da expressão neoliberalismo talvez esteja se
encerrando. Isso seria muito bom para o processo
de enriquecimento do idioma e da política."
Eurípedes Alcântara
AP
Bretton Woods: berço do capitalismo
O neoliberalismo parece confirmar a cruel constatação de que as modelos, as bandas de rock e as idéias, quando ficam velhas, viajam para o Brasil. O termo, antes de se tornar um opróbrio usado pelos críticos do capitalismo, fez carreira justamente na raia que a esquerda considera propriedade exclusiva de sua ideologia – a preocupação com o bem-estar dos pobres. A expressão neoliberalismo foi usada pela primeira vez em um documento oficial em julho de 1944, quando os fundadores do capitalismo contemporâneo guardavam os papéis das resoluções finais da Conferência de Bretton Woods. Foi nessa reunião, realizada na cidade do Estado americano de New Hampshire, que foram criados o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Um grupo secundário de economistas franceses, ingleses e americanos presentes à conferência produziu um documento em que definiam o que chamaram com frescor de "doutrina neoliberal". Segundo esses anônimos seguradores de pastas para os sábios das finanças dos 44 países representados na reunião, o neoliberalismo deveria adaptar o liberalismo clássico às circunstâncias do Estado regulador e assistencialista, ao qual caberia controlar o funcionamento do mercado. Anos mais tarde, o American Heritage Dictionary definiu assim o neoliberalismo: "Movimento político que combina a preocupação com justiça social do liberalismo tradicional com a ênfase no crescimento econômico". Eis uma boa plataforma de esquerda.
Quando entrou na corrente do pensamento brasileiro, no começo dos anos 90, o termo já significava o oposto disso. A expressão passou a ser usada para descrever uma modalidade de capitalismo turbinado em que o lucro financeiro predominaria sobre a sociedade, subjugando o Estado, a cadeia produtiva, a cultura, subvertendo para seu usufruto até mesmo as relações familiares. O inferno terrestre, enfim. Para muitos esquerdistas pareceu um termo novo, uma dessas expressões poderosas que explicam tudo e encerram uma discussão: "Esse sujeito é um neoliberal. Ponto final". Como se viu, o que parecia novo era já uma conotação envelhecida. Como transformação tão radical pôde ocorrer? Várias teorias concorrem para explicar por que o significado de neoliberalismo foi mudando com o passar do tempo. Em primeiro lugar, é preciso considerar o abandono da expressão nos Estados Unidos, seja no sentido Bretton Woods, seja na sua variante esquerdista. A palavra neoliberalismo é inexistente na literatura econômica americana séria. Quando querem descrever o que os brasileiros foram acostumados a enxergar como um neoliberal, os americanos usam o termo "libertarian" (libertário). Se os adversários do capitalismo consideram os Estados Unidos a pátria do neoliberalismo, é bom avisá-los disso. O brasileiro José Alexandre Scheinkman, pensador refinado da economia e professor em duas respeitadas universidades, a francesa Sorbonne e a americana Princeton, lembra que a encrenca começa já com a palavra "liberal". Nos Estados Unidos, liberal é sempre um sujeito não-conservador. No reduzido espectro político americano, o liberal é uma pessoa de esquerda. Na Europa, o termo liberal é usado para descrever alguém de direita, que admite o primado do mercado e postula o Estado mínimo. "A charada interessante que um lingüista poderia investigar é por que nos dois lados do Atlântico a palavra liberal soa quase como um xingamento", propõe Scheinkman.
Neoliberal, em seu envelopamento atual pelo menos, significa no Brasil mais ou menos a mesma coisa que liberal na Europa. Mas põe mais ou menos nisso. As esquerdas, que divergem em tudo, também usam a palavra neoliberalismo com conotações diferentes. Para o PT no governo, o neoliberalismo é apenas a vertente mais dogmática do capitalismo de mercado. Para os radicais, é o capitalismo em sentido amplo – das bolsas de valores à banca de frutas na feira. "Agora dizem economia de mercado, neoliberalismo. Isso não existe. O que existe é capitalismo", ensinou o ditador cubano Fidel Castro. Como todo termo que parece significar muita coisa e no fundo não significa mais nada – como "holístico", por exemplo –, a carreira da expressão neoliberalismo talvez esteja se encerrando. Isso seria muito bom para o processo de enriquecimento do idioma e da política. O socialista será socialista – e não antineoliberal. As coisas terão de ser chamadas pelo nome que as define. Haverá então, através da linguagem, uma espécie de cura da hipocrisia.
Fonte: Veja