© iStockphoto.com /Ivan-96 Deus arma seu povo para lutar contra os inimigos |
As raízes do conceito de "guerra santa" estão fincadas nos principais livros das duas religiões. No Antigo Testamento - que compõe a primeira parte da Bíblia cristã -, a ocupação da Canaã (região da Palestina) no século 6 antes de Cristo pelos judeus vindos do Egito sob liderança de Moisés, narrada no "Livro de Josué", mostra a conquista da Terra Prometida, com a expulsão dos seus ocupantes, e a divisão dela entre as tribos judaicas. A narrativa enfatiza que a luta pela conquista da Terra Prometida foi feita com a ajuda de Deus, o que a justificou totalmente.
Doze séculos depois da conquista de Canaã pelos judeus, Maomé, fundador do Islamismo, irá definir no Alcorão que um último recurso da "jihad" - obrigação religiosa de todo muçulmano na difusão do Islamismo - é se engajar fisicamente numa guerra contra todos os infiéis e inimigos da fé islâmica. Como para os muçulmanos o Alcorão representa a palavra de Deus (ou Alá, como eles chamam o Todo-Poderoso), lutar contra aqueles que não acreditam no Islã é uma guerra em nome de Deus. Assim como foram as Cruzadas, movimento militar-religioso ocorrido entre os séculos 11 e 13 no qual tropas dos reinos cristão europeus lutaram contra os árabes pelo controle da Terra Santa (região da Palestina) com o objetivo de manter os lugares sagrados do Cristianismo sob o domínio da civilização cristã ocidental.
Para seus defensores, as "guerras santas" são sempre por uma "boa causa", que pode estar justificada em textos sagrados ou em teses desenvolvidas por teólogos e pensadores religiosos, às vezes motivadas por necessidades políticas ou militares de manutenção, expansão ou luta pelo poder. Nos tempos modernos, principalmente no Ocidente cristão, o conceito de "guerra santa" é visto como uma abominação anacrônica, mas nem sempre foi assim. Por outro lado, em muitos países muçulmanos do Oriente Médio, a ideia de "guerra santa" ainda remete a um passado glorioso, a tempos em que o expansionismo árabe e do Islã os levou a ser um dos maiores impérios do mundo.
Um dos muitos fatores que podem explicar essa diferença está na gênese da ideia de guerra santa entre as duas grandes religiões monoteístas. O Cristianismo desenvolveu primeiro o conceito, mas não a partir do que Jesus teria pregado e sim com a "conversão" do Império Romano à crença cristã durante o reinado do imperador Constantino, no século 4, e devido a necessidade do Império defender-se das ameaças dos invasores bárbaros. No Islamismo, que surge dois séculos depois, o conceito de "guerra santa" está presente desde seus primeiros dias de existência, expresso nas palavras de Maomé, seu principal profeta, registradas no Alcorão.
Guerra santa cristã
© iStockphoto.com /Duncan1890 Soldados cristãos enfrentam muçulmanos durante a Primeira Cruzada |
No entanto, isso iria mudar graças a uma ação política dos imperadores romanos. No fim do século 3, o Império Romano enfrentava sua derradeira crise. O avanço do Cristianismo contribuía para isso, com a adesão cada vez maior dos soldados e centuriões à fé cristã e à recusa a lutarem. A perseguição aos cristãos intensificou-se e o Cristianismo foi considerado ilícito. Apesar disso, aumentava vertiginosamente o número de seguidores da religião e o conflito entre o Estado e as assembleias de cristãos eram constantes.
Mas algo inesperado ocorreu e mudou completamente essa situação. Constantino, proclamado Imperador Romano em 306, deu um golpe de mestre ao aceitar o Cristianismo dentro das fronteiras do Império e declarar-se responsável pela igreja cristã, misturando política e religião e plantando as sementes da Igreja Católica Apostólica Romana. A partir daquele momento, a atitude dos cristãos em relação ao uso da violência começaria a mudar completamente. Eles passaram a ter um Estado que se proclamava também cristão e que eles deveriam defender - afinal, agora não havia apenas o reino do céu, mas também um reino terreno para eles. Com as fronteiras do Império Romano cada vez mais ameaçadas por outros povos (chamados de "bárbaros") os soldados cristãos eram bem-vindos.
