26.5.11

Na mira da lei - No Brasil, a legislação que regulamenta o porte de armas remete ao período colonial

José Eudes Gomes

Imagem de um componente da tropa portuguesa no Brasil dos setecentos. Essa representação faz parte da coleção Uniformes militares do Brasil colônia 17... . / Museu Histórico Nacional, desenho de Walsh Rodrigues

Imagem de um componente da tropa portuguesa no Brasil dos setecentos. Essa representação faz parte da coleção Uniformes militares do Brasil colônia 17... . / Museu Histórico Nacional, desenho de Walsh Rodrigues

Em meio a uma nova discussão sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições em nosso país, vale lembrar que a legislação referente ao uso e porte de armas no Brasil remonta aos tempos coloniais.

As ordenações filipinas – código de leis português promulgado em 1603 e válido para todos os domínios ultramarinos lusitanos, dentre os quais o Brasil – continham tópicos especialmente dedicados à regulamentação e controle do porte de armas pela população. Na mira da lei estavam tanto as armas de fogo como as brancas.

O código estabelecia que, apesar de tolerado durante o dia, o uso de espadas, punhais e adagas era proibido à noite. Não era permitido circular com espadas desembainhadas ou maiores de cinco palmos e meio, fosse de dia ou de noite, sendo que arcabuzes com cano menor que quatro palmos de cumprimento também estavam banidos. Ficava vetada ainda a fabricação, venda e conserto de armas com estas especificações. Ao anoitecer, era expressamente proibido o porte de armas de fogo carregadas, especialmente espingardas, arcabuzes, carabinas e pistolas. Já os escravos, por sua vez, não poderiam andar armados sem a presença de seus senhores ou sem a sua autorização. Em caso de infrações, a lei previa prisões, açoites públicos, apreensão das armas e pagamento de fianças. Para incentivar a obediência às leis, determinava-se que aqueles que denunciassem o uso de armas proibidas receberiam parte da multa paga pelo infrator.

Havia ainda privilégios associados às armas. Apesar de não terem autorização para usá-las, clérigos e religiosos poderiam carregar suas armas quando estivessem em viagem ou fora das cidades, vilas e lugares onde morassem. A legislação estabelecia ainda que o direito a cada tipo de armamento dependia diretamente da qualidade social do indivíduo. Enquanto certos artefatos eram privilégios de determinadas categorias sociais, como nobres, fidalgos e oficiais régios, outros grupos sociais, como ciganos, criados e escravos, eram alvo de proibições e restrições. Desse modo, além de serem utilizadas como instrumentos de prestígio e distinção, as armas marcavam e reproduziam as diferenças sociais existentes.

Eram previstas penalidades severas para aqueles que utilizassem armas para a prática de crimes. Os que matassem com espingarda deveriam receber pena de morte e depois teriam as mãos decepadas em pelourinho, à vista de todos. Crimes praticados com armas como espadas e pistolas de comprimento curto, que poderiam ser mais facilmente ocultadas, receberiam punição mais rigorosa. Açoites públicos, amputações, degredos, prisão, confisco de todos os bens e pagamento de penas pecuniárias também estavam previstos para quem praticasse ou mandasse praticar atentados e ferimentos com armas de fogo ou brancas.

Assim como o direito de portar armas, a severidade das penas impostas aos que as utilizassem para a prática de crimes também variava de acordo com a qualidade social do agressor e da vítima: enquanto a gente simples receberia punições rigorosas, aos nobres e pessoas de maior estatuto social eram reservadas penalidades mais brandas.

Com o passar do tempo, numerosas portarias, editais e leis complementares - chamadas de leis extravagantes - foram publicadas na América portuguesa com a intenção restringir o porte de armas entre os seus moradores. Nas diferentes capitanias americanas, diversas ordens régias decretaram a proibição expressa do uso de armas de fogo por escravos fugidos ou aquilombados e índios “tapuios”, isto é, insubmissos. Ficava-lhes ainda terminantemente proibida a venda de armamentos ou pólvora. Já a lei de 29 de março de 1719, por exemplo, proibia o uso de pistolas, facas, adagas, punhais, tesouras grandes ou “qualquer outro instrumento que possa fazer ferida penetrante”. Outra lei, datada de 25 de junho de 1749, reforçava tais proibições. Uma determinação régia de 1761 ordenava que “se não consentissem armas de qualidade alguma” em posse dos ciganos, sendo que um edital publicado em 1789 reforçava a ordem de prisão de todos aqueles fizessem uso de armas proibidas.

Não deixa de ser irônico considerar que uma explicação para a publicação de tantas leis era justamente a grande dificuldade em fazer com que as já existentes fossem efetivamente cumpridas. Por conta do número insuficiente de soldados pagos pelo rei, a participação de tropas de homens armados – inclusive índios e escravos – sob o comando de poderosos locais era indispensável para garantir a conquista de novas áreas, o combate a índios, a destruição de quilombos, a repressão de revoltas e a manutenção da ordem estabelecida. Isso tornava as dificuldades de fiscalização e controle por parte das autoridades certamente enormes, o que se somava ainda às grandes dimensões do território e à crônica escassez de funcionários.

Conforme apontaram insistentemente diversas autoridades coloniais, a principal razão para tanta preocupação com a circulação de armas era a avalanche de violência, crimes e desordens que causavam. Os “autos de querela e denúncia” – nome que recebiam os processos criminais da época – estão repletos de acusações de crimes cometidos com armas proibidas e justificam a preocupação das autoridades em relação à grande difusão do uso de armas e ao hábito de andar armado, extremamente vulgarizado na sociedade colonial.


José Eudes Gomes é doutorando em história pela Universidade de Lisboa, com bolsa da Capes, e autor do livro Um escandaloso theatro de horrores: a capitania do Ceará sob o espectro da violência (UFC, 2010).


Ordenações filipinas. Disponível em: http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/

LARA, Silvia Hunold. "Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-1808)". Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

ANASTASIA, Carla Maria Junho. "Geografia do crime: violência nas minas setecentistas". Belo Horizonte: UFMG, 2005.

GOMES, Flávio dos Santos. "A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX)". São Paulo: Unesp, 2005.

Fonte: