18.9.12
A Cruz Vermelha e as Convenções de Genebra e de Haia
A partir de 1864, as Convenções de Genebra e de Haia tentaram impor um pouco de humanidade ao inferno da guerra. Os resultados apareceram, mas bem abaixo do desejado
Texto Marcel Verrumo e Fabio Marton
"As Armas passam sobre os mortos e feridos, estendidos sobre o solo. Cérebros vAzam sob as rodas, membros são quebrados e arrancados, corpos mutilAdos ao ponto de se tornarem irreconhecíveis - o solo está pantanoso com o sangue." Henri Dunant, fundador da Cruz Vermelha
Se o texto acima parece chocante, é porque ainda cumpre seu propósito. Lançado em 1862, o breve livro Un Souvenir de Solferino (Lembrança de Solferino), do empresário suíço Henri Dunant, foi uma dessas obras que mudaram o mundo. Logo no começo, há outra passagem, com soldados invadindo uma capela para matar a pedradas um oficial inimigo sendo socorrido, seguida por enfermeiras sendo alvejadas em campo enquanto tentavam levar cantis a soldados agonizantes. O livro é um relato da Batalha de Solferino (1859), na qual aliados franceses e italianos enfrentaram austríacos, no total de 267 mil combatentes. A derrota austríaca garantiu a unificação da Itália sob o rei Vítor Emanuel 2º. A batalha em si ocupa só 1/4 das 39 páginas do livro. O que importa é o que vem depois, descrito em detalhes igualmente explícitos: o sofrimento imenso dos feridos e as condições precárias de seu socorro.
Dunant estava numa viagem de negócios na Itália quando acabou em Solferino, no dia 24 de junho de 1859. Ele chegou ao fim do dia, quando os austríacos se retiravam, deixando 40 mil mortos e feridos agonizantes no campo. Os franceses organizaram um esforço médico para tratar feridos de ambos os lados, e Dunant, mesmo não sendo médico, coordenou um intenso esforço civil para salvar os soldados. Daí vem a principal ideia do livro: organizar uma entidade internacional de médicos voluntários, que atendesse feridos independente do lado, e estabelecer regras internacionais para o tratamento de feridos e combatentes.
Dunant retornou à Genebra e lançou a primeira edição pagando do próprio bolso em 1862. As 1,6 mil cópias foram enviadas a figuras políticas e militares da Europa. E o empresário passou a viajar pelo continente para pregar suas ideias. Em 9 de fevereiro de 1863, com 4 outras figuras importantes de Genebra, Dunand fundou o Comitê Internacional de Socorro aos Militares Feridos, que mudaria seu nome para o atual - Comitê Internacional da Cruz Vermelha - em 1876. Com o apoio do governo da Suíça, o comitê organizou encontros diplomáticos, que resultaram na 1ª Convenção de Genebra, documento assinado em 22 de agosto de 1864. "Os artigos estabeleciam o respeito e a proteção das equipes e instalações sanitárias, assim como reconheciam o princípio essencial de que os militares feridos ou enfermos devem ser protegidos e receber cuidados seja qual for sua nacionalidade", diz Gabriel Valladares, da delegação regional da Cruz Vermelha para Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. A 1ª Convenção de Genebra previu também a criação de sociedades nacionais filiadas ao Comitê Internacional e adoção da cruz vermelha como símbolo.
A trajetória das Convenções de Genebra
1859 Henri Dunant presencia a Batalha de solferino
1862 Dunant lança seu livro e inicia a militância
1864 Primeira Convenção de Genebra, com a criação da Cruz Vermelha
1899 Primeira Convenção de Haia proíbe armas químicas, ataques aéreos de balão e balas dum-dum
1906 Segunda Convenção de Genebra define regras para hospitais navais
1907 Segunda Convenção de Haia, sobre regras de combate e bombardeio naval
1925 Protocolo de Genebra, proibindo armas químicas
1929 Terceira Convenção de Genebra, com detalhes sobre o tratamento de prisioneiros de Guerra. Não é assinada por união soviética e Japão.
1949 Quarta Convenção de Genebra, sobre os direitos dos civis nas guerra. É a que vale hoje em dia.
1977 Protocolos I e II, detalhando o que constitui violações dos direitos dos civis em conflitos internacionais e nacionais. Não são ratificados por Estados Unidos, Israel, Irã, Paquistão e Turquia.
