Viena, no começo do século XX, era uma cidade alegre e despreocupada. Tomava-se muito chá com bolo em superlotadas confeitarias. Ouvia-se muita valsa e muita opereta de Strauss. Como toda a Europa, Viena vivia gozando as delícias da "belle époque".
Nesse cenário de opereta, algumas pessoas mais sensíveis preferiam ficar à margem, pois eram capazes de sentir o leve odor de decadência que emanava daquelas frivolidades mundanas e da melancolia dos parques barrocos no outono. Especialmente um jovem loiro, de modos simples, temperamento moderado e olhos muito vivos, que ali nascera a 12 de agosto de 1887. Ele contemplava a comédia que se desenrolava à sua volta, certamente com uma ponta de sutil ironia, posto que era extremamente inteligente e começava a tomar contato com alguns problemas graves na ciência que escolhera para especializar-se. E passaria a ser um dos protagonistas do que Einstein chamou "o grande drama das idéias".
O drama começara noutro tempo e noutro cenário. O prólogo foi escrito 2300 anos antes por Aristóteles, quando formulou a doutrina segundo a qual todo movimento está ligado a uma força: quando esta cessa de agir, o corpo chega à imobilidade. Era uma concepção puramente intuitiva que seria posta em xeque no século XIV, com o trabalho de Buridan e outros cientistas da Escola de Paris. Transcorreriam ainda três séculos para que fosse definitivamente destronada, encerrando a pré-história da física.
O primeiro ato, propriamente dito, será escrito no século XVII com a figura gigantesca de Galileu, que inicia a mecânica clássica, e Isaac Newton, que constrói um sólido edifício cuja coluna de sustentação é a lei da inércia. Sobre esse alicerce firme e uma rigorosa metodologia experimental e matemática, os físicos puderam elaborar uma mecânica que está na base de todo o conhecimento do Universo. A astronomia de Laplace levou-a ao seu máximo esplendor.
O cenário do drama estava, agora, pintado em cor-de-rosa. Mas não iria continuar assim por muito tempo. Outros fenômenos, como os eletromagnéticos e os da propagação do calor e da luz, iriam entrar em cena, abrindo uma crise. Entre a mecânica newtoniana e a nova havia uma diferença essencial: enquanto esta última se refere a "meios contínuos", a primeira, que abrangia astros e projéteis balísticas, falava em "pontos materiais" descontínuos. Essa diferença iria causar sérias dificuldades. Apesar disso, tal era a perfeição da mecânica clássica e tão espetaculares os seus resultados, que os físicos puseram-se a aplicá-la aos novos campos.
Entre eles, James Clerk Maxwell (1831-1879) conseguiu colocar alguma ordem na física das ondas eletromagnéticas, encontrando as equações que regulavam todos os fenômenos conhecidos, nesse campo, com a mesma segurança com que as de Newton descreviam os fatos da astronomia.
A crise, entretanto, irrompeu quando as equações de Maxwell se revelaram incapazes de tratar tanto os fenômenos eletromagnéticos e mecânicos nos quais os movimentos tinham velocidade próxima à da luz, quanto os fenômenos da física microscópica.
Abria-se assim a oportunidade para que outros protagonistas entrassem em cena, a fim de mudar o curso da ação. Um deles, chamado Albert Einstein, encarregou-se da questão dos movimentos dos corpos que se aproximam da velocidade da luz. A partir das equações de Maxwell, foi levado à crítica das idéias de espaço e tempo e formulou a teoria da relatividade.
O outro era aquele jovem loiro, de modos simples, temperamento moderado e cujos olhos vivos começavam a esconder-se atrás de lentes em armação de ouro. Chamava-se Erwin Schrödinger.
O papel que lhe ficara reservado no drama era resolver a impossibilidade de tratar os fenômenos microscópicos por meio das equações da mecânica clássica. Esse problema podia ser formulado assim: por que os elétrons deviam mover-se apenas em órbitas com certos valores definidos e distintos da energia e do momento angular?
Nenhuma particularidade da estrutura das equações clássicas permitia a explicação do fato. As hipóteses formuladas por Bohr e Sommerfeld pareciam adequadas para solucionar o problema particular do átomo de hidrogênio, mas não para construir uma teoria que abrangesse todos os fenômenos microscópicos.
