RESUMO
Este artigo tem por objetivo apresentar e discutir algumas das causas que tiveram como efeito a pedagogia produzida nos dias de hoje, remontando ao século XIX a origem das idéias que levaram ao desenvolvimento doself-government e do trabalho em grupo, métodos situados na base do movimento escolanovista surgido no século XX, que deu à reflexão sobre a criança e a escola seu caráter instrumentalista atual. Os autores se valem das literaturas de época e de trabalhos contemporâneos para mostrar que os estudos no campo pedagógico não podem prescindir das explicações sobre as teorias e as práticas escolares do passado, sendo essa uma condição necessária para a compreensão do que está sendo realizado no presente.
Unitermos: Humanidades. Educação, história. Ensino.
SUMMARY
This article aims to present and discuss some of the causes that had as an effect the pedagogy produced nowadays, the origin of ideas that led to the development of the self-government and of the group work dates back to the 19th century, methods which are based on the New School Movement that emerged in the 20thcentury have given its actual instrumental characteristic to the reflection on the child and the school. The authors use the literature from that time and contemporary essays to show that the studies on the pedagogical area cannot dispense with the explanations about the theories and school practices from the past, this is a necessary condition to understand what is being carried out in the present.
Key words: Humanities. Education, history. Teaching.
INTRODUÇÃO
Para compreender a pedagogia do nosso tempo, não basta considerá-la como ela se apresenta hoje, mas é preciso explicá-la do ponto de vista de sua produção histórica, conhecendo-se como foi formada, a origem de suas características distintivas, as circunstâncias que, no passado, determinaram sua natureza atual e quais as causas que conduziram ao desenvolvimento observado.
Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo demonstrar que as doutrinas pedagógicas apresentam continuidade, sem o que não poderiam ser completamente abordadas. Busca-se determinar as bases históricas do pensamento constituído sob a influência das recentes tecnologias da informação, valorizando-se o que existiu antes e sendo apresentado um estudo de gênese em pedagogia. O trabalho pretende, com isso, debater as utopias que, muitas vezes, caracterizam os estudos pedagógicos, transformando-os em meros produtos livrescos que estão longe de apreenderem a realidade.
Procurando estabelecer as condições de tempo e lugar em que as teorias foram produzidas, os autores apresentam, primeiramente, sua visão sobre a importância do self-government como método de ensino. O self-government, no entanto, não se encontra isolado no espaço da pedagogia, sendo simultâneo de outro método extremamente importante, o trabalho em grupo. Sobre este último, os autores pensam ter demonstrado que ele tem como causa os princípios do ensino mútuo utilizado na Inglaterra no século XVIII, que, por sua vez ,remonta à Didáctica Magna de Coménio1, que viveu no século XVII.
Considera-se que John Dewey2-4 foi o precursor do escolanovismo da primeira metade do século XX, posição que os autores assumem ao apresentarem o instrumentalismo, método que ele criou, como contendo a síntese de toda a obra pedagógica produzida na época. A partir da síntese do pensamento deweyniano, explica-se finalmente a segunda metade deste miraculoso século, que produziu um número infindável de tecnologias e criou teorias como nunca antes vistas, prometendo para o futuro, por meio da genética e segundo os princípios éticos que a ela devem estar afeitos, a formação de um tipo de homem que se aproxima daquele historicamente idealizado pela pedagogia.
Cientes de que há muitos problemas a serem solucionados em seu texto, os autores agradecem as possíveis contribuições dos leitores.
O MÉTODO SELF-GOVERNMENT E A UTILIZAÇÃO DA COOPERAÇÃO ENTRE OS ALUNOS NA PRÁTICA ESCOLAR
Em 1925, foi fundada na cidade de Genebra o Bureau International d'Éducation (BIE), uma organização não governamental cujos objetivos eram os de centralizar a documentação relativa ao ensino público e privado da Europa e outros países ocidentais, aplicando-se à investigação científica no campo da educação e servindo como centro de coordenação para instituições associadas. Em 1929, Jean Piaget tornou-se diretor do BIE, esclarecendo que o método de trabalho dessa organização era o da pedagogia comparada: "sem tomar partido a favor ou contra qualquer procedimento educacional, esta Agência tenta fazer compreender porque cada um adotou essa ou aquela metodologia e a que resultados esta conduziu efetivamente na prática da vida escolar"5.
O BIE caracterizou-se como um centro de reflexão e divulgação de um grande número de experiências internacionais, mormente no que diz respeito às reformas implementadas a partir da virada do século XIX, baseadas na crítica à escola em termos da recriminação do seu verbalismo e dos métodos tradicionais, em que a autoridade ocupa um lugar excessivo e impede a criança de descobrir a verdade por si mesma.
No lugar da relação de autoridade exercida pelo professor sobre o aluno, a nova pedagogia tinha como palavras de ordem a liberdade para aprender, o trabalho em grupo e a auto-educação ou self-government. Este último compreende a autonomia intelectual do aluno e a limitação dos poderes do professor, utilizando uma grande quantidade de procedimentos para conseguir modificar o vínculo caracteristicamente autoritário que tende a se estabelecer na prática educativa tradicional, a qual subentende a cooperação dos jovens mediante a coerção dos mais velhos. Nas palavras de Parrat e Tryphon6, "trata-se de um procedimento de educação que confia às crianças a organização da disciplina escolar. Pelo self-government, o estudante desenvolve em classe uma solidariedade nova, o sentimento de igualdade, da justiça e a noção de sanção fundada na reciprocidade".
