Silvio Cezar de Souza Lima
Doutorando em História das Ciências/FIOCRUZ
Durante todo o século XIX, a vinda de trabalhadores chineses para o Brasil esteve em debate. A partir de 1850, cada vez mais o assunto ganha importância culminando nos debates sobre imigração na década de 1870 quando a questão torna-se um dos temas centrais. Além de todos os preconceitos, conceitos de raça e cultura foram mobilizados em muitos momentos decisivos nos debates sobre imigração chinesa nas últimas décadas do Império, com o objetivo de impedir sua vinda para o país.
Estatisticamente, o número de chineses que efetivamente entraram no país no período foi mínimo. Um número desprezível se relacionado com outros grupos de imigrantes como italianos, portugueses, espanhóis ou alemães. Porém, as discussões acerca destes imigrantes revelam muito mais sobre os projetos das elites brasileiras de civilização nos trópicos do que propriamente sobre os chineses.
Representações sobre a China no século XIX
A civilização chinesa exerceu um fascínio irresistível no Ocidente por muitos séculos. A distância geográfica do centro da civilização européia era tão grande quanto as suas diferenças culturais; um abismo de costumes que tornava a China o limite da diferença, o exótico. Desde a viagem de Marco Polo, a China estava no imaginário ocidental como o misterioso, exótico, maravilhoso. A idéia de uma civilização diferente, com homens e mulheres de costumes excêntricos, regidos por leis estranhas, um lugar quase fora deste mundo.
A imagem positiva dos chineses, em grande parte tributária da divulgação feita pelos missionários católicos em missão no Império celeste, encontra seu ocaso no final do século XVIII. A emergência do moderno conceito de civilização e a importância crescente da noção de progresso no Ocidente traz uma nova interpretação sobre aquela cultura milenar. O Chinês passa a ser considerado um povo antiprogresso, estático, estacionário. A idéia de decadência estava presente na crítica à China e foi difundida e ampliada no século XIX, pela recusa de abrir seus portos para o Ocidente, entrando em choque frontal com o imperialismo inglês, e ainda devido ao crescimento assustador do consumo do ópio na China. Estes fatores, associados às duas Guerras do Ópio, foram preponderantes para a divulgação da imagem de uma China degenerada, bárbara e decadente.
O Brasil e os chineses
Embora a imagem da China estivesse mudando rapidamente no Ocidente, no Brasil no início do século XIX, os chineses ainda gozavam de boa reputação. Isso devia-se a nossa condição de ex-colônia do Império Português e o tempo em que o intercâmbio com a África e Ásia era intenso e os usos e costumes nos aproximavam muito mais da Ásia do que da Europa.
Plantas e animais do Oriente tropical e subtropical foram transplantados para o Brasil, dada a semelhança de climas. Foi esta mentalidade que propiciou a contratação de centenas de chineses para o plantio de chá no Jardim Botânico, no início do século XIX. Trazidos por ordem de d. João VI, os chineses teriam como tarefa aclimatar a valiosa planta em terras brasileiras. O chá era um dos principais produtos de comércio no Ocidente, plantá-lo no Brasil aumentaria os lucros da Coroa Portuguesa.
Os planos de produzir chá para exportação fracassaram o que desestimulou os planos de uma contínua imigração chinesa neste período. Vale a pena ressaltar que embora o número de chineses fosse pequeno se comparado com a população da Corte nas primeiras décadas de 1800, os imigrantes chineses não passaram despercebidos aos muitos viajantes estrangeiros que estiveram no Rio de Janeiro nesta época. A experiência do plantio do chá nos trópicos por trabalhadores chineses era considerada algo exótico, pitoresco, o que deve ter chamado a atenção dos visitantes europeus como Charles Darwin, Maria Graham, John Luccock, Maximiliano de Wied – Neuwied, entre outros.
Não foi apenas o plantio do chá que fez com que autoridades luso-brasileiras demonstrassem interesse pelos súditos do “Filho do céu”. No início do século XIX, os chineses eram vistos como excelentes agricultores e uma alternativa viável para a escravidão. As elites amedrontadas pelo fantasma da revolução do Haiticomeçavam a se preocupar com o crescente número de negros cativos e libertos que habitavam o país. Neste contexto o chinês era cogitado como uma boa alternativa de imigrante.
Os chineses nas décadas de 1850 e 1860
Com as pressões inglesas sobre o tráfico de escravos, aumenta a preocupação com as possíveis formas de substituição da mão-de-obra. Assim, acirram-se as discussões sobre a imigração e as alternativas para a lavoura. Tentativas de importação de europeus foram feitas desde a vinda da Família Real para o Brasil e os resultados ficaram aquém do desejado. Os núcleos coloniais apresentam problemas que apontam para o fracasso e inviabilidade de uma grande imigração européia para o Brasil.