No ano de 392, o imperador romano Teodósio 1.° proibiu os cultos pagãos no Império fazendo da religião cristã a única aceita. Além dos atos governamentais, que culminaram no ano de 592 com o imperador Justiniano praticamente obrigando a todos os habitantes do Império a tornarem-se cristãos, várias missões evangelizadoras espalharam o Cristianismo pela Europa. De perseguida, a fé cristã transformou-se na oficial. Para também oficializar a adesão cristã ao uso da violência decidiu-se excomungar aqueles que recusavam o serviço militar. Era o início de um processo que culminaria no século 11 com a mais famosa "guerra santa" empreendida em nome do Deus cristão.
Nos primeiros anos do Cristianismo, todos o seus seguidores eram chamados de "soldados de Cristo" e eram adeptos da não-violência. A partir do século 5, com a formação das estruturas eclesiásticas, os integrantes do clero passaram a ser os "soldados de Cristo", mas ainda eram combatentes morais e não militares. No século 11, no entanto, a ideia dos cristãos irem à guerra de fato em nome de Deus tornou-se realidade com a realização das Cruzadas.
As Cruzadas foram a resposta militar da Europa cristã a séculos de guerras da expansão muçulmana. Os "guerreiros de Cristo" que delas participaram tinham como missão não só deter as ambições expansionistas do Islamismo como também assumir o controle da Terra Santa - região da Palestina onde teria vivido Jesus -, conquistar terras pagãs e retomar o domínio de antigas terras cristãs. Durante dois séculos entre 1095 e 1291, sob a benção dos papas e patrocinados e liderados pelos reis cristãos europeus, milhares de soldados lutaram em campanhas militares que tentaram reduzir a expansão muçulmana e conquistar e manter sob controle Jerusalém. As Cruzadas foram o maior exemplo na História da guerra santa levada a cabo pelo Cristianismo. Para se chegar até ela, no entanto, alguns dos principais dogmas cristãos precisaram ser alterados radicalmente.
Além da permissão de matar ao próximo em uma guerra santa, concedida séculos antes, a Igreja prometia aqueles que se engajassem nas Cruzadas, para lutar contra os "infiéis" (leia-se muçulmanos) que ocupavam Jerusalém há quatro séculos, o perdão de todos os pecados e um lugar garantido no paraíso. De camponeses pobres a nobre cavaleiros, os "guerreiros de Cristo" da Idade Média não tiveram nenhum problema em saquear, matar e estuprar as populações por onde passaram em troca desse perdão e de escapar do fogo do inferno. A guerra santa cristã no Oriente Médio terminou no fim do século 13 com a expulsão dos últimos "guerreiros de Cristo" pelos seguidores da guerra santa proposta por Maomé. Na próxima página, conheça o que é a guerra santa no Islamismo.
Um dos mais importantes filósofos do Cristianismo, Agostinho de Hipona, que seria canonizado e viraria Santo Agostinho, escreveu entre os séculos 4 e 5 os fundamentos de uma nova ética cristã que entre outras coisas estabeleceu os parâmetros de uma "guerra justa". Segundo Agostinho, um soldado a serviço de um Estado cristão será considerado um "agente do bem" quando os fins que persegue são puros e buscam a justiça, ao impedir que um inimigo mate ou saqueie ou para recuperar terras e bens expropriados. Ele deve também conduzir sua luta com amor, sem sentimento de ódio, sem motivos pessoais, como vingança ou pilhagem, e a sua luta somente deve ser exercida quando for pública e não privada, isto é, quando for autorizada ou ordenada pelo imperador.
Guerra santa no IslamismoO Islamismo surgiu cerca de seis séculos após o Cristianismo. Maomé foi o seu primeiro e principal profeta. Ele teria sido visitado várias vezes pelo anjo Gabriel que lhe teria transmitido as palavras de Deus e elas teriam virado o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. E é lá no Alcorão que está um conceito que causa muitas controvérsias nos dias atuais: a jihad. Seu significado ao pé da letra é "lutar, se esforçar ou se empenhar".
