7.8.12
As grandes fraudes da ciência
Ego, ganância e pilantragem levaram até nomes consagrados a cometer maracutaias em seus estudos e suas teorias
Álvaro Oppermann
Em 1856, nos fundos do Mosteiro de São Tomás, na cidadezinha de Brünn, na Alemanha, espraiavam-se 2 hectares de jardins, hortas e pomares pertencentes à Ordem Agostiniana. Ali o monge Gregório plantava ervilheiras com dedicação e cuidado desmesurados. Zeloso, ralhava quando outro monge, desavisado, escarafunchava nos seus canteiros. Todos diziam que Gregório era brilhante, apesar de um pouco introspectivo - e quiçá excêntrico. Tantos melindres tinham uma razão oculta. Os canteiros eram um experimento científico. Entre 1856 e 1863, o monge cultivou e testou mais de 29 mil mudas de ervilha. Do cruzamento delas, descobriu a existência de regras para a hereditariedade. Ou seja, existiam nos seres vivos "unidades hereditárias" (que hoje chamamos de genes) de caráter dominante ou recessivo. Tais regras explicavam por quê, do cruzamento, algumas ervilhas nasciam amarelas e lisas e outras nasciam verdes e rugosas. O humilde Gregório - nome de ordenação monástica do austríaco Johann von Mendel - passou à posteridade como Gregor Mendel, o pai da genética moderna.
Sua monografia Versuche über Pflanzen-hybriden (Ensaios sobre a Hibridação das Plantas), de 1865, foi pouco lida na época. Gregório morreu na obscuridade, em 1884. Em 1900, seu trabalho foi redescoberto pelos cientistas Hugo de Vries, Carl Erich Correns e Erich von Tschermak. E o monge virou monstro da ciência. Hoje, o mosteiro no qual viveu parte da vida virou o Museu Mendel. É a maior atração turística de Brünn, hoje Brno, na República Tcheca.
É uma história e tanto. Mas ela pode não ser totalmente verdadeira. Em 1911, o matemático e estatístico inglês Ronald Aylmer Fisher levantou a hipótese de que Mendel manipulou seus dados. Apesar de ter anotado o resultado de milhares de cruzamentos de plantas, o monge só utilizou em sua monografia um número insignificante deles. "É curioso que os resultados de Mendel se encontrem, sem exceção, dentro dos limites do erro provável", disse Fisher numa conferência na Universidade de Cambridge. Na vida real, a obtenção de dados tão redondos é dificílima, giraria em torno de 16 para 1. Talvez o monge fosse muito sortudo ou então (e aqui a coisa se complica) "ele tenha descartado de forma inconsciente as plantas duvidosas", disse Fisher.
O caso faz parte de uma das faces menos edificantes da ciência: a das imposturas. Mais de um pesquisador sério e respeitado - e estamos falando de gente graúda, como Isaac Newton e Charles Darwin (veja os quadros) - plagiou, omitiu e arredondou dados, falsificou e manipulou provas ou inventou casos para sustentar suas teorias. Nem sempre fizeram isso de má-fé. "É no mínimo improvável que Mendel tivesse intenção de manipular seus dados", diz o historiador Federico di Trocchio, autor de Le Bugie della Scienza (As Mentiras da Ciência, inédito no Brasil). "Sua pesquisa não é de maneira nenhuma fruto de erros ou falsificações. Ainda é um monumento científico."
A história das fraudes científicas é antiga. Segundo Pablo Schulz e Issa Katime, respectivamente professores da Universidade Nacional do Sul (Argentina) e da Universidade do País Vasco (Espanha), ela começou já na Antiguidade, com o astrônomo e matemático Cláudio Ptolomeu (90-168). Para criar seu sistema geocêntrico, Ptolomeu usou os cálculos do cientista Hiparco de Rodes. Até aí, nenhum problema. Malandramente, porém, Ptolomeu tomou os cálculos como seus. "A diferença de latitude entre Alexandria (cidade onde Ptolomeu morava) e Rodes, de 5 graus, deu a chave para saber a procedência das observações", apontaram Schulz e Katime. O aspecto do céu estrelado varia de acordo com a latitude - a descrição reivindicada por Ptolomeu não poderia ter sido feita em Alexandria, mas em Rodes. Em 1830, o cientista e matemático inglês Charles Babbage queixava-se de que a comunidade científica inglesa "tinha-se corrompido pela indolência e pelo favoritismo". Alertava que esse ambiente era o fermento ideal para a fraude.