Há três teses centrais que visam a esclarecer o conceito de self-government: em primeiro lugar ele surge como uma noção psicológica; depois aparece como um método da pedagogia, e finalmente aplica-se na prática escolar a diversos tipos de educação moral, intelectual e social.
Nas primeiras décadas do século passado, a pedagogia viu-se surpreendida pela enorme quantidade de aplicações fornecidas pelo conhecimento do self, patrocinada pela psicanálise de Sigmund Freud e pelos estudos realizados por Jean Piaget sobre o funcionamento da psicologia infantil. A teoria freudiana desvendou a natureza dos instintos primitivos inatos que acompanham o indivíduo por toda a sua vida, enquanto que os estudos piagetianos mostraram como se dá o nascimento da inteligência e como essa se transforma pelo processo de socialização. As regras morais e as formas lógicas de pensamento são sistematicamente produzidas no interior dos grupos sociais, e uma grande regra jurídica agrupa todos os indivíduos num só corpo de convivência, que pode ser, por exemplo, o Estado. A criança imita os mais velhos e durante o longo processo de adaptação ao universo adulto, ela vai se libertando do egocentrismo ligado aos instintos primitivos, por meio do longo processo em que a sua personalidade se forma. Para Freud7, "quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, [...] cria para si mesmo os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção". Para Piaget5, "na medida em que a moralidade é adquirida de fora, ela permanece heterônoma e produz uma espécie de legalismo ou 'realismo moral', no qual os atos não são avaliados em função das intenções, mas de sua concordância externa com a regra". Dessa forma, o self-government é o mecanismo segundo o qual o indivíduo se adapta à moralidade dos pais e dos adultos em geral, conduzindo seus instintos primitivos para o plano do julgamento sobre suas ações e as do grupo social a que pertence.
Nos grupos em que a igualdade ou estado de direito suplanta a autoridade, a coerção desaparece e dá lugar à cooperação, de forma que o respeito deixa de ser unilateral e torna-se mútuo. Nesse caso, o grupo se retroalimenta pelos próprios progressos alcançados e a cooperação suplanta a simples obediência às regras impostas. Enquanto a coerção produz como resultado a afirmação de regras de socialização verdadeiras e já testadas pelo grupo, a cooperação resulta no contrário, ou seja, na constituição de um método que permite ao espírito superar incessantemente a si mesmo e situar as normas morais acima dos estados de fato. Dessa forma, o self-government é, antes de tudo, um conjunto de regras de socialização que tangem à formação da personalidade do ponto de vista dos valores morais, que baseado na idéia de cooperação e reciprocidade, visa a comprometer a criança com a administração da classe, dando-lhe um certo número de responsabilidades, bem como levar os alunos mais velhos a julgar e punir as possíveis infrações cometidas pelos demais contra as regras de funcionamento da sala de aula. Os dados fornecidos pelos estudos empíricos sobre a psicologia da criança permitem aplicar o método do self-government segundo a evolução da idade dos alunos, conforme mostrado noQuadro 1.
Entre os temas da nova educação elaborados desde o início do Século XX, a aplicação pedagógica do self-government foi, sem dúvida, um dos mais significativos. As novas perspectivas abertas pelo método tiveram como ponto principal a diversificação da relação professor-aluno, sendo possíveis todas as transições entre uma espécie de monarquia constitucional, na qual o adulto limita-se a confiar certas funções à criança, e uma democracia igualitária, em que o professor desfruta exatamente dos mesmos direitos que os educandos. As informações recolhidas pelo BIE mostraram que o sucesso do uso do self-government, no que tange à melhoria da disciplina escolar nas diversas partes do mundo, dependia da passagem do princípio da cooperação imposta pela obediência mediante a ação verbal do professor, para a centralização das atividades nos interesses intelectuais e na socialização dos alunos. Nos casos em que a disciplina desejável para o bom desempenho escolar dependia de uma ênfase maior no ensino verbal tradicional, a utilização do método só obtinha sucesso nas classes mais adiantadas. No entanto, observava-se que quanto mais cedo as regras de compromisso da criança com a administração da sala fossem exeqüíveis, tanto maior era o efeito sobre a disciplina no plano da socialização e, também, sobre o rendimento escolar no plano intelectual. Assim, com o uso do self-government, a disciplina escolar, um propósito sempre primordial no que diz respeito à forma como são estabelecidas as relações entre professor e alunos, deixou de ser fundamentalmente uma imposição do primeiro, para se constituir no plano do próprio interesse destes últimos.
