As grandes tensões
Bandeira da União Européia
"Os povos da Europa estão determinados a transcender suas divisões ancestrais e, cada vez mais unidos e próximos, forjar um destino comum."
Giles Lapouge
Evidentemente que elaborar um documento constitucional único para um continente sobrecarregado pelas diversidades e rivalidades políticas, econômicas, religiosas e culturais não é tarefa fácil. Além disso, a própria situação inusitada para os europeus de viverem doravante debaixo da mesma cobertura constitucional abriga tensões entre a adoção de um federalismo mais ou menos imediato e a estratégia dita dos "pequenos passos", mais vagarosa que tende a diminuir o ritmo da integração.
Outra fonte de tensão decorre entre a busca do equilíbrio econômico, que obriga os países a ter um orçamento controlado, supervisionado por instituições supra-europeías (como o Banco Central Europeu), e a integração política preocupada em fazer "justiça social", em distribuir o melhor possível a riqueza entre seus cidadãos que continua sendo acumulada no espaço do estado-nacional.
Tudo indica que, mantendo-se a diversidade dos regimes políticos (monarquias constitucionais vigoram nos países escandinavos, na Grã-Bretanha, na Bélgica e na Holanda, além da Espanha, enquanto repúblicas dominam o Centro-Leste europeu, além da Itália e Portugal), caberá à Grande Corte de Justiça européia uma tarefa similar ao que o Supremo Tribunal de Justiça historicamente exerce nos Estados Unidos: a de ser o grande guardião da constituição com poderes de intervir nos estados-membros. Por igual, terá como uma das suas funções mais importantes a proteção dos Direitos Fundamentais dos cidadãos europeus.
O objetivo será busca da formação de um Ordem Jurídica Comunitária que se sobreponha às Ordens Jurídicas Nacionais. Haverá um desgastante conflito não somente entre a Constituição da Unidade Européia e seus membros (como costumeiramente ocorre numa Ordem Federativa qualquer, na qual a União atrita-se com os estados), como também um choque de doutrinas jurídicas. A grosso modo o Direito público e privado europeu, ainda vigente, deriva de três correntes jurídicas: a legada pelo Direito Germânico, a do Direito Romano-Canônico e a do Direito Bizantino-Eslavo.
Seja como for, elas se verão obrigadas a fazerem algum tipo de fusão ou síntese para reforçar ainda mais o crescimento da Ordem Comunitária (os interesses gerais da Unidade Européia) no sentido de fazer encolher a Ordem Nacional (sem todavia remover o núcleo residual da soberania dos estados-membros). Na verdade, durante um longo período haverá um convívio entre a Constituição Comunitária (a ser aprovada pelos estados-membros) e as Constituições Locais (que ainda irão reger a vida dos cidadãos), que caminhando em velocidade distinta visam a "Europeização" final.
O documento foi, por fim, aprovado pelo Conselho Europeu de Bruxelas em 17-18 de junho de 2004. Está subdividido em duas partes: a primeira trata das instituições (Parlamento Europeu, Conselho Europeu, Conselho de Ministros da União, Comissão Européia e Corte de Justiça); a segunda parte trata exclusivamente das Competências, com 54 artigos. No total, é um calhamaço de 265 páginas com 60 mil palavras.
A diversidade ideológica
V. Giscard d´Estaing, presidente da Convenção Constitucional Européia
Outro aspecto atritante da nova constituição deriva das duas doutrinas ideológicas que são dominantes no cenário político institucional europeu. A primeira delas é a liberal ou neo-liberal, que se faz presente na afirmação da divisão dos poderes, no encolhimento do papel do estado e no privilegiamento dos direitos individuais sobre os coletivos. Doutrina essa, como se sabe, defensora das virtudes do mercado, que assume na concepção liberal o papel de regulador-mor dos interesses econômicos e sociais em geral.
A outra deriva da tradição da social-democracia européia, preocupada com a defesa dos direitos corporativos e sindicais, com maior intervencionismo estatal na proteção dos interesses comunitários e num controle fiscal mais rígido sobre as grandes corporações econômicas. Por conseguinte, a Constituição Européia resulta de uma grande acomodação entre essas duas ideologias, delegando ao andar futuro das coisas um acomodamento satisfatório entre elas.
Deus e a constituição
Curiosamente, aliando-se à COMECE (Comissão do Episcopado) coube a um jurista judeu-americano repreender a “ ausência de Deus” na Constituição Européia. Segundo ele, a Europa não pode ignorar o seu passado cristão, crença que serviu-lhe de sustentação moral e ética por séculos. Seguia ele assim a Exortação Apostólica Ecclesia in Europa, emitida em 28 de junho de 2003 pelo Papa João Paulo II que exigia a menção no preâmbulo constitucional ao “ patrimônio religioso, especialmente cristão, da Europa”.
Todavia prevaleceu entre os Sábios da Europa, o principio jacobino da secularização e da separação do Estado da Religião. Ocorre que “Deus” tem significados distintos para cada região e nação da Europa. Para os países do centro e do leste europeu, “Deus” é entendido como o espaço interior de cada ser humano que resistiu a ingerência dos estados totalitários: ao nazismo e ao comunismo.
