por Christophe Courau | ||||||
O avião da companhia particular francesa Aero Services Executive decola, em junho de 2002, do aeroporto parisiense de Bourget em direção a Madagascar, onde Marc Ravalomanana, o novo presidente eleito, luta pelo poder com Didier Ratsiraka, seu predecessor. A bordo do aparelho estão 12 mercenários franceses, entre 30 e 61 anos. Marc Garibaldi, conhecido por suas atividades na República Democrática do Congo, é um deles. Por intervenção do governo francês, o avião aterrissa em Dar es-Salaam, na Tanzânia, onde é reabastecido. Logo depois retorna ao ponto de origem. Ao mesmo tempo, na África do Sul, três ucranianos - todos com cerca de 40 anos de idade - são interrogados. Incapazes de informar, com exatidão, o lugar onde devem permanecer em Madagascar, declaram simplesmente que "devemos encontrar certas pessoas no aeroporto". | ||||||
Os dois acontecimentos levam Bernard Valéro, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, a "lembrar que a França condena vigorosamente esse tipo de ação". Assim como a tentativa, em dezembro de 2001, de desembarque de mercenários franceses no arquipélago de Comores, a operação em Madagascar é um verdadeiro fiasco, interrompendo uma série de intervenções bem-sucedidas entre os anos 1970-1980. "Os atuais soldados de aluguel não têm muitas semelhanças com os \\'desprezíveis\\' dos anos 60, proscritos e homens fora da lei", comentam Philippe Chapelau e François Misser em seu livro Mercenários AS (Desclée de Brouwer, 1998). Mercenários contemporâneos Repulsivos, mas também fascinantes, os mercenários de hoje, de acordo com esses autores, se aproveitam da "explosão da demanda proveniente de governantes em apuros, mas também de outros agentes, desejosos de operar em zonas de elevada insegurança: empresas, organizações internacionais ou humanitárias". Mas, se de alguma forma ainda se assemelham a aventureiros do fim do século XX, como Bob Denard, os novos mercenários são de fato herdeiros de uma longa tradição. O antigo Egito já utilizava mercenários líbios para guardar suas fronteiras. Da mesma forma, na Grécia ancestral inúmeros combatentes estrangeiros se engajavam nos exércitos das cidades, enquanto os próprios gregos prestavam serviços ao império persa. | ||||||
Cartago testemunhou uma terrível revolta de seus mercenários, que serviu de trama para o romance de Flaubert, Salambô. Iniciada em 241 a.C., essa guerra terminou em 238, quando o general Amílcar Barca cercou os revoltosos no desfiladeiro de Scie, onde 40 mil homens foram massacrados. Tão antigo quanto o mundo, o mercenário é, segundo a definição do dicionário Larousse, "um soldado que serve, por dinheiro, a um governo estrangeiro". Esta acepção se aplica, porém, tanto à Legião Estrangeira francesa como à Guarda Suíça do Vaticano. Assim, preferimos outra, mais precisa: "Soldado que, mediante pagamento em dinheiro, luta por uma causa que não lhe concerne", proposta por Anthony Mockler em sua História dos Mercenários (Stock, 1969). O autor acrescenta outra definição: "Bando de soldados de ofício que se reúnem provisoriamente sob a liderança de um chefe de personalidade forte e que lutam pelo soldo e pelo butim, não totalmente indiferentes à honra, à legalidade e aos interesses de seu país de origem, mas acima de tudo eficazes no plano militar." A Organização da Unidade Africana, em 1977, e a ONU, em 1989, ofereceram também suas próprias definições de mercenário. Ao longo da história, a questão do pagamento adquire diversas nuanças. Na Idade Média, durante a Guerra dos Cem Anos, os ingleses decretam que todo cavaleiro e soldado do exército real deve "receber um salário do rei", com autorização para conservar o que vierem a ganhar na guerra, seja em bens ou prisioneiros. | ||||||