No que diz respeito ao aspecto das sanções impostas pelos próprios alunos àqueles que transgrediam as regras disciplinares, observou-se que no caso de praticarem a pouco tempo o self-government, as crianças imbuídas do espírito autoritário no qual foram criadas impunham aos colegas faltosos, que eram chamadas a julgar, punições muito mais severas do que os próprios adultos aplicariam. Mas quando o método fazia parte da rotina escolar há mais tempo, as relações sociais constituídas pela cooperação fundamentada na autonomia colocavam em questão o valor moral da idéia de sanção, e substituía a punição propriamente dita por um sistema de medidas de reciprocidade, calcadas na ruptura dos laços de solidariedade em função da gravidade do ato culposo. Dessa forma, o culpado era simplesmente afastado dos cargos honoríficos, das responsabilidades e até, no limite, privado de seus direitos dentro da sala de aula, ou seja, momentaneamente segregado pelo grupo cujas regras ele violou.
Os resultados apresentados ao BIE mostraram que os objetivos de solidariedade e construção de hábitos sociais saudáveis dentro das escolas foram amplamente observados pela aplicação do método do self-government na primeira metade do século XX. A questão da educação intelectual, que do ponto de vista atual corresponde ao desempenho discente, apresentou um indubitável enriquecimento, explicado pelo fato de que a cooperação das crianças, em função do estabelecimento de regras disciplinares por elas próprias consentidas, facilitava a pesquisa da verdade e o interesse pelos estudos.
O método original do self-government exigia que fossem escolhidos líderes entre os alunos para resolverem os problemas práticos de administração da sala de aula e para presidirem os "tribunais de estudantes". As experiências mostraram que os estudantes preferiam um líder absoluto a um tipo de presidente parlamentar, sendo o chefe escolhido mais pelas suas qualidades pessoais do que pela diferença de idade. A respeito disso, uma questão importante aparece em Piaget5: "o método do self-government é especialmente adequado a certos ideais sociais e políticos, ou pode ser utilizado seja qual for a estrutura das sociedades adultas dominantes em função das quais as crianças são educadas?" O parecer do autor é que o self-government era suficientemente plástico para ser utilizado em qualquer forma de organização social ou política, quer se tratasse dos diversos tipos de democracia liberal ou das múltiplas variedades de regime autoritários. Mas a insistência no princípio dos líderes absolutos mostrou que historicamente esse método educacional foi mais bem utilizado pelos países onde vigoraram regimes autoritários, como na Alemanha, sociedade em que a nova pedagogia teve um extraordinário sucesso na primeira metade do Século XX.
O TRABALHO EM GRUPO COMO TRANSFORMAÇÃO DO MÉTODO DO ENSINO MÚTUO ADOTADO NO SÉCULO XIX
Segundo o manual de História da Pedagogia, de Abbagnano y Visalberghi8, Genebra foi o centro cultural europeu onde se realizou a mais intensa e fecunda elaboração dos métodos da nova escola, destacando-se, antes de Jean Piaget, Edouard Claparède e Adolphe Ferrière. Este último, em 1899, fundou naquela cidade a Oficina Internacional das Escolas Novas, com a finalidade de reunir informações e coordenar iniciativas de estudar no campo psicopedagógico os resultados das experiências educacionais em voga. Foi a partir dessa instituição que, em 1925, se organizou o BIE, cuja atividade benemérita tornou-se internacionalmente reconhecida, dirigido respectivamente por Ferrière, Pierre Bovet e depois Piaget. Em 1921, na cidade de Calais, Ferrière participou da fundação da Liga Internacional para as Escolas Novas, que publicou em diversos países revistas pedagógicas de vanguarda, como a francesa Pour L'ere Nouvelle, a inglesa The New Era, e a norte-americana Progressive Education. Foi Ferrière quem popularizou os métodos ativistas a partir das escolas alemãs e suíças, atendendo infatigavelmente a convites vindos de dentro da Europa e de todo o mundo ocidental para visitar e divulgar os novos preceitos metodológicos. Em 1917, Bovet utilizou o termo "escola ativa" para se referir às instituições que praticavam os novos métodos. Antes disso, em 1912, a Oficina Internacional das Escolas Novas havia fixado em um número de trinta os principais pontos metodológicos e, depois, em 1920, Ferrière publica a obra La Escola Activa, com a finalidade de estabelecer os sentidos pedagógicos de outras expressões que surgiram, tais como "educação ativa" e "métodos ativos". Em 1930, Ferrière visitou a América do Sul, proferindo conferências no Equador, Peru, Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai. O final da visita contemplava o Brasil, mas os acontecimentos políticos desencadeados pela Revolução de 1930 não o deixaram desembarcar do navio em que viera da região platina. Impossibilitado de cumprir os compromissos agendados no Rio de Janeiro, ele seguiu diretamente para Portugal e Espanha.