A violência da escravidão, a falta de uma política de terras eficaz, a ausência de leis que garantissem o livre exercício religioso (principalmente para os imigrantes de países protestantes) e ainda, a propaganda negativa sobre maus tratos a colonos europeus no Brasil tornavam difícil o estabelecimento de um fluxo imigratório consistente de países europeus. Isto aumentou o interesse de latifundiários pela imigração de trabalhadores coolies, que eram utilizados como mão-de-obra em vários países do mundo.
A contratação de mão-de-obra coolie foi comum em países da América, principalmente Estados Unidos, Peru e Cuba. A maior vantagem oferecida por este tipo de mão-de-obra eram os baixos salários e a aceitação de trabalhar arduamente em tarefas pesadas, geralmente evitadas por outros trabalhadores.
Um dos maiores defensores da adoção do trabalhador coolie neste período foi Quintino Bocaiúva, para quem o chinês apresentava as características ideais para o trabalho na grande lavoura. A sua obra, A crise da lavoura (1868), influencia setores do governo imperial, como o ministério da agricultura que mostrava-se favorável à contratação de mão-de-obra asiática, principalmente devido às falhas das tentativas anteriores de imigração européia. Também a Comissão para a Reforma do Elemento Servil da Câmara dos Deputados elaborou um parecer orientava o governo brasileiro a incentivar a vinda de chineses.
Esta movimentação de setores da sociedade e da burocracia imperial em favor da imigração chinesa foi responsável pelo início da discussão deste tema na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) em 1870, dando início a “questão chinesa”.
Os debates sobre imigração chinesa 1870 – 1880
Atenta à importância da discussão sobre imigração na economia agrária brasileira, a SAIN criou uma comissão para estudar a necessidade de imigrantes chineses. O parecer foi apresentado ao conselho daquela sociedade na sessão de 14 de junho de 1870.
No mês seguinte, o governo imperial, convencido pelos partidários da mão-de-obra coolie da necessidade de se conseguir “braços para a lavoura” imediatamente, aprovou um decreto que garantiria por dez anos a vinda de milhares de chineses. Esta medida do governo, embora não diretamente associada ao parecer da SAIN, acirrou os debates sobre imigração asiática em 1870 naquela Sociedade, o que estimulou ainda mais a reação anti- chinesa.
O parecer da comissão concluía que a importação de coolies era necessária para suprir os braços da lavoura, embora concordasse que o trabalhador chinês não deveria se fixar ao solo. Ainda assim, parecer não agradou ao conselho da instituição seguindo-se um longo debate que ganhou a imprensa e foi discutido por setores da elite do Império. O interesse se justifica na medida em que a sociedade brasileira estava em um momento de reconstrução das bases simbólicas para uma identidade nacional: negociar o tipo de imigrante e o papel dele neste processo é fundamental para todos que buscavam impor seus projetos políticos e sociais.
As propostas da comissão que recomendavam a imigração chinesa não foram aceitas pelo conselho administrativo da SAIN , em seu lugar, foi aprovado o parecer que afirmava ser o anglo-saxão o tipo ideal de imigrante para o Brasil. Após estes acalorados debates, o assunto continuou como uma questão relevante para o Estado. O interesse no assunto permaneceu através de relatórios sobre imigração e na convocação no fim da década de 1870 de Congresso Agrícola, onde governo e a elite agrária discutiriam sobre plantações, imigrantes e escravidão.
O Congresso Agrícola e os debates sobre a mão-de-obra.
Em julho de 1878, o Ministro da Agricultura, Cansação de Sinimbu, e membro do Partido Liberal, convocou os “plantadores” de quatro estados, que eram Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, para colher suas opiniões sobre os problemas da grande lavoura. Pela primeira vez o governo procurava soluções em conjunto com os fazendeiros.
A convocação do Congresso Agrícola reforça o diálogo entre governo e sociedade sobre a imigração, reacendendo os debates sobre os coolies. Este evento foi extremamente oportuno para os proprietários da grande lavoura, que levaram ao governo suas prioridades: “capitais e braços”. As reivindicações dos latifundiários demonstram as suas concepções sobre os tipos de imigração desejada, muitas vezes em choque com a “necessária”, e as disputas pela formulação do tipo ideal de imigrante.
Definitivamente, é a falta de homens considerados aptos para o trabalho na grande lavoura que mais preocupa aos participantes do Congresso. Na maioria dos discursos é perceptível a preocupação com as formas de se superar a falta de mão-de-obra. Entre as soluções apresentadas estavam a estruturação do ensino agrícola para treinamento de trabalhadores nacionais, criação de leis que tornassem o trabalho obrigatório aos brasileiros, incentivos para a imigração e o trabalhador coolie.
