Sociólogo francês propõe a religação dos saberes com novas concepções sobre o conhecimento e a educação
Márcio Ferrari
Ela é a idéia-chave de O Método, a obra principal do sociólogo, que se compõe de seis volumes, publicados a partir de 1977. A palavra é tomada em seu sentido etimológico latino, "aquilo que é tecido em conjunto". O pensamento complexo, segundo Morin, tem como fundamento formulações surgidas no campo das ciências exatas e naturais, como as teorias da informação e dos sistemas e a cibernética, que evidenciaram a necessidade de superar as fronteiras entre as disciplinas. "Ele considera a incerteza e as contradições como parte da vida e da condição humana e, ao mesmo tempo, sugere a solidariedade e a ética como caminho para a religação dos seres e dos saberes", diz Izabel Cristina Petraglia, professora do Centro Universitário Nove de Julho, em São Paulo.
Para o pensador, os saberes tradicionais foram submetidos a um processo reducionista que acarretou a perda das noções de multiplicidade e diversidade. A simplificação, de acordo com Morin, está a serviço de uma falsa racionalidade, que passa por cima da desordem e das contradições existentes em todos os fenômenos e nas relações entre eles.
Acima de tudo, o sociólogo francês defende a introdução da incerteza e da falibilidade na rigidez cultural do Ocidente. As limitações causadas pela compartimentação do conhecimento, de acordo com o educador, são responsáveis por manter o espírito humano em sua pré-história. Além disso, a tendência de aplicar conceitos abstratos vindos das ciências exatas e naturais ao universo humano resulta em desconsideração por aspectos como o ambiente, a história e a psicologia, entre outros. Um exemplo, diz o pensador, é a economia, a mais avançada das ciências sociais em termos matemáticos e a menos capaz de trabalhar com regularidades e previsões.
Para recuperar a complexidade da vida nas ciências e nas atividades humanas, Morin recomenda um pensamento crítico sobre o próprio pensar e seus métodos, o que implica sempre voltar ao começo. Não se trata de círculo vicioso, mas de um procedimento em espiral, que amplia o conhecimento a cada retorno e, assim, se coaduna com o fato de o homem ser sempre incompleto – o aprendizado é para toda a vida. "A reforma do pensamento pressupõe a consciência de si e do mundo", diz Izabel Cristina. "Ela decorre da reforma das instituições e vice-versa."
Nos processos em espiral, é necessário conhecer os conceitos de ordem, desordem e organização. Do ponto de vista da complexidade, ordem e desordem convivem nos sistemas. O que diferencia o todo da soma das partes é o que Morin denomina comportamento emergente. Nos seres humanos, a dinâmica entre ordem e desordem se subordina à idéia de auto-eco-organização: a transformação extrapola o indivíduo, se estendendo ao ambiente circundante. Uma vez que tudo está interligado, a solidariedade é tida pelo sociólogo como peça fundamental para superar aquilo que denomina crise planetária – uma situação de impotência diante de incertezas que se acumulam.
Ouvir os jovens
Não há espaço em que a fragmentação do conhecimento esteja tão explícita quanto na escola, com sua estrutura tradicional de parcelamento do tempo em função de disciplinas estanques. Por outro lado, a diversidade de sujeitos e objetos em busca de conexões fazem da sala de aula um fenômeno complexo, ideal para iniciar o processo de mudança de mentalidades defendida por Morin. A meta é a transdisciplinaridade. "Só convencido de que tudo se liga a tudo e de que é urgente aprender a aprender, o educador adquirirá uma nova postura diante da realidade, necessária para uma prática pedagógica libertadora", observa Izabel Cristina.
Contra a idéia arraigada de que a decomposição do conhecimento responde à suposta limitação intelectual das crianças, o pensador afirma que elas têm as mesmas inquietações dos adultos. Ouvir os alunos, naturalmente sintonizados com o presente, é a melhor maneira de o professor investir na própria formação. Esse também é o caminho para construir um programa de ensino focado no próprio estudante e suas referências culturais, porque as grandes metas da educação deveriam ser o desenvolvimento da compreensão e da condição humana. Segundo Morin, o profissional mais preparado para operar essa mudança de enfoque é o professor generalista dos primeiros anos do Ensino Fundamental, por ter uma visão ampla do processo.
Sete Saberes Indispensáveis
a fartura de informações.
