode se utilizar (profundidade, largura e altura), o tempo também integra a formação das estruturas frasais, o que não ocorre no texto escrito.
Por outro lado, a utilização exclusiva de Libras pode acarretar problemas para a criança surda que ingressa na escola no Brasil, uma vez que ela fica incomunicável diante de colegas que só compreendem o português.
A solução apontada pelas linguistas passa por uma mudança no atual sistema educacional, que deve prever tanto o ensino da língua de sinais quanto o da língua majoritária (no caso do Brasil, o português), além de usar correntemente as duas formas de comunicação na escola.
Os especialistas criticam a simples inclusão de intérpretes de Libras em sala de aula. “A legislação brasileira reconhece a Libras como língua oficial, mas esse reconhecimento não ocorre efetivamente na prática”, diz Viotti. E resume: “É preciso haver respeito à identidade cultural do surdo.”
Célio Yano
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