Para os franceses, porém, “Deus” significa a presença da Igreja Católica imiscuindo-se nos assuntos seculares e na relação do estado com os cidadãos. Sem omitir-se de que, desde a Reforma de Lutero, há na Europa um “Deus” católico e outro protestante ou huguenote, e que a lembrança disso remete às terríveis guerras de religião dos séculos XVI e XVII: ao fanatismo e á intolerância.
Para a massa de muçulmanos que hoje vive dentro dos estados europeus (turcos, marroquinos, argelinos, tunisinos, etc...), estimada ao redor de 15 milhões de indivíduos, a menção a “Deus” somente pode significar o Todo-Poderoso do cristianismo e não a Alá e o seu Profeta. O que para eles acarretará numa ameaça ainda maior de perseguições e preconceitos do que já sofrem no momento (eles, os de fé islâmica, são 7% da população na França e 2,7% na Grã-Bretanha, oscilando de 1% a 2% nos demais estados europeus).
Como há expectativas do ingresso para da República da Bosnia e da Turquia, ambas as nações seguidoras do Profeta, os “Sábios” decidiram-se por acatar o principio secularista francês porque chegaram a conclusão, baseada na História pregressa do continente, que a menção a “Deus” é um embaraço à Unidade Européia e não bem uma soma, dai não terem acolhido as campanhas orquestradas principalmente por organizações católicas a favor de “Deus na Europa”.
O ritual da aprovação
A Constituição Européia parece seguir os passos advogados pelos Federalistas norte-americanos do século XVIII. Cada estado-membro da União terá um prazo e um procedimento de aprová-la ou de rejeitá-la. Alguns poderão adotar o caminho do voto parlamentar, outros, todavia, como já foi o caso da Espanha, aderiram ao referendo, a consulta direta ao povo. É bem possível que algumas nações neguem-se de imediato dar o seu consentimento ao nascente ordenamento jurídico forjado pelos Sábios da Europa.
Ponderações locais, o vício da mentalidade da “capelinha”, desconfiado de tudo aquilo que for mais amplo e maior, vestígio dos tempos medievais, poderá fazer com que a constituição da Unidade Européia seja repudiada aqui ou acolá, mas mais tarde ou mais cedo o bem censo irá prevalecer e a constituição paneuropéia irá sobrepor-se aos eurocéticos e ao egoísmo localista dos ultranacionalistas que tantas desgraças já provocou no passado da Europa.
Bandeira da União Européia
"Os povos da Europa estão determinados a transcender suas divisões ancestrais e, cada vez mais unidos e próximos, forjar um destino comum."
Giles Lapouge
Evidentemente que elaborar um documento constitucional único para um continente sobrecarregado pelas diversidades e rivalidades políticas, econômicas, religiosas e culturais não é tarefa fácil. Além disso, a própria situação inusitada para os europeus de viverem doravante debaixo da mesma cobertura constitucional abriga tensões entre a adoção de um federalismo mais ou menos imediato e a estratégia dita dos "pequenos passos", mais vagarosa que tende a diminuir o ritmo da integração.
Outra fonte de tensão decorre entre a busca do equilíbrio econômico, que obriga os países a ter um orçamento controlado, supervisionado por instituições supra-europeías (como o Banco Central Europeu), e a integração política preocupada em fazer "justiça social", em distribuir o melhor possível a riqueza entre seus cidadãos que continua sendo acumulada no espaço do estado-nacional.
Tudo indica que, mantendo-se a diversidade dos regimes políticos (monarquias constitucionais vigoram nos países escandinavos, na Grã-Bretanha, na Bélgica e na Holanda, além da Espanha, enquanto repúblicas dominam o Centro-Leste europeu, além da Itália e Portugal), caberá à Grande Corte de Justiça européia uma tarefa similar ao que o Supremo Tribunal de Justiça historicamente exerce nos Estados Unidos: a de ser o grande guardião da constituição com poderes de intervir nos estados-membros. Por igual, terá como uma das suas funções mais importantes a proteção dos Direitos Fundamentais dos cidadãos europeus.
O objetivo será busca da formação de um Ordem Jurídica Comunitária que se sobreponha às Ordens Jurídicas Nacionais. Haverá um desgastante conflito não somente entre a Constituição da Unidade Européia e seus membros (como costumeiramente ocorre numa Ordem Federativa qualquer, na qual a União atrita-se com os estados), como também um choque de doutrinas jurídicas. A grosso modo o Direito público e privado europeu, ainda vigente, deriva de três correntes jurídicas: a legada pelo Direito Germânico, a do Direito Romano-Canônico e a do Direito Bizantino-Eslavo.
Seja como for, elas se verão obrigadas a fazerem algum tipo de fusão ou síntese para reforçar ainda mais o crescimento da Ordem Comunitária (os interesses gerais da Unidade Européia) no sentido de fazer encolher a Ordem Nacional (sem todavia remover o núcleo residual da soberania dos estados-membros). Na verdade, durante um longo período haverá um convívio entre a Constituição Comunitária (a ser aprovada pelos estados-membros) e as Constituições Locais (que ainda irão reger a vida dos cidadãos), que caminhando em velocidade distinta visam a "Europeização" final.