O grande desenvolvimento alcançado pela pedagogia nas primeiras décadas do século XX impôs profundas reformas no âmbito da organização estrutural da escola. Claparède9 distinguiu quatro pontos principais nessas reformas, que incorporavam o ideário da administração escolar vinculada aos métodos ativos: as classes paralelas, as classes móveis, as seções paralelas e o sistema de opções. As classes paralelas surgiram em Manhheim, na Alemanha, logo no início do século, constituindo uma novidade cujo uso se tornou extremamente comum posteriormente, sendo na época explicada da seguinte forma: "quando o número de alunos e o orçamento do Estado o permitem, subdivide-se cada classe em uma classe mais forte, para os mais inteligentes e uma classe fraca para os que têm mais dificuldade em segui-la"9. Em 1915, a estrutura de classes paralelas foi organizada nas escolas secundárias da cidade de Zurique e, por volta de 1920, é adotada em outras cidades da Alemanha, tais como Charlomburgo, Berlim, Hamburgo e Breslau. Outro ponto das reformas foi a introdução das classes móveis, constituindo um sistema que permitia a um aluno acompanhar aulas de graus diferentes nas diversas matérias do currículo. Assim, várias escolas passaram a se organizar de tal forma que, por exemplo, um aluno, forte em matemática e fraco em Latim, pudesse seguir aulas de aritmética com os alunos do terceiro ano e latim com os do segundo. Em Claparède encontra-se: "Este sistema (racional sem dúvida alguma) é empregado com resultados em algumas escolas novas, mas traz dificuldades de aplicação, de horário e de promoção. Não se deveria recorrer a este sistema, a meu ver, senão quando nenhum outro sistema pudesse ser-lhe referido"9. Outro ponto das reformas, as seções paralelas, consistiu na iniciativa de multiplicar as possibilidades de opção dos alunos em diferentes direções de estudo, levando-o a atingir metas específicas por meio de caminhos abertos ao desenvolvimento de suas aptidões individuais. Essa idéia produziu uma grande onda de diversificação nos programas escolares, de forma que um mesmo colégio oferecia aos seus alunos a possibilidade de formação clássica, científica, pedagógica ou profissional, essa última diversificada em artes e ofícios, comércio, etc. Finalmente, surge o sistema das opções, que "permite a cada aluno agrupar o mais livremente possível os elementos favoráveis ao desenvolvimento de suas aptidões particulares"9. Para Claparède, esse parecia ser o futuro regime de administração do horário nas escolas, pois diminuiria consideravelmente o número de horas obrigatórias de aulas por semana. A metade das aulas seria comum a todos os alunos, reservada ao ensino do programa mínimo e dos fundamentos de cada disciplina. A outra metade consistiria em aulas livremente escolhidas, complementando os cursos gerais ou fornecendo lições de exercícios, nas quais seriam aprofundados certos ensinamentos.
Entre todos os métodos ativos, o mais utilizado foi, sem dúvida, o trabalho em grupo, apresentando em sua grande diversidade de formas a possibilidade mais concreta que a pedagogia pode conceber de compatibilizar a prática escolar com a tendência espontânea da criança à vida coletiva, princípio que a psicologia finalmente tinha posto a claro. Dada a dificuldade imposta pelos métodos puramente verbais, a metodologia do trabalho em grupo tinha como pressuposto a introdução de intermediários entre a fala do professor e a compreensão dos alunos. A interação das crianças entre si permitiu que as regras de raciocínio próprias dos estágios pré-formais do pensamento atuassem livremente no ambiente escolar, dando vazão principalmente à imaginação infantil. Além disso, a psicologia da criança também tinha verificado de forma cabal que a cooperação é indispensável para a formação da razão, condição essa que o trabalho em grupo punha inquestionavelmente em evidência. Os dados apresentados pelo BIE sobre as características das faixas de idade para a aplicação do método do trabalho em grupo encontram-se descritos no quadro ao lado.
As raízes históricas do trabalho em grupo podem ser situadas nas escolas do princípio do século XIX, época em que, segundo Abbagnano y Visalberghi, "se afirmou o método do ensino mútuo, ou seja, a prática de utilizar os melhores alunos para instruir os demais"8. Na verdade, a importância de comunicar aos outros o que se aprendeu em aula foi enunciada pelo próprio fundador da pedagogia moderna, João Amós Coménio. Na sua famosa obra Didactica Magna1, ele parte do princípio de que o homem deve procurar para si o alimento do espírito; tendo-o encontrado e absorvido, deve ruminá-lo e digeri-lo; e depois disso, deve comunicá-lo aos outros.
Mas isto far-se-á mais comodamente e, sem dúvida, com utilidade para um maior número de pessoas, se o professor de cada classe instituir, entre seus alunos, este maravilhoso gênero de exercício, de modo seguinte: em qualquer aula, depois de brevemente apresentada a matéria a aprender, e de explicado claramente o sentido das palavras, e de mostrada abertamente a aplicação da matéria, mande-se levantar qualquer dos alunos, o qual (como se fosse já professor dos outros) repita, pela mesma ordem, tudo o que foi dito pelo professor: explique as regras com as mesmas palavras; mostre a sua aplicação por meio dos mesmos exemplos. Se acaso errar, o professor deverá corrigi-lo. Depois, mande-se levantar outro para fazer o mesmo, enquanto todos os outros estão a ouvir; e depois, um terceiro e um quarto, e quantos for necessário, até que se veja claramente que todos compreenderam bem a lição e já são capazes de a repetir e de a ensinar. Não aconselho a que se observe, neste caso, uma ordem rígida, mas aconselho que se chame primeiro os mais inteligentes, a fim de que os de inteligência mais lenta, animados pelo exemplo dos primeiros, possam mais facilmente segui-los.1
Na Inglaterra em vias de industrialização, a técnica do ensino mútuo se converteu em um autêntico método de ensino, sendo organizado e amplamente difundido nas escolas. Andrew Bell colocou-o pela primeira vez em prática no final do século XVIII, na cidade de Egmore, em uma escola para cerca de 200 meninos, filhos de soldados ingleses. Logo depois, Joseph Lancaster, movido por sentimentos humanitários, aos vinte anos de idade introduziu o ensino mútuo em uma escola que abriu em um dos bairros mais pobres de Londres. Uma escola típica com o sistema do ensino mútuo ou de "monitores" era organizada de seguinte forma: os alunos, cujo número poderia ascender a várias centenas (o lema de Lancaster era "um só professor para mil discípulos"), se dividiam em muitas "classes" ou grupos diversos para a leitura e escrita, por um lado, e para a aritmética, por outro. O aluno mais capaz de cada classe ou de uma parte da classe era instruído separadamente pelo professor, que por sua vez instruía seus companheiros. Todas as atividades se desenvolviam em um clima de disciplina quase militar. Andrew Bell fazia os alunos mais indisciplinados interagirem com "tutores" capazes de estimulá-los e sujeitá-los ao trabalho.