Para o historiador Horace Freeland Judson, a conduta fraudulenta é fruto de "teias de cumplicidade" dentro da comunidade científica. Segundo ele, esse jogo costuma tomar quatro formas: a síndrome do prodígio, a arrogância do poder, a loucura a dois e a sedução ao mentor. A mais comum é a primeira. "O perpetrador é quase sempre charmoso e convincente, além de ambicioso", diz Judson em The Great Betrayal: Fraud in Science (A Grande Traição: Fraude na Ciência, inédito em português). Vamos ver alguns casos.
Sapo pintado
Um dos exemplos mais ilustres de "síndrome do prodígio" é o do biólogo Paul Kammerer (1880-1926). Em Viena, no início do século 20, Kammerer era um biólogo em ascensão meteórica. Ex-músico, virtuose do violino, em 1909 divulgou uma pesquisa na qual provava que os sapos de vida terrestre adquiriam características anatômicas de sapos aquáticos quando eram obrigados a copular na água. Diante de uma plateia maravilhada na Academia de Ciências de Viena, demonstrou que os sapos terrestres ganhavam com o tempo "cerdas copuladoras" - calosidades nas patas e antebraços que facilitavam a transa aquática. Kammerer apresentou um sapo com as tais cerdas com uma coloração negra. O mais impressionante, dizia ele, é que, depois de adquirida, a característica anatômica passava aos genes da prole. Foi sensação imediata. Era uma "prova" do lamarckismo, contra a Teoria da Evolução. Contudo, Kammerer não permitia exames no sapo, mantido no Instituto de Investigação Biológica de Viena. Quase duas décadas depois, um biólogo americano, G. K. Noble, conseguiu furar o bloqueio, entrou no instituto e examinou o animal. Descobriu que as famosas cerdas eram falsificações grosseiras, feitas com tinta nanquim. No outono de 1926, Noble expôs a farsa na revista Nature. Humilhado, Kammerer fugiu de Viena. Seu corpo foi encontrado algumas semanas depois numa floresta nos Alpes. Enforcara-se numa árvore.
Embriões falsos
O engodo torna-se mais difícil de detectar quando o perpetrador é um figurão (é a arrogância do poder mencionada por Judson). Parece ser o caso do alemão Ernst von Haeckel. Naturalista renomado e criador do termo "ecologia", Haeckel foi autor, em 1874, de uma série de desenhos de embriões de vertebrados - peixes, galinhas, seres humanos - que mostravam similaridades marcantes em seus primeiros estágios. Segundo ele, seria a prova de um ancestral comum, ponto essencial à teoria da evolução das espécies de Darwin. Os desenhos estavam errados. Não havia esse estágio inicial. No entanto, a descoberta - feita em 1997 pelo embriologista inglês Michael Richardson - foi tardia: por um século os desenhos serviram de base aos manuais de biologia.
Picareta soviético
O geneticista ucraniano Trofim Lysenko (1898-1976) teve ascensão vertiginosa na hierarquia soviética a partir de 1927. Protegido de Stálin, ajudou a demonizar a genética ocidental, considerada burguesa. "Muitos cientistas que lhe fizeram oposição foram demitidos, exilados e até executados durante o período", escreveu a cientista russa Valerie Soyfer em Lysenko and the Tragedy of Soviet Science (Lysenko e a Tragédia da Ciência Soviética, 1994, inédito no Brasil). Lysenko desenvolveu uma teoria chamada "desenvolvimento fásico". As sementes, ao serem tratadas com intenso calor e umidade, aumentariam sua capacidade de germinação. Nonsense. Fraudando dados, convenceu Stálin a bancar sua teoria com o argumento de que ela permitiria uma colheita adicional de trigo no inverno. Nada disso se confirmou. A agricultura soviética - de baixíssima produtividade - continuou patinando.