O documento foi, por fim, aprovado pelo Conselho Europeu de Bruxelas em 17-18 de junho de 2004. Está subdividido em duas partes: a primeira trata das instituições (Parlamento Europeu, Conselho Europeu, Conselho de Ministros da União, Comissão Européia e Corte de Justiça); a segunda parte trata exclusivamente das Competências, com 54 artigos. No total, é um calhamaço de 265 páginas com 60 mil palavras.
A diversidade ideológica
V. Giscard d´Estaing, presidente da Convenção Constitucional Européia
Outro aspecto atritante da nova constituição deriva das duas doutrinas ideológicas que são dominantes no cenário político institucional europeu. A primeira delas é a liberal ou neo-liberal, que se faz presente na afirmação da divisão dos poderes, no encolhimento do papel do estado e no privilegiamento dos direitos individuais sobre os coletivos. Doutrina essa, como se sabe, defensora das virtudes do mercado, que assume na concepção liberal o papel de regulador-mor dos interesses econômicos e sociais em geral.
A outra deriva da tradição da social-democracia européia, preocupada com a defesa dos direitos corporativos e sindicais, com maior intervencionismo estatal na proteção dos interesses comunitários e num controle fiscal mais rígido sobre as grandes corporações econômicas. Por conseguinte, a Constituição Européia resulta de uma grande acomodação entre essas duas ideologias, delegando ao andar futuro das coisas um acomodamento satisfatório entre elas.
Deus e a constituição
Curiosamente, aliando-se à COMECE (Comissão do Episcopado) coube a um jurista judeu-americano repreender a “ ausência de Deus” na Constituição Européia. Segundo ele, a Europa não pode ignorar o seu passado cristão, crença que serviu-lhe de sustentação moral e ética por séculos. Seguia ele assim a Exortação Apostólica Ecclesia in Europa, emitida em 28 de junho de 2003 pelo Papa João Paulo II que exigia a menção no preâmbulo constitucional ao “ patrimônio religioso, especialmente cristão, da Europa”.
Todavia prevaleceu entre os Sábios da Europa, o principio jacobino da secularização e da separação do Estado da Religião. Ocorre que “Deus” tem significados distintos para cada região e nação da Europa. Para os países do centro e do leste europeu, “Deus” é entendido como o espaço interior de cada ser humano que resistiu a ingerência dos estados totalitários: ao nazismo e ao comunismo.
Para os franceses, porém, “Deus” significa a presença da Igreja Católica imiscuindo-se nos assuntos seculares e na relação do estado com os cidadãos. Sem omitir-se de que, desde a Reforma de Lutero, há na Europa um “Deus” católico e outro protestante ou huguenote, e que a lembrança disso remete às terríveis guerras de religião dos séculos XVI e XVII: ao fanatismo e á intolerância.
Para a massa de muçulmanos que hoje vive dentro dos estados europeus (turcos, marroquinos, argelinos, tunisinos, etc...), estimada ao redor de 15 milhões de indivíduos, a menção a “Deus” somente pode significar o Todo-Poderoso do cristianismo e não a Alá e o seu Profeta. O que para eles acarretará numa ameaça ainda maior de perseguições e preconceitos do que já sofrem no momento (eles, os de fé islâmica, são 7% da população na França e 2,7% na Grã-Bretanha, oscilando de 1% a 2% nos demais estados europeus).
Como há expectativas do ingresso para da República da Bosnia e da Turquia, ambas as nações seguidoras do Profeta, os “Sábios” decidiram-se por acatar o principio secularista francês porque chegaram a conclusão, baseada na História pregressa do continente, que a menção a “Deus” é um embaraço à Unidade Européia e não bem uma soma, dai não terem acolhido as campanhas orquestradas principalmente por organizações católicas a favor de “Deus na Europa”.
O ritual da aprovação
A Constituição Européia parece seguir os passos advogados pelos Federalistas norte-americanos do século XVIII. Cada estado-membro da União terá um prazo e um procedimento de aprová-la ou de rejeitá-la. Alguns poderão adotar o caminho do voto parlamentar, outros, todavia, como já foi o caso da Espanha, aderiram ao referendo, a consulta direta ao povo. É bem possível que algumas nações neguem-se de imediato dar o seu consentimento ao nascente ordenamento jurídico forjado pelos Sábios da Europa.
Ponderações locais, o vício da mentalidade da “capelinha”, desconfiado de tudo aquilo que for mais amplo e maior, vestígio dos tempos medievais, poderá fazer com que a constituição da Unidade Européia seja repudiada aqui ou acolá, mas mais tarde ou mais cedo o bem censo irá prevalecer e a constituição paneuropéia irá sobrepor-se aos eurocéticos e ao egoísmo localista dos ultranacionalistas que tantas desgraças já provocou no passado da Europa.
Fonte: