Um dos dramas perenes de uma democracia é quando um sistema popular, por força das circunstâncias, vê-se obrigado a assumir posições imperialistas, ser opressivo e cruel para com os outras nações que lhe estão submissos. Como solucionar a contradição entre o fato de um regime proclamar-se em casa defensor maior dos interesses gerais do povo e negá-los aos outro, aos de fora, os direitos que a sua própria gente possui? Esta contradição foi intensamente discutida nas assembléias populares de Atenas ao longo da Guerra do Peloponeso, narrada por Tucídides, conflito que, no século 4 a.C., por 27 anos ensangüentou a Grécia Antiga.
A revolta em Mitilene
Hoplitas gregos na época da Guerra do Peloponeso
"Muitas vezes no passado, senti que a democracia é incompatível com a direção de um império...todas as vezes que sois induzidos em erro por seus representantes ou cedeis por piedade, vossa fraqueza vos expõe a perigos e não conquista sua gratidão, sois incapazes de ver que vosso império é uma tirania."
Discurso de Clêon (Tucídides – A Guerra do Peloponeso, livro III, 37)
Os aristocratas da cidade-estado de Mitilene, na ilha de Lesbos, terra da sacerdotisa Safo e do filósofo Teofastro, arrastando o povo consigo, haviam-se rebelado contra Atenas, cabeça de uma Simaquia, uma confederação de cidades livres. A guerra civil, fazia já alguns anos, desde 431 a.C., grassava pelo mundo helênico, jogando os espartanos e seus aliados contra os de Atenas. Como a cidade do Pártenon dominava o mar, uma expedição punitiva foi de imediato preparada. Sitiada pelas trirremes e pelos hoplitas do general Paques, o comandante atenienses, a insubordinada Mitilene não resistiu muito. Os rebelados, apesar de não estarem submetidos a nenhum tipo de jugo, alegaram a seu favor que Atenas, com o tempo, mudara de posição.
Ela havia ganho o respeito da maioria dos gregos por lutar bravamente, em terra e no mar, contra os imperialistas persas, fazendo-os recuar para a Ásia, mas em seguida, logo que constituíram uma associação defensiva, chamada de Liga de Delos, seus cidadãos foram tomados de ares imperialistas.
Aproveitando-se dos tributos recolhidos entre mais de 300 cidades, Péricles lançara-se na construção do Pártenon, símbolo da grandeza de Atenas, o que desgostara enormemente os demais integrantes da confederação. Para eles o dinheiro era da coletividade e não de uma cidade só. Desta maneira, passo a passo, os atenienses de protetores passaram a assumir a posição de algozes das cidades irmãs.
Capturados por Paques, os principais cabecilhas insurretos de Mitilene foram enviados para Atenas para serem punidos. O povo reunido em assembléia, furioso com o que entendiam ser uma traição deles, exigiu das autoridades uma solução radical. Tolhidos os olhos pelo sangue da vingança, intimaram, exaltados, que não fossem só os chefes os sacrificados. Que Paques recebesse a autorização de passar no gládio todos os adultos, mesmo os do povo, e que as mulheres e crianças deles fossem vendidas como escravas. A punição tinha que ser exemplar para que nenhuma outra cidade aliada ousasse revoltar-se sem razão. No dia seguinte a tal terrível determinação, uma nau ateniense partiu para a Ilha de Lesbos com a ordem do extermínio.
Insuflara-os ainda mais o discurso de Clêon, um representante popular, que, temendo que “ a cólera do ofendido contra o ofensor vai-se amortecendo com o passar do tempo”, cobrou do povo ali reunido uma posição firme e definitiva. Que se matassem a todos, nobres e povo! Doravante eles, os de Atenas, não deveriam deixar-se dominar pela tolerância e piedade ou fraqueza, voltando atrás no que haviam acertado.
O risco pior, assegurou ele, era “ a falta de firmeza nas decisões”. Que “não se deixassem levar pelos três sentimentos mais nocivos a quem exerce o império: a compaixão, o encanto pela eloqüência e a clemência” ...”que se vingassem sem fraquejar” (Tucídides, III, 40). Clêon tocara no âmago da questão.
Uma democracia que se tornava num império não podia ser magnânima. Por mais que repugnasse os seus integrantes, ela era tão tirânica como qualquer déspota oriental. A alternativa era “ desistir do império e viver sem riscos como homens virtuosos”.
A voz da tolerância
Para sorte dos mitilenses, em meio a reunião, surgiu a voz da indulgência. Diôdotos, um homem brando, tomou a palavra e conseguiu reverteu a situação. Mostrou que era um absurdo sacrificar-se toda a população, pois a pena de morte não previnia nada. Sendo os homens temerários por natureza, quando se engajam afoitamente numa ação, nem a lei nem ameaças os fazem retroceder. O melhor a fazer é deixá-los arrependerem-se, dar-lhes uma chance para repararem o erro, pois uma punição excessivamente severa dos mitilenses traria evidentes prejuízos econômicos.
Além disso, um regime democrático punir um povo ex-aliado era cortar pela raiz qualquer apoio futuro que pudessem ter junto aos setores populares de outras cidades. Arrependida dos seus exageros, a assembléia ordenou então que uma outra nave, tripulada por remadores velozes, partisse para Mitilene. Durante alguns dias, os dois barcos, um com a sentença de morte, que partira antes, e o outro, portando o pergaminho da clemência, navegaram quase que lado a lado. Para a boa fama de Atenas, o perdão chegou antes que Paques mandasse afiar os fios das espadas, mas a grande cidade não escapou da contradição de ser uma democracia dona de um império...
Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.)
Fonte: educaterra.terra.com.br