Em sua defesa da religação dos saberes, Morin tocou numa inquietação disseminada nos dias atuais, quando a tecnologia permite um acesso inédito às informações. Por isso a Organização das Nações Unidas pediu a ele uma relação dos temas que não poderiam faltar para formar o cidadão do século 21. Assim nasceu o texto Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. A lista começa com o estudo do próprio conhecimento. O segundo ponto é a pertinência dos conteúdos, para que levem a "apreender problemas globais e fundamentais". Em seguida vem o estudo da condição humana, entendida como unidade complexa da natureza dos indivíduos. Ensinar a identidade terrena é o quarto ponto e refere-se a abordar as relações humanas de um ponto de vista global. O tópico seguinte é enfrentar as incertezas com base nos aportes recentes das ciências. O aprendizado da compreensão, sexto item, pede uma reforma de mentalidades para superar males como o racismo. Finalmente, uma ética global, baseada na consciência do ser humano como indivíduo e parte da sociedade e da espécie.
Biografia
Edgar Morin nasceu em 1921 em Paris. Seu nome verdadeiro é Edgar Nahoum. Fez os estudos universitários de História, Geografia e Direito na Sorbonne, onde se aproximou do Partido Comunista, ao qual se filiou m 1941. Teve papel ativo no movimento de resistência à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Depois do fim da guerra, participou da ocupação da Alemanha. Em 1949, distanciou-se do PC, que o expulsou dois anos depois. Ingressou no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), onde realizou um dos primeiros estudos etnológicos produzidos na França, sobre uma comunidade da região da Bretanha. Criou o Centro de Estudos de Comunicações de Massa e as revistas Arguments e Comunication. Em 1961 rodou o filme Crônica de um Verão em parceria com o documentarista Jean Rouch. Em seguida, fez uma série de viagens à América Latina. Em 1968 começou a lecionar na Universidade de Nanterre. Passou um ano no Instituto Salk de Estudos Biológicos em La Jolla, na Califórnia, onde acompanhou descobertas da genética. Redigiu em 1994, com o semiólogo português Lima de Freitas e o físico romeno Basarab Nicolescu, um manifesto a favor da transdisciplinaridade. Em 1998, promoveu, com o governo francês, jornadas temáticas que originaram o livro A Religação dos Saberes. Em 2002, a Justiça o condenou por difamação racial devido a um artigo no qual dizia que "os judeus, que foram vítimas de uma ordem impiedosa, impõem sua ordem impiedosa aos palestinos". Morin, que é judeu, pagou 1 euro como pena simbólica. Ainda diretor de pesquisas no CNRS, ele é doutor honoris causa em universidades de vários países e presidente da Associação para o Pensamento Complexo.
A Era da Incerteza
teoria quântica: novas visões de mundo.
O início do século 20 foi marcado por duas revoluções científicas: a teoria da relatividade de Albert Einstein (1858-1947) e a mêcanica quântica de Max Planck (1879-1955). Ambas obrigaram a humanidade a rever doutrinas e tiveram aplicações nas mais diversas áreas, da filosofia à indústria bélica. A teoria quântica, por exemplo, derrubou certezas da Física e as substituiu pela noção de probabilidade. A relatividade pôs em questão os conceitos de espaço e tempo. Para completar, na termodinâmica, Niels Bohr (1885-1962) chegou à necessidade de tratar as partículas físicas tanto como corpúsculos quanto como ondas. Quando tudo parecia incerto e relativo, a teoria do caos, já na segunda metade do século, veio, de certa forma, na direção oposta, ao demonstrar que também nos sistemas caóticos existe ordem. Essas e outras reformulações do conhecimento humano levaram Morin a definir sete "princípios-guia" da complexidade, interdependentes e complementares. São eles os princípios sistêmico (o todo é mais do que a soma das partes), hologramático (o todo está em cada parte), do ciclo retroativo (a causa age sobre o efeito e vice-versa), do ciclo recorrente (produtos também originam aquilo que os produz), da auto-eco-organização (o homem se recria em trocas com o ambiente), dialógico (associação de noções contraditórias) e de reintrodução do conhecido em todo conhecimento.
Para pensar
Na opinião de Edgar Morin, cabe aos professores do Ensino Fundamental começar a derrubar as barreiras entre os conhecimentos, por duas razões principais: eles têm a experiência generalista (pelo menos os que trabalham nas séries iniciais) e lidam com as crianças mais novas, que guardam uma curiosidade e um modo de pensar ainda não influenciados pela separação dos conteúdos em disciplinas. Você, como professor, se dá a liberdade de preparar aulas sem necessariamente parcelar o horário em períodos estanques?
Quer saber mais?
A Cabeça Bem-Feita, Edgar Morin, 128 págs., Bertrand Brasil, tel. (21) 2585-2000, 25 reais
A Religação dos Saberes, Edgar Morin, 588 págs., Ed. Bertrand Brasil, tel. (21) 2585-2000, 69 reais
Edgar Morin - A Educação e a Complexidade do Ser e do Saber, Izabel Cristina Petraglia, 120 págs., Ed. Vozes, tel. (24) 2246-5552, 20 reais
Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, Edgar Morin, 118 págs., Ed. Cortez, 22 reais
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