É importante frisar que este discurso sobre o trabalhador ideal vem dos fazendeiros da grande lavoura, cujo interesse é por um trabalhador que ganhe o menos possível, através de contrato de trabalho e se sujeite a todas as privações (ao contrário do trabalhador europeu que teria como objetivo tornar-se dono de suas próprias terras). Assim o chinês trabalharia como o africano, sem estar escravizado. Para a grande lavoura e para o governo o chinês representava um elemento de transição entre o trabalho livre e o escravo, podendo propiciar uma transição sem sobressaltos e sendo substituído depois por uma “mão-de-obra civilizada.”
O sentimento anti chinês na última década do império.
Não ficaram sem resposta as investidas em favor da imigração chinesa no final da década de 1870. Neste crepúsculo da ordem imperial, foram principalmente os abolicionistas que se opuseram à imigração asiática. O principal mote era a denúncia de uma nova escravidão, onde chineses substituiriam os negros. A participação de grupos articulados contra a “importação de chins” e a estratégia de denúncia a órgãos internacionais, diplomatas e ainda discursos parlamentares e artigos em jornais correntes e periódicos institucionais aumentou a visibilidade da questão dos chineses. Embora os debates em torno dos chineses ganhassem maiores espaços, os discursos continuam racializados.
A Sociedade Central de Imigração, criada em 1883, tinha como principal função promover a imigração européia. Entre seus principais membros estavam os abolicionistas, o membro do partido conservador Alfredo d’Escragnolle Taunay, o engenheiro André Rebouças e Carl von Koseritz. Em seu periódico chamadoA imigração, eram veiculadas duras críticas aos chineses, considerados como o “pestilento fluido emanado da podre civilização da china”, “uma raça atrofiada e corrupta”, “bastardizada e depravada”. A tese da Sociedade de Imigração é que o Brasil necessita da imigração européia muito mais por matizes culturais e civilizatórios do que apenas como mão-de-obra, apoiando a todas as diretrizes que facilitassem a vida do imigrante europeu no Brasil, bem como a sua naturalização.
Não importando de que lado estivessem os interlocutores, a favor ou contra os trabalhadores coolies, a maioria concordava que o asiático pertencia a uma raça ou civilização inferior e em hipótese alguma deveria se amalgamar com os brasileiros. A exceção coube ao Apostolado Positivista, cuja posição contrária à imigração chinesa não comungava com o discurso racializado; pelo contrário, sua posição tinha sentido como parte da agenda antiescravista do grupo.
Duas foram as principais críticas dos positivistas contra a vinda dos chineses para o Brasil. A principal seria a “continuidade” do regime de trabalho escravo. O sistema de contratos proposto ao trabalhador coolie, aliado ao costume despótico dos senhores de escravos, fariam da imigração asiática uma nova escravidão. O segundo motivo era a incompatibilidade entre as civilizações do Ocidente e Oriente, culminando num choque cultural que consideravam maléfico para ambas as culturas.
O decreto 528
Os esforços para estabelecer um fluxo imigratório de coolies asiáticos não obtiveram sucesso. As estratégias de denúncia a órgãos internacionais anti-escravistas e a entrega de cartas e relatórios à diplomacia chinesa na Europa feita por positivistas e outros abolicionistas obtiveram bons resultados, ampliando as dificuldades de se estabelecer um fluxo imigratório da China. Depois de acirrados debates no parlamento brasileiro durante a década de 1880, após o fim da escravidão e do Império, o novo governo republicano publicou um decreto que tornava transparente a visão do governo sobre os imigrantes não-brancos.
Em 1890, o recém formado governo republicano promulgou o decreto n.528, com a finalidade de regularizar a introdução e localização de imigrantes no Brasil. O documento era assinado pelo presidente da República, Deodoro da Fonseca e pelo ministro da Agricultura, Francisco Glicério. A “restrição” de entrada dos imigrantes da África e da Ásia tinha ares de proibição, pois seria permitida apenas com autorização do congresso nacional. O mesmo decreto incentivava os fazendeiros a instalar imigrantes europeus, desvendando uma política imigratória que durará até o governo Getúlio Vargas, embora este decreto fosse revogado em 1907 e o seu substituto não mencionasse a preferência por alguma raça ou nacionalidade.
Em 1892, foi aprovada a lei n º 97 que permitia a entrada de imigrantes chineses e japoneses no Brasil. Assim, o decreto de 1890 praticamente perdia seu efeito. Ainda que o decreto não tenha alcançado resultado prático, é de extrema relevância o fato de o Estado iniciar uma política que dificultava a imigração de não-brancos (negros e asiáticos, principalmente), enquanto incentivava a imigração de europeus.
O episódio da proibição de entrada de chineses no país demonstra o quanto as questões de colonização estão ligadas à construção de uma identidade nacional aos moldes dos modelos europeus. A imigração era vista ao mesmo tempo como colonizadora e civilizatória, dirigida por uma elite preocupada em homogeneizar a nação, europeizando o Brasil.
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