Esse exército já não tem mais muita coisa em comum com uma tropa feudal, em que senhor e cavaleiros combatem juntos. O exército francês assume uma posição análoga. O rei da França, Felipe VI, promete um bom pagamento e generosas recompensas aos mercenários alemães e genoveses que combaterem sob sua bandeira. Mas, em Crécy, os soldados genoveses são dizimados pelos arqueiros ingleses. Fugindo em debandada, os genoveses sofrem o destino reservado aos derrotados: os sobreviventes são exterminados pelos franceses. Dez anos mais tarde, o Tratado de Brétigny, de 1360, marca o fim do primeiro período do conflito, mas deixa sem recursos os grupos de cavaleiros e soldados de ofício que, assim, reúnem-se em companhias livres. Seus chefes se chamam Regnault de Cervoles (apelidado de o Arcipreste), sir Robert Knollys, Perrot le Béarnais, Geoffroy Tête-Noir, sir John Hawkwood, Bertrand de La Salle, ou Bertrand Du Guesclin, futuro condestável da França. As companhias livres, alugadas e comandadas por senhores e príncipes, decidirão a sorte de todas as batalhas posteriores. Na batalha de Brignais (1362), elas se unem para enfrentar o exército feudal que o rei da França arregimentara para liquidá-las. Vencem de forma avassaladora. Jacques, conde da província de Marche e condestável da França, é morto e, graças aos resgates, os mercenários acumulam considerável riqueza. Algumas companhias apoderam-se até mesmo de castelos nas duas margens do rio Ródano. O memorialista Froissart narra em suas Crônicas a história do Arcipreste que, com seu bando, invade a Provença e aterroriza de tal forma o papa Inocêncio VI que é, várias vezes, convidado a cear no castelo de Avignon, como se fosse o "filho do rei da França": não só os seus pecados são perdoados como ele recebe 40 mil moedas de ouro para distribuir entre seus companheiros. | ||||||
Armaduras como espelhos Enquanto combatem para um príncipe que tem o direito de fazer a guerra, o modo de existência dos mercenários pode ser justificado. Mas quando chega um período de paz, este modo de vida se transforma. Sem recursos e sem o direito de pilhar ou extorquir seus contemporâneos, os mercenários se tornam meros bandidos. Para se livrar deles, os franceses decidem enviá-los para longe. A grande companhia catalã é enviada para Constantinopla, onde cria um ducado autônomo em torno de Atenas que durará 63 anos. Outro destino é a Itália, Eldorado da época, dividida em vários principados rivais e cujos cidadãos preferem negociar a guerrear. "Entre 1300 e 1375, quatro grandes ondas de companhias mercenárias invadem a Itália", informa Anthony Mockler. Os húngaros fundam uma tão grande "que se torna uma cidade-estado móvel, com uma administração interna meticulosa e que troca embaixadores em pé de igualdade com as repúblicas da Itália central. Ela só devia fidelidade ao seu chefe, Fra Moriale, e recebia mais dinheiro para se afastar das cidades das quais se aproximava do que para lhes prestar serviços. Durante dois anos, os seus deslocamentos, reais ou presumidos, dominam a diplomacia e os assuntos políticos da Itália". Após a morte de Fra Moriale, é superada pelas companhias livres que o papa, instalado em Avignon, enviara para o outro lado dos Alpes. | ||||||
Na mais importante delas, a companhia branca, cada guerreiro pesadamente armado dispõe de um ou dois assistentes cujo trabalho consiste, segundo os cronistas da época, "em polir a armadura de tal forma que, quando os cavaleiros surgirem no campo de batalha, suas armas e couraças brilhem como espelhos, tornando-os mais temíveis". Mas o brilho das companhias começa a empalidecer. Em 1379, "um marco divisório na história dos mercenários na Itália", segundo o historiador inglês, um antigo integrante da companhia branca, Alberico da Bardiano, que acaba de organizar a sua própria tropa inteiramente italiana, derrota os mercenários bretões do papa Clemente VII. Os condottieri italianos vão progressivamente substituir os comandantes estrangeiros e aperfeiçoar o ofício de mercenário. O condottiere - o mercenário - assina, na presença de uma notário, uma condotta, isto é, um contrato escrito, com um príncipe ou uma cidade. Em Florença há três tipos de contrato: a condotta a solda disteso, pela qual o soldado deve obedecer às ordens do general local; a condotta a mezzo solda, segundo a qual o condottiere é livre para invadir, quando e como