Apesar de sugerir inutilidade para muitas pessoas, a diversidade de talheres utilizados hoje é, na verdade, uma secular - e em alguns casos até milenar - herança cultural, que foi aperfeiçoada com o passar dos anos. As facas, por exemplo, acompanham o homem a muito tempo.
A faca que conhecemos hoje provavelmente surgiu na idade do bronze e do ferro, etapa de transição entre a pré-história e a história. Foi nesse período que ela começou a se diversificar. Assim, surgiram a faca de cozinha e a utilizada para comer; a apropriada para a caça e a específica para rituais.
As colheres apareceram na mesma época das facas, e ninguém se arrisca em dizer qual das duas surgiu primeiro. Essa ausência de informações gerou, inclusive, algumas fantasias, como a narrada no livro In Punta di Forcheta (Idealibri, Milão, 1998). Nele, os autores Ingeborg Babitsh e Mariosa Schiaffino levam a origem do talher a Eva (sim, ela mesma, a de Adão). Numa praia deserta, a personagem abre uma concha de ostra, observa seu desenho e descobre o utensílio perfeito para levar à boca substâncias líquidas. Sobre a colher, de concreto, sabe-se que os romanos inseriram o objeto nas refeições.
Os garfos, recheados de polêmicas, vieram bem depois, no século XI. Os registros mais antigos são de um candidato a santo católico, que criticou o hábito da princesa de Constantinopla e mulher do governante de Veneza, o doge Orseolo. Ela chegou à península Itálica com um objeto de duas pontas com o qual fisgava pequenos pedaços de alimento. Segundo o cardeal, o instrumento lembrava a lança com a qual o demônio infernizava os condenados ao fogo eterno. Além disso, impedia que a pessoa tocasse diretamente o alimento, considerado uma dádiva Divina. Coincidência ou não, ela faleceu pouco depois. Para muitos, a morte foi "castigo de Deus".
Séculos se passaram até a novidade chegar à França, por volta de 1530. A florentina Caterina de Médici, que mais tarde seria rainha, levou ao país um enxoval completo, com garfo, faca e colher. Um século depois, o instrumento reapareceu nos banquetes do rei francês Luís XIV, famoso por preconizar muito das boas maneiras à mesa existentes hoje. Foram necessários mais 200 anos até que, no século XIX, o "jogo de cena" finalmente se popularizou.
Os talheres seguiram o mesmo ritmo, e se diferenciaram.
Conhecer normas de etiqueta à mesa pode valer uma venda ou um elogio tanto quanto um traje adequado ou um inglês fluente. A segurança em uma refeição é fundamental para estreitar relações pessoais e profissionais. O simples fato de a pessoa não ficar nervosa por não saber o que fazer já é um grande avanço. O raciocínio e a desenvoltura não ficam bloqueados. A partir daí, a discussão ou a simples interação social ficam facilitadas.
A regra de ouro é começar a praticar em casa, mesmo que a pessoa ache desnecessário esse treinamento. Alimentar-se com o garfo na mão esquerda requer certa prática para quem não está acostumado. E o lar é o melhor lugar para aperfeiçoar as boas maneiras, porque não há pressões externas.
O Mise-en-place, que significa jogo de cena ou arrumação prévia, nada mais é que a maneira como os objetos são distribuídos à mesa. Ao contrário da confusão que algumas pessoas fazem, o objetivo é facilitar a vida de quem serve e de quem se alimenta. Para quem está comendo, vale a regra de utilizar sempre o talher que estiver mais para fora.
A diferenciação dos objetos visa adequar o talher aos vários pratos servidos numa refeição completa. A faca para peixe, por exemplo, não tem corte porque a carne é extremamente macia. Além disso, ela ajuda a separar espinhas. O mesmo vale para as taças. A utilizada para vinho branco é menor e a temperatura da bebida deve ser mais baixa. Na organização, ela fica mais próxima à mão direita porque acompanha o primeiro prato. A taça de água é maior porque é a mais utilizada. E todas devem ser seguradas pela haste para evitar o contato com as mãos.
A disposição dos objetos à mesa é também reflexo de intenções subentendidas, herdadas ao longo dos séculos. O ato de virar a faca para dentro, por exemplo, vem da idade média. A intenção do anfitrião é mostrar que está desarmado, uma espécie de sinal de paz para o banquete. O fato de o garfo ficar na mão esquerda e a faca na mão direita vem dos tempos de Luís XIV. A ordem existe até hoje porque todo o modelo foi concebido para pessoas destras, já que os canhotos eram discriminados.
O hashi (em japonês) ou k'uai-tzu (em chinês), chamado de "palitinho", também tem vida milenar. Ele é utilizado por povos do oriente desde a antigüidade, por volta do século IV. Naquela época, o instrumento era dobrado como se fosse uma pinça, representando o bico de um pássaro. A tradução do termo nipônico para o português também é simbólica. Na tradição shintoísta, hashi significa "ponte", que liga o homem e o alimento.
A maioria dos hashi é feita de madeira. Contudo, ossos, dentes de elefante, marfim, bambu e até metais são utilizados em sua confecção, que inclui ainda pinturas e decorações. O comprimento varia de 21 a 36 centímetros.
Em muitos casos, eles acabam se tornando objetos pessoais: cada um tem seu hashi.
Assim como os talheres ocidentais, o hashi tem diferenciações funcionais. Existem os específicos para comer, cozinhar e apanhar comida. Mas há também diferenças estéticas, inclusive de um país para outro. O k'uai-tzu é quadrangular de uma ponta à outra. Já o hashi diminui em uma das extremidades. O formato facilita a retirada dos ossos dos peixes.
Apesar da aparente simplicidade do "talher" oriental, alguns cuidados devem ser observados. O mais importante deles poderia inclusive endossar a desaprovação do cardeal italiano diante da princesa de Constantinopla. Para os orientais, espetar o hashi no arroz e deixá-lo na vertical é falta grave. Isso só é feito em momentos de oração, de reflexão e homenagem a antepassados. Também não é recomendável deixá-lo sobre qualquer tigela, na horizontal. Para descansar o hashi, vale a pena improvisar um hashioki (descanso para palitinhos).
Fonte: www.pratofeito.com.br