Schrödinger encontrou a pista para a solução no trabalho de Louis de Broglie. Este físico francês tinha, em 1924, descoberto o duplo comportamento da matéria. Um elétron, por exemplo, pode comportar-se ora como partícula material, ora como feixe de ondas, e o comprimento destas depende de sua quantidade de movimento. A matéria apresenta-se, portanto, sob dupla forma, como corpúsculo ou como onda. A relação estabelecida por Broglie, no entanto, descrevia apenas o comprimento de onda das partículas, não estabelecendo sua equação fundamental. De qualquer modo, estava ali a chave com a qual Schrödinger iria abrir as portas para a criação da mecânica quântica.
Em sua inteligência astuta, surgiu uma interrogação: se as partículas microscópicas comportam-se como ondas, quando se. movem no espaço, porque então não procurar descrever seu movimento de ondas, ao invés de átomos, e abandonar completamente o caminho seguido pelas equações newtonianas da mecânica dos pontos materiais, encontrando para esse movimento equações do tipo das de Maxwell?
Com esse fio condutor, Schrödinger lançou-se ao trabalho, tentando identificar, no comportamento das partículas, as propriedades que permitissem estabelecer sua equação de onda. Chegou então à famosa equação que tomou seu nome, vindo a ser a fórmula básica da mecânica ondulatória, e valendo-lhe a obtenção do prêmio Nobel, juntamente com o físico inglês Paul Dirac, em 1933.
A honraria vinha coroar uma brilhante carreira universitária, que se iniciara na Universidade de Viena, onde se formou e depois lecionou até 1920, quando se transferiu para Jena. O mesmo ano vai encontrá-lo como professor extraordinário na Technische Hochschule de Stuttgart, e no ano seguinte nas universidades de Breslau e Zurique. Em 1927 sucede a Max Planck, criador da mecânica quântica, na Universidade de Berlim, e participa do Kaiser Wilhelm Institute, organização científica excepcional, que congregava os maiores cientistas da época.
Seu trabalho nos domínios da física foram além da criação da mecânica ondulatória, muito embora esta permaneça como seu maior feito. Pesquisou desde o campo das vibrações até o do calor específico dos cristais, da mecânica quântica à espectroscopia e à teoria dos campos.
Mas sua inteligência criadora não parou aí. Movido por uma visão sintetizadora do conhecimento científico, penetrou na esfera da biologia, até então separada da física por um abismo. Em 1945 vem à luz o resultado de seus esforços para compreender os seres vivos, quando publica What is Life?, em que sugere uma hipótese para explicar o que os físicos chamam de salto, e os biólogos de mutação. Sustenta que, à luz da mecânica quântica, é legítimo admitir que um novo arranjo estrutural determina o sucessivo desenvolvimento de um organismo vivo. Com esse trabalho tornou-se um dos precursores da biofísica.
Indo além do plano das ciências naturais, penetrou no universo da reflexão filosófica numa série de conferências proferidas na Universidade de Dublin, e posteriormente editadas sob o título Science and Humanism, em 1951. Com elegância de estilo, clareza de idéias e simplicidade de exposição, aborda o problema das implicações teóricas e morais da nova física, especialmente o "princípio das incertezas de Heisenberg", segundo o qual não é possível determinar, simultaneamente, a posição e a velocidade de um elétron. Com admirável isenção, refuta os colegas que consideravam o princípio das incertezas como uma questão subjetiva. Ouanto à sua vinculação com o livre arbítrio, lembrando Cassirer, mostra como uma coisa nada tem a ver com a outra. Primeiro, porque a mecânica quântica só é indeterminista quando aplicada a fenômenos isolados, e segundo, porque a conduta humana, em sua globalidade, não deixa lugar para a estatística.
Um intelecto privilegiado como o de Schrödinger, que não se limitava a uma especialidade, mas se preocupava com o saber como um todo, que procurava tornar o conhecimento do mundo físico parte de uma visão humanista muito mais ampla, não poderia deixar de ser um cientista incômodo ao sistema social e político, que começava a carregar as nuvens da Europa de então. O nacionalsocialismo toma o poder na Alemanha em 1933 e Schrödinger é obrigado a deixar a cátedra de física da Universidade de Berlim. Dirige-se então para Oxford, na Inglaterra, e Graz, na Áustria, que também é obrigado a deixar, logo após sua anexação pelos nazistas. Aceita então o convite de Eamon de Valera, primeiro-ministro irlandês, e torna-se "senior professor" do Institute for Advanced Studies de Dublin. Na Irlanda, sua segunda pátria, permanece até 1956, quando retorna a Viena, onde vem a falecer em 4 de janeiro de 1961.
Fonte:
http://br.geocities.com/saladefisica3/biografias/schrodinger.htm