desejar, os territórios do inimigo; e, por fim, a condotta in aspetto (espera), que corresponde aos tempos de paz. Habitualmente, o condottiere compromete-se também a não guerrear contra o seu último empregador. A ambição dos primeiros mercenários se restringe a ganhar dinheiro, ocupar um ou dois castelos e impor seus serviços a um senhor, mas no final do século XV tudo muda. O apetite aumenta conforme os êxitos: os condottieri aspiram agora a formar principados independentes. Alguns se fazem duques, enquanto duques se tornam condottieri. Entre esses grandes chefes podemos mencionar Muzio Attendolo, chamado de Sforza (1369-1424), camponês da Romagna cujo filho se tornará duque de Milão, e Braccio da Montone, que será senhor de Perúgia. | ||||||
Cada um deles organiza a sua própria escola de guerra. Os Bracceschi são conhecidos pela impetuosidade de seus ataques; os Sforzeschi, pela habilidade tática e pela rapidez das manobras. "A guerra na Itália torna-se cada vez mais refinada. No final de sua vida, Carmagnola trava uma grande batalha em que captura 5 mil cavaleiros e 5 mil soldados de infantaria: não houve mortos, embora o massacre dos cavalos tenha assumido proporções assombrosas", assinala o historiador britânico Anthony Mockler. O primeiro exército Na França, o Tratado de Arras, em 1435, marca o fim da Guerra dos Cem Anos e a expulsão definitiva dos ingleses. Assim como o de Brétigny, o de Arras deixa no país numerosos soldados sem batalha. Carlos VII resolve o problema de maneira original. Ele remunera os bandos e forma assim o primeiro exército permanente e regular da Europa. Entretanto, como esclarece Michel Pene em um artigo no Cahiers de Mars (1998), "a França continua a recorrer a contingentes suíços: Francisco I recruta cerca de 160 mil, que são depois organizados por Carlos IX em guardas suíças. (...) Somente no final do século XVII, as exigências da política levarão, quase em toda parte, à constituição de exércitos nacionais. A partir de então, os suíços especialmente passam a formar uma guarda particular a serviço dos reis da França e não tanto uma tropa de combate". Mas os soldados estrangeiros ainda constituem, freqüentemente, a maior parte dos exércitos "nacionais". A Inglaterra recorre a milhares de holandeses, austríacos e prussianos para conduzir as guerras de sucessão na Espanha e, depois, a Guerra dos Sete Anos e a guerra na América. Ainda que, como lembra Penne, "Kant condene o ofício de mercenário e Goethe reprove os mercenários derrotados por George Washington em 1776", somente com o advento do estado-nação o ofício se torna vergonhoso. Com a Revolução, 1 milhão de franceses passa a empunhar armas. Em 1798, o general Jourdan institui o alistamento geral, prática desconhecida na Europa desde o declínio do feudalismo. O estado-nação torna-se a nação armada. | ||||||
O massacre nas Tulherias é o "sinal do desaparecimento do mercenário profissional que vendia seus bons e leais serviços aos empregadores tradicionais", sugere Mockler. E acrescenta: "Após a Revolução Francesa considera-se que cada um deve lutar por sua pátria e que é desonroso servir a outro país." O século XIX testemunha o gradual desaparecimento dos soldados de aluguel na Europa. A guerra de 1870 é assim o primeiro conflito controlado inteiramente pelos estados-nações. Somente na segunda metade do século XX, e após o fim dos impérios coloniais na África, os mercenários reaparecerão nos campos de batalha. O best-seller de Jean Lartéguy, Les Chimères Noires, é baseado na história do coronel Trinquier em Kananga, no Zaire. O mercenário torna-se um aventureiro dos tempos modernos. É a época em que um certo Bob Denard, liderando os seus "desprezíveis", começa a se fazer conhecido. Nos anos 90, "a intensificação das atividades mercenárias em todos os continentes é, em parte, um efeito do aumento da mão-de-obra disponível produzido pelo fim da Guerra Fria e do apartheid", explicam Chapleau e Misser em Mercenários AS. Trata-se de uma reconversão para os ex-soldados do Pacto de Varsóvia e da África do Sul que, hoje. Fonte: |