Plágio
Em 1953, na Universidade de Cambridge, o britânico Francis Crick e o americano James Watson ganharam notoriedade mundial ao descobrir a estrutura do DNA, em forma de dupla hélice. Quando publicaram a descoberta na revista Nature, não deram crédito à colega de departamento Rosalind Franklin. Sem as fotografias do DNA, feitas por Rosalind por difração de raios X, não teriam feito a descoberta. É o que conta o autor Robert Wright na matéria Molecular Biologists Watson & Crick, publicada na revista Time em 1999. Rosalind não teve a quem recorrer.
Um caso de plágio sacudiu o Brasil. Em 2008, um grupo da Universidade de São Paulo (USP), liderado por Andreimar Soares, publicou um trabalho sobre a efetividade de uma substância isolada da jararaca no combate à dengue. No texto, foram reproduzidas, sem citação, imagens de outros estudos, feitos em 2003 e 2006 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Andreimar foi demitido da USP. A responsável pelas imagens, Carolina Dalaqua Sant’Ana, teve o título de doutorado cassado.
Ciência e negócios
Até o início do século 20, o principal motor da fraude foi a busca de fama e prestígio. Hoje há também o dinheiro. Na Segunda Guerra, o governo americano criou o Office of Research and Development, órgão de fomento à ciência e tecnologia para a produção em massa de antibióticos (e para a produção da bomba atômica) - e a ciência se tornou um negócio lucrativo. Em 2005, nos EUA, segundo a Association of University Technology Managers, pesquisadores receberam 42,3 bilhões de dólares em fundos de pesquisa. Do total, 3 bilhões de dólares vieram da indústria. Mas isso tem um preço: agências governamentais e empresas exigem resultados práticos, de curto prazo. E a tentação à fraude aumenta. Em 1999, um artigo da American Medical Association (Associação Médica Americana) mostrou que estudos de drogas de combate ao câncer feitos por institutos sem fins lucrativos costumavam dar resultados negativos oito vezes mais frequentes que os financiados por empresas farmacêuticas. Como escreveu o jornalista americano Ron Schachter na revista University Business, "a pressão por resultados positivos coloca os cientistas num dilema, entre a missão científica e a satisfação do cliente".
As mariposas salpicadas
Entre 1850 e 1950, na Inglaterra, as mariposas salpicadas, da espécie Biston betularia, tornaram-se mais escuras. No início do século 19, eram clarinhas. Com o tempo, foram ficando negras, com manchas brancas. A explicação foi dada pelo biólogo Bernard Kettlewell: um expediente evolucionário de proteção por mimetismo. Na Inglaterra poluída do século 19, os troncos das árvores ficavam enegrecidos pela fuligem do carvão das chaminés. As mariposas, escurecidas, ficavam camufladas e não eram vistas pelas aves, seu predador. Provou a tese em 1955, soltando mariposas brancas e negras junto a troncos de árvores em florestas. Como previsto, os pássaros se alimentaram mais dos insetos brancos nas regiões poluídas e dos negros em regiões de natureza. As mariposas que se deram mal eram as que se destacavam mais no ambiente. Em 1980, porém, um detalhe que passou despercebido finalmente saltou aos olhos dos pesquisadores: mariposas não vivem em troncos de árvore. A pesquisa era fajuta desde o ponto de partida.
Gêmeos: mórbida semelhança
Quando dois irmãos gêmeos univitelinos são separados e criados por famílias distintas esse fato influi em seu QI? É uma velha questão. Nos anos 1940 e 50, o psicólogo inglês Cyril Burt (1883-1971) promoveu estudos com gêmeos e chegou à resposta: fazia diferença, sim. A afirmação agradou. Parecia um argumento a favor da rígida estrutura social britânica. Cyril ganhou o título nobiliárquico britânico de sir. Mas a verdade é que a questão continua em aberto. O estudo era fraudulento. Burt inventara 53 pares de gêmeos para embasar suas ideias. Pior: inventou seus dois assistentes, criando, inclusive, currículos e identidades fictícias para os copesquisadores. Mas o velho Burt levou o segredo para o túmulo. A falcatrua só veio à tona em 1974, três anos depois de sua morte.
Ratinhos pintados
Em 1973, o cirurgião e imunologista William T. Summerlin, do Hospital Sloan-Kettering, nos EUA, teve uma ideia genial para resolver o problema da rejeição de tecidos em transplantes. Receitou fazer um cultivo da pele do paciente misturada com a pele a ser enxertada. Para provar sua teoria, Summerlin realizou um "transplante" de pele experimental: um rato branco ganhou uma pelugem cinzenta tirada de uma ratazana. A notícia ganhou os jornais em 1973. Porém, ao não conseguir repetir a experiência, o doutor levantou suspeitas. Em março de 1974, foi criada uma comissão para investigar suas práticas. Na noite de 27 de março, um dos membros da comissão descobriu o segredo de Summerlin: pegou-o em flagrante no laboratório maquiando um ratinho branco com pintas negras, feitas com um singelo pincel atômico.
Os três patetas
No século 21, três pesquisadores personificaram a infâmia científica. Em 2004, na Coreia do Sul, o veterinário Hwang Woo-suk anunciou a produção bem-sucedida dos primeiros embriões humanos clonados, dos quais, de quebra, se poderiam extrair células-tronco. Virou herói nacional. O inferno astral de Woo-suk começou em 2005: foi acusado de coagir as mulheres de sua equipe científica a doar óvulos. Depois, descobriu-se que as suas pesquisas eram pura fraude. Woo-suk saiu algemado do laboratório. Nos EUA, o físico Jan Hendrik Schön, pesquisador do Bell Labs, e o químico nuclear Victor Ninov, do Lawrence Berkeley National Laboratory, aprontaram estripulias tão graves que obrigaram a American Physical Society (Sociedade dos Físicos Americanos) a adotar um código de ética mais rígido. Schön falsificou mais de 20 artigos acadêmicos. Ninov forjou evidências que provariam a criação do elemento químico 118, o mais pesado da tabela periódica, chamado ununoctium (ununócio). Os dados eram falsos. Ninov perdeu o emprego. E o elemento 118 foi demitido.
O homem de Piltdown
Meio homem, meio orangotango, e completamente fraudulento
Em 18 de dezembro de 1912, o arqueólogo Charles Dawson e o geólogo Arthur Smith apresentaram a suposta maior descoberta arqueológica da história: o crânio de Piltdown, o "elo perdido" entre o Homo sapiens e nossos ancestrais primatas. Ele fora encontrado em 1908 por um operário no lugarejo de Piltdown, perto de Sussex, na Inglaterra. Faziam parte dos achados: um crânio parcial, um dente solto e uma mandíbula com dentes. Em 1953, o dentista T. A. Marston provou que o crânio era uma fraude. Testes de flúor mostraram que os dentes pertenciam a um orangotango e o crânio a um ser humano. Até hoje não se sabe quem foi o autor da fraude. Muitos apostam em Dawson. Um candidato forte na lista de suspeitos era o teólogo e filósofo jesuíta Teilhard de Chardin. Também paleontólogo e conhecido por seu senso de humor, ele estava em Piltdown entre 1908 e 1909.
Até tu, Freud?
As escorregadas éticas dos monstros da ciência
Os melhores pesquisadores também cometeram pecadilhos. Sir Isaac Newton (1643-1727), Charles Darwin (1809-1882) e Sigmund Freud (1856-1939) que o digam. "Os casos clínicos de Freud estão repletos de mistificações", diz o historiador da ciência Horace Freeland Judson. Um dos casos mais espetaculares de cura psicanalítica, do qual Freud gabava-se particularmente, era o do paciente Sergei Pankeev, um aristocrata russo que padecia de depressão severa. O caso foi descrito no livro Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos, de 1918. Porém Pankeev nunca foi curado. Depois de receber alta do pai da psicanálise, foi internado diversas vezes em hospitais psiquiátricos nas décadas seguintes. Nos anos 1970, pouco antes de falecer, confidenciou à jornalista austríaca Karin Obholzer: "Eu estou hoje no mesmo estado de quando me tratava com Freud".
Isaac Newton, ao calcular a velocidade do som, não conseguiu explicar uma discrepância de 10% entre a sua teoria e o comportamento do som na prática. Arrogante e perfeccionista, Newton fez uma série de ajustes para adequar a realidade à sua teoria. Darwin também fez das suas. Segundo Judson, uma série de fotografias de seu livro A Expressão das Emoções nos Homens e nos Animais (1872) foram encenadas para reforçar o elo emocional de diferentes espécies.
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/grandes-fraudes-ciencia-694405.shtml