A evolução do método do ensino mútuo, que teve como resultado o trabalho em grupo, se deu principalmente pela forma como eram escolhidos os líderes: enquanto no primeiro eles eram representados por monitores e tutores determinados pelo professor, no segundo caso, era a própria sala quem os escolhia. Na verdade, até os 9 anos aproximadamente, as crianças simplesmente admitem a existência do líder, só começando a discutir o valor da função e a escolha de seu titular depois dessa idade. Até os 11 ou 12 anos, elas aceitam qualquer tipo de líder, mas, depois disso, um líder autoritário é cada vez mais contestado, e só consegue manter-se pelas suas qualidades se não for imposto pelo professor.
Os métodos fundados na vida coletiva dos próprios alunos mostraram-se notadamente eficazes ao longo da história da pedagogia desde o século XIX, observando-se que as inadaptações e os distúrbios escolares tinham tendência a desaparecer quando os chamados "maus alunos" eram adequadamente requisitados num grupo de trabalho. As experiências realizadas pela escola nova tornaram válida a idéia de que os estudantes situados abaixo da média, de acordo com os métodos pedagógicos mais antigos em geral apresentam melhoria em seu desempenho intelectual quando a eles se aplica o trabalho coletivo. Já os alunos superiores à média, conforme os padrões propiciados pelas atividades solitárias, eram favorecidos pelo que o grupo de trabalho oferece como afirmação dos processos psicológicos relacionados a um ainda maior desempenho intelectual.
JOHN DEWEY E A SÍNTESE DA PEDAGOGIA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
Talvez nenhum outro filósofo tenha imposto mais profundamente seu pensamento no âmbito de toda a história da pedagogia do que John Dewey, ajudado pelas contingências da influência norte-americana na cultura ocidental. Nas suas principais obras filosóficas e sobre a educação, Dewey2-4 apóia-se no pensamento de três grandes nomes do século XIX: Georg W. F. Hegel, Charles Darwin e Charles S. Pierce.
Hegel ensinou filosofia no ginásio de Nuremberg, do qual foi diretor no período de 1808 a 1816, tendo adotado os princípios da pedagogia neo-humanística. O neo-humanismo produziu uma profunda reforma no ensino, que se deu segundo dois eixos importantes: consolidação da posição monopolista das línguas clássicas como acesso à cultura superior, sendo valorizadas as aulas de Latim nos currículos; e a introdução da orientação tecnocientífica, que deu definitivamente um caráter mais rigoroso aos processos pedagógicos.
A publicação em 1859 da obra Origem das Espécies11 influenciou amplamente o pensamento pedagógico que a ela se sucedeu. Em 1861, Herbert Spencer publicou A educação intelectual, moral e física, obra em que desenvolveu o positivismo evolucionista com base na teoria de Darwin, criticando a disciplina dura e repressiva das public schools inglesas daquela época. Como Rousseau já fizera antes, Spencer aconselha que os castigos não mais sejam empregados como método educativo. Para ele, os conhecimentos científicos e técnicos deveriam ter precedência sobre as disciplinas literárias, estéticas e as línguas clássicas, observando que somente o exercício intelectual autônomo é capaz de liberar a "energia vital" da criança, sobretudo a sua felicidade, expressa pelo desenvolvimento muscular, refinamento das percepções e agilidade do juízo. O princípio pedagógico fundamental de Spencer é expresso pelo seguinte enunciado: "a experiência demonstra diariamente, com clareza crescente, que há uma maneira de despertar interesse na criança, inclusive com deleite; e todas as demais pedras de toque, se recorrermos a elas, nos comprovam que, sob todos os pontos de vista, esta é a maneira justa"12. Sob a influência de Spencer surgiu o tratado pedagógico mais importante do positivismo evolucionista, a obra As ciências da educação, publicada, em 1879, por Alexander Bain. Para esse autor, os diversos tipos de conhecimento das ciências naturais precedem as disciplinas literárias e lingüísticas em ordem de importância e valor educativo. A utilidade das línguas clássicas não é negada, mas não se acredita mais que elas tivessem uma função privilegiada na formação da inteligência. O neo-humanismo da primeira metade do século XIX estava assim superado. Bain foi também o precursor da pedagogia experimental, que se desenvolveu posteriormente, ao longo do século XX.
A influência de Pierce sobre o trabalho de Dewey decorreu do fato de que o "instrumentalismo" desse último estava baseado no "pragmatismo" do qual o primeiro é considerado o fundador. Pierce partiu de uma teoria do signo, a semiologia, mostrando que a linguagem, uma vez codificada em seus componentes indiciais, icônicos e simbólicos (sons, imagens e palavras ou gestos), faz desbancar a crença no princípio supremo da autonomia da razão, ou seja, a máxima cartesiana de que o pensamento tem uma existência independente dos significados temporais dos objetos dos sentidos. Para construir todas as implicações filosóficas advindas da afirmação de que a racionalidade pode ser reduzida simplesmente à linguagem, Pierce estabeleceu o pragmatismo como a ciência de todas as formas de pensamento, reflexão e contemplação, que são resultantes de processos de excitação dos sentidos pelos observadores daqueles objetos. O pragmatismo preocupa-se com os efeitos práticos que o conhecimento pode ter sobre os indivíduos, dos quais importa destacar somente as "regras de ação", que são crenças e conceitos produzidos de acordo com a "representação" dos objetos pelos sentidos. Dessa forma, para o pragmatismo, o fim último do pensamento é exercitar a volição e produzir hábitos de ação.
A partir dos movimentos filosóficos e tendências científicas do século XIX, John Dewey se tornou respeitado ao apontar no pragmatismo de Pierce a inexistência de uma solução para o clássico problema da redução da experiência à consciência. Dewey4 define a experiência sem identificá-la com a consciência, considerando que a primeira é muito mais vasta que essa última, ao contrário de Pierce. A experiência compreende também a ignorância, o hábito e tudo mais o que é crepuscular, vago, obscuro e misterioso, e como tal não pode fazer parte da consciência. Também fazem parte da experiência os aspectos desfavoráveis, precários, incertos, irracionais e odiosos do universo, com a mesma intensidade que os aspectos nobres, honoráveis e verdadeiros.
O mais importante legado de Dewey para a pedagogia foi o "instrumentalismo", método por meio do qual ele considerou em sua obra de síntese todas as tendências filosóficas de sua época: o anti-reducionismo da consciência ao materialismo histórico de origem marxista; a crítica ao positivismo e ao idealismo, que admitiam ser a consciência idêntica à experiência; a afirmação de que a percepção é uma transação entre expectativas, hábitos, esperanças e temores, por uma parte, e os estímulos sensíveis por outra. Pode-se sintetizar o credo pedagógico de Dewey3 na idéia de que a escola deve ser entendida como a vida social simplificada, desenvolvendo-se gradualmente a partir da experiência política democrática. Esta e tantas outras crenças fizeram dele uma espécie de ícone internacional da pedagogia, que soube filtrar em um sistema único de idéias todas as tendências teóricas do mundo ocidental que apareceram no século XIX, sistema esse que cresceu surpreendentemente nas primeiras décadas do século seguinte, apoiado na supremacia internacional da intelectualidade sediada nos EUA. Dewey polemizou contra o abuso das medições da inteligência e de outras características da personalidade sobre as quais muitos queriam fundar novas hierarquias sociais e pedagógicas. O educador deve sobretudo cuidar-se para não pensar que a ciência tenha a lhe fornecer resultados imediatamente aplicáveis, evitando iludir-se com as falsas promessas dos métodos quantitativos na pesquisa em educação. O que o educador deve adotar é, essencialmente, uma "atitude científica", entendida como a postura aberta e atenta à experimentação pedagógica, que procure colocar as idéias à prova, segundo os critérios da ciência psicológica, sociológica e antropológica2.
Dessa forma, desde a virada do século XIX até pelo menos a década de 1960, a pedagogia que se desenvolveu nos países que mantinham laços culturais e políticos com os EUA foi ao mesmo tempo suficientemente precisa em termos científicos e bastante elástica em termos de sua aplicabilidade, permitindo o exercício da criatividade e a iniciativa dos professores. O self-government e o trabalho em grupo são exemplos de opções amplamente testadas entre as inúmeras possibilidades metodológicas existentes.
AS TRANSFORMAÇÕES DA PEDAGOGIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
A 2ª Guerra Mundial (1939-1945) impôs profundas mudanças psicológicas no comportamento dos indivíduos de praticamente todas as sociedades mundiais, pois pela primeira vez na História um conflito bélico atingira proporções tão globais e, ao mesmo tempo, catastróficas. A explosão populacional conduziu ao aumento das disputas individuais pelo acesso aos bens de consumo, reforçando a essência do capitalismo, modo de produção que da metade ao final do século se tornou dominante, impondo à escola novos padrões metodológicos. Tais padrões se fizeram, por um lado, pelo descomunal aumento dos investimentos mundiais em educação, o que permitiu produzir um grande aprofundamento na formação de professores; por outro lado, as contingências de universalização do ensino fundamental em inúmeros países, a alta proporção do acesso das populações à educação secundária e o crescimento do ensino superior fizeram com que a escola emergisse na segunda metade do século XX como o principal ponto de apoio da "sociedade da informação". Esta última consolidou-se pela necessidade de preparar indivíduos cada vez mais especializados para ocupar postos de trabalho em que as tecnologias da comunicação exercem um papel central.
As circunstâncias advindas da análise da informação, da qual a escola se tornou adepta, levaram ao rompimento dos educadores com o lema deweyniano de que os métodos quantitativos devessem ser evitados na pedagogia, sendo essa a grande mudança metodológica ocorrida na segunda metade do século XX. Sob o ponto de vista do nome que se deve dar aos novos paradigmas, uma expressão sem dúvida significativa seria "pedagogia da informação", em que as medidas nacionais de avaliação das competências intelectuais dos discentes e as comparações internacionais são feitas pela aferição de todas as variáveis quantitativas educacionais consideradas importantes. Essas variáveis englobam, além do desempenho dos alunos nas provas de conhecimentos, também as jornadas de trabalho, as carreiras, os salários pagos e a qualificação profissional dos professores, dentro de um extenso conjunto de indicadores que procuram representar a nova compreensão do que vem a ser a escola. Dessa forma, a decisão sobre a qualidade dos métodos pedagógicos passa a ter um enfoque explicitamente estatístico. Segundo as curvas de evolução do desempenho dos alunos em âmbito nacional e conforme a posição relativa da cada país no ranking internacional, definem-se os campos educacionais prioritários, incluindo o aperfeiçoamento e a busca de novos métodos de ensino.
Na pedagogia da informação cada vez mais se dá relevância aos fatores externos associados à aprendizagem, entendendo-se que a instituição educacional em suas diferentes dimensões - condições da infra-estrutura, processos de gestão, formação, qualificação e produtividade dos recursos humanos, etc. -, colabora com o aperfeiçoamento dos métodos de ensino e com o rendimento escolar do aluno. O debate pedagógico passa a destacar cada vez mais os indicadores de qualidade, a partir de pesquisas empíricas sofisticadas que exploram bases quantitativas extensas para desenvolver análises qualitativas sobre o desempenho dos alunos. "A simples observação do recente debate sobre indicadores educacionais mostra as transformações por que vêm passando a produção de informações a respeito da situação dos diferentes níveis dos sistemas de ensino"13. Os resultados das avaliações permitem reorientar ações e políticas dirigidas à promoção da eqüidade e da contínua melhoria da qualidade nos diferentes níveis de ensino. A pedagogia amplia, dessa forma, sua linguagem e raio de ação prática, reinventando antigos conceitos e propondo novas formas de entender o processo educacional, enfocando o percurso escolar dos alunos no tempo e no espaço onde ele se dá. Assim, as altas taxas de repetência e o abandono escolar passam a ser tratados pelo mecanismo de seriação contínua (promoção anual automática) e ações sociais afirmativas, correspondentes à concessão de auxílio financeiro do governo às famílias que mantêm seus filhos na escola (bolsa família). A escola esforça-se em adotar padrões desejáveis que devem ser atingidos para os alunos desenvolverem habilidades, competências, excelência de aprendizagem, entre outros atributos14. Com isso, ela acrescenta as novas exigências da sociedade da informação de melhoria do desempenho intelectual aos seus propósitos históricos prioritários de construção das qualidades morais, visando à formação de competências para o trabalho e para o exercício da cidadania.
A mudança do papel histórico da escola deu origem a um fenômeno cujos efeitos se fizeram sentir nas duas últimas décadas do século XX, estendendo-se até hoje, sobre o que já foi produzida uma profícua literatura. A "violência escolar", forma pela qual o referido fenômeno passou a ser tratado, pode ser entendida como um crescimento exagerado do que antes se entendia como sendo a indisciplina. As principais modalidades de violência escolar são as ações contra o patrimônio - depredações, pichações - e formas diversificadas de conflitos interpessoais - brigas, agressões físicas, desacatos verbais, etc -, estabelecendo um quadro tenso nas relações diárias, que atinge tanto alunos quanto professores15-23.
Em Debarbieux18 encontra-se que "a violência escolar é amplamente concebida nos primeiros trabalhos sobre o assunto como uma violência da escola, escola caserna "[...], escola reprodutora ou escola da divisão social e do desprezo da cultura popular [...]". Nesse sentido, a violência manifestada pelos alunos é uma reação de "contra-aculturação", ou seja, está impregnada do caráter de resistência às pressões ideológicas e às relações de dominação que caracterizaram no último século a luta de classes entre proletariado e burguesia. A violência seria pois uma expressão do milenarismo revolucionário que nas décadas de 1960 e 1970 marcou profundamente os combates políticos travados pelos estudantes contra a ordem vigente. Ao transmitir os valores e normas da sociedade informacional, que se originou exatamente naquela década, a escola passou a exigir muito mais das aprendizagens das crianças advindas de todas as classes sociais. Tal explicação sobre o fenômeno da violência escolar está fundamentada nos trabalhos de Émile Durkheim e Pierre Bourdieu, dois dos mais influentes sociólogos de sua época que se preocuparam com questões educacionais. Para Durkheim24, "[...] não se nasce criminoso [...]. O que se herda é certa falta de equilíbrio mental, que torna o indivíduo mais refratário a uma conduta coerente e disciplinada". Para Bourdieu25, "os produtos dominados de uma ordem dominada por forças enfeitadas de razão (como as que agem através dos veredictos da instituição escolar [...]) não podem senão atribuir seu assentimento ao arbitrário da força irracionalizada". Quando uma criança agride outra dentro da escola para se apropriar de seus bens, ou simplesmente quando houver agressões por questões pessoais sem motivos aparentes que não sejam revidar ofensas, na verdade está ocorrendo uma reprodução de processos que, em última análise, representam os mesmos conflitos encontrados no interior mais amplo da sociedade. A abordagem dominante sobre o tema da violência escolar está, dessa forma, associada aos novos desenvolvimentos na área da sociologia da educação dos quais Durkheim e Bourdieu foram precursores.