2005 protocolo III, adotando o "cristal vermelho" como símbolo alternativo.
Na Guerra Russo-Turca de 1877-1878, a Turquia decidiu usar outro símbolo porque a cruz era considerada cristã demais. O crescente vermelho usado pelos turcos foi respeitado pelos russos, que por sua vez tiveram sua cruz vermelha respeitada pelos turcos. A princípio informalmente, oficialmente a partir de 1929, o Crescente Vermelho é símbolo e nome alternativo para Cruz Vermelha - trata-se da mesma entidade. Em 2005, o Cristal Vermelho foi adotado como terceiro símbolo, sem conotação religiosa.
Em 1906, foi assinada a 2ª Convenção de Genebra, atualizada para incluir detalhes de conflitos navais. Em paralelo, em 1899 e 1907, foram realizadas as Convenções de Haia, na Holanda. Esses encontros abordavam o comportamento militar em combate e faziam referências às convenções de Genebra. A primeira proibiu armas químicas, ataques aéreos de balões, o uso de balas deformáveis (as dum-dum) e o início das hostilidades antes de declaração formal de guerra. A segunda convenção teve bem menos êxito e praticamente limitou-se a questões navais, como a proibição de minas marítimas desancoradas. O senador brasileiro Ruy Barbosa esteve nessa convenção e discursou ativamente em defesa das nações mais fracas, pelo que ganhou o apelido (no Brasil) de Águia de Haia.
Desde que as leis de guerra apareceram, os países signatários têm dado um jeito de burlar suas regras quando surge a necessidade, real ou aparente. As convenções de Haia, como vimos, proibiam ataques aéreos e químicos. Dez anos depois, esses se tornavam símbolos da Primeira Guerra Mundial. Entre 1915 e 1918, cerca de 1,2 milhão de soldados morreriam por armas químicas de ambos os lados. Ninguém foi julgado, mas o impacto psicológico foi intenso. Em 17 de junho de 1925, foi assinado o Protocolo de Genebra, proibindo o emprego militar de gases asfixiantes e tóxicos, além de armas bacteriológicas.
Em 1929, foi assinada a 3ª Convenção de Genebra, que detalhava direitos dos prisioneiros de guerra. A Segunda Guerra foi outro festival de abusos. As leis de Haia e Genebra foram levantadas em 1946, durante os julga-mentos de Nuremberg e Tóquio, que resultaram em 12 e 7 condenações à morte. Por surpreendente que seja, o tratamento de prisioneiros de guerra foi uma das maiores acusações contra o Japão, que frequentemente exterminava prisioneiros, mas não contra os nazistas. Para prisioneiros ocidentais, eles geralmente respeitavam a Convenção de 1929, assinada pela Alemanha. Soviéticos, que não haviam assinado o acordo, eram enviados para campos de extermínio Nazistas e japoneses foram julgados, mas, em matéria de terrorismo aéreo, os aliados superaram de longe o Eixo.
Em janeiro de 1945, a cidade alemã de Dresden, que não tinha nenhum valor militar, foi incinerada pelos britânicos. Em agosto, foi a vez de os americanos estrearem a bomba atômica contra civis em Hiroshima e Nagasaki. Pelo impacto do bombardeio de terror na Segunda Guerra, a quarta e última Convenção de Genebra (1949) finalmente abordou os direitos dos civis. Contando atualmente com 192 países signatários, a convenção proibiu a utilização de civis como escudos humanos, o extermínio coletivo e os bombardeiros aéreos a civis. Nas décadas seguintes, protocolos adicionais complementariam a 4ª Convenção, abordando direitos das vítimas de guerra.
Como antes, o sucesso das leis é discutível. A Guerra Irã-Iraque (1980-1988) viu o uso moderno de armas químicas. A Rússia é acusada de inúmeras violações nas Guerras da Chechênia (1994-1996 e 1999-2009). E os "mocinhos do mundo" não ficam para trás. Na Guerra do Vietnã (1955-1975), os EUA usaram o agente laranja, produto químico que causa problemas congênitos - sob a desculpa que não era veneno, mas um desfolhante cujo alvo eram plantações.
O massacre de 504 civis em My Lai, em 1968, levou a uma condenação: o tenente William Calley, que cumpriu 3,5 anos de prisão domiciliar. Na Guerra ao Terror dos anos 2000, os americanos usaram de termos