© iStockphoto.com /Ivan-96 Muçulmanos e cristãos têm empreendido suas "guerras santas" em nome de Deus - o monoteísmo os impede de assimilar a divindade alheia |
O Islamismo foi determinante na união do povo árabe e no desenvolvimento de uma das mais importantes civilizações que já surgiu no planeta. O conceito de "jihad" foi essencial para isso. O fato de Maomé não ter sido apenas um profeta e um líder espiritual, mas também um líder político e militar contribuiu para a amplitude do significado que a jihad adquiriu. A "luta" da jihad é primeiramente uma busca pela melhoria espiritual individualmente, uma luta interna de cada muçulmano para que se torne uma pessoa melhor. Pode haver também a necessidade de uma jihad externa, que seria feita através da luta física, dos combates, de uma "guerra santa" dos seguidores do Islamismo contra os inimigos de Deus, contra os "infiéis".
Maomé usou o Alcorão e o conceito de jihad para unir os árabes não só espiritualmente como também politicamente. O surgimento do Islamismo foi a principal semente para o nascimento do Império Árabe que dominaria uma vasta região que incluía o norte da África, o sul da Europa, o Oriente Médio e territórios na Ásia que chegavam até a Índia e o Paquistão. Os árabes tornaram-se "soldados de Alá (Deus)" e em nome dele lutavam. Alá era considerado o supremo chefe do Estado islâmico e consequentemente o comandante dos exércitos muçulmanos. Suas ordens chegavam até os soldados através do profeta Maomé e, após sua morte, pelos califas.
No século 7, Maomé à frente de um exército de dez mil homens conquistou Meca e iniciou a expansão do Islamismo ao proclamá-lo como a única e verdadeira religião dos árabes. Após sua morte, os califas que o sucederam na liderança espiritual e política do Islamismo unificaram a Península Arábica e iniciaram suas lutas contra os impérios vizinhos, principalmente o bizantino e o persa. As conquistas militares dos muçulmanos foram mais rápidas que as espirituais, pois nos territórios conquistados a conversão ao Islamismo era lenta e muitas vezes nem acontecia. No começo do século 8, os árabes tinham conquistado a Península Ibérica e partes da França e avançavam para tomar o restante da Europa cristã. Mas na batalha de Poitiers, no sul da França, eles foram barrados por combatentes francos liderados por Carlos Martel.
Segundo o historiador britânico Bernard Lewis, desde o período de expansão do Império Árabe até hoje, a jihad tem sido interpretada como luta armada para defesa e aumento do poder muçulmano. Ele afirma que na tradição muçulmana o mundo é dividido em duas "casas". Uma é a do Islã, onde estão os governos e a lei muçulmana; a outra é a da Guerra, habitada por todos os não-muçulmanos, ou seja, pelos "infiéis". Assim, o conceito de jihad como uma luta externa permanecerá até que todo o mundo adote o Islã ou se submeta a ele.
Quando a Primeira Cruzada - a "guerra santa" cristã - alcançou o Oriente Médio no século 11, os reinos muçulmanos parecem não ter dado muita importância a ela, tanto que os pedidos de ajuda feitos pelos muçulmanos em Bagdá e Damasco permaneceram sem resposta. A reação só viria quase um século depois quando um dos líderes cruzados começou a representar uma ameaça aos lugares sagrados do Islã, inclusive atacando peregrinos que iam a Meca e desrespeitando acordos do rei cristão de Jerusalém e do líder muçulmano Saladino. Naquele momento, Saladino declarou "guerra santa" aos cruzados e eles acabaram definitivamente expulsos das terras muçulmanas no fim do século 13.
Grupos terroristas como a Al-Qaeda têm usado o conceito de jihad no sentido de "guerra santa" para atacar alvos que eles consideram como inimigos do Islã. Trata-se na verdade de uma distorção da interpretação do conceito original de jihad, já que a tradição muçulmana estabeleceu algumas regras para a "guerra santa", entre elas tratar bem os prisioneiros e a proibição de matar mulheres e crianças. Regras que o terrorismo não respeita.
Fontes:
FLORI, Jean. Guerra santa, "Yihad", Cruzada: violencia y religión en el cristianismo y el islam. Espanha: Universidad de Granada, 2004.
LEWIS, Bernard. A Crise do Islã - Guerra Santa e Terror Profano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
SOMMA, Isabelle e MIRANDA, Celso. Império Árabe: a marcha por Alá inAventuras na História, edição 36, agosto de 2006.