A pedagogia da informação caracteriza-se, assim, pela dinâmica existente entre os altos patamares de exigência para com o desempenho da aprendizagem e a exacerbação da incivilidade dentro da escola, decorrente das reações do aluno àquela exigência. Manifesta-se, nesta pedagogia, a supervalorização dos métodos comparados de avaliação do desempenho discente, em que rankings nacionais e internacionais são realizados segundo procedimentos sofisticados de análise da informação. Em decorrência da violência escolar surgem práticas de ensino voltadas para situações de conflito de alunos entre si, entre esses últimos e os professores, bem como destes com o sistema político da educação.
A politização do magistério constitui outro fenômeno densamente carregado de significado na pedagogia da informação, decorrente da força transformadora com que os professores aperfeiçoaram e passaram a aplicar os métodos de ensino do passado. Um autor cuja obra sobre a função política transformadora da educação alcançou projeção internacional é o brasileiro Paulo Freire: "[...] a partir do ponto de vista do educador [Paulo Freire] funda sua visão humanista-internacionalista (socialista). Desde então, sua obra tem sido um divisor de águas em relação à prática político-pedagógica tradicional"26. A politização do magistério e o crescimento da importância social da educação produziram efeitos diretos na denominada democratização da escola, que, na virada do século XX, atrelou ao seu funcionamento políticas compensatórias e ações afirmativas, características da agenda de todas as nações para o novo milênio27.
Além disso, a pedagogia da informação acreditava que a presença do computador poderia transformar a aprendizagem de tal forma que tornaria obsoletos todos os programas escolares até então existentes. Esses programas eram ensinados com grandes dificuldades, altas despesas e limitações de sucesso, de forma que o computador foi considerado na década de 1960 como capaz de fazer a criança aprender tudo o que a escola desejava de forma menos dolorosa, com êxito e sem a necessidade de instrução organizada. As escolas, tais como conhecidas até então, não mais teriam lugar no futuro, adaptando-se às profecias pela transformação em algo novo, ou simplesmente decaindo e deixando de existir. Muitos decretaram o fim da escola, pois o computador levaria a sala de aula para dentro da casa do aluno. O foco central não era a máquina, mas a mente, particularmente as formas intelectuais descritas pela psicologia do desenvolvimento. "Na verdade, o papel que atribuo ao computador é o de portador de 'germes' ou 'sementes' culturais cujos produtos intelectuais não precisarão de apoio tecnológico uma vez enraizados numa mente que cresce ativamente"28. Valorizava-se sobremaneira a aprendizagem da matemática, acreditando-se que embutidos no computador haveria "germes" de uma certa "matecultura", significando não necessariamente resolver equações, mas dotar a criança do tipo de raciocínio evidente na argumentação baseada no lúdico. Isso porque as crianças que se mostravam recalcitrantes em aprender matemática cresceram num meio relativamente escasso em adultos que "falassem matemática". As crianças chegavam à escola sem os pré-requisitos necessários para adquirir os conceitos da matemática, e ao forçarem situações pedagógicas autoritárias e dolorosas, os educadores geravam sentimentos negativos muito fortes não somente pela matemática, mas contra toda a aprendizagem em geral. O computador, afortunadamente, surgiu para quebrar o círculo vicioso do fracasso que os pais passavam a seus filhos, eliminando os fatores defeituosos de uma certa "matofobia", ou seja, o medo de aprender matemática. Como se vê, a pedagogia da informação levou ao extremo as idéias da antropologia social29 da década de 1950, a ponto de ter como princípio que o conhecimento da matemática como produto cultural era transmitido naturalmente de uma geração para outra. Levando-se ainda mais ao extremo essa idéia, o computador chegou a ser considerado pela pedagogia da informação um fator evolutivo no sentido da teoria darwiniana, desencadeando alterações genéticas seletivas favoráveis aos indivíduos que com ele mantivessem contato.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pedagogia, tal como a conhecemos hoje, apareceu em época relativamente avançada da história. Isto significa que desde Péricles até Durkheim e Bourdieu há muito mais a se considerar além do que poderia caber em poucas páginas. Com o advento do século XXI, permeado de tragédias naturais e guerras, não se sabe o que esperar do futuro da humanidade. Pelo menos para os próximos anos, pensa-se que a situação piore ainda mais. Dessa forma, também não se sabe se a escola conseguirá cumprir sua missão de preparar as novas gerações para um mundo ainda mais conturbado e violento que o de hoje, tornando-se difícil prever o seu destino e dos meios pedagógicos que se utilizará doravante. De qualquer forma, ela terá sempre um papel importante a cumprir enquanto o homem estiver construindo a história de sua espécie.
REFERÊNCIAS
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Fonte:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-84862007000300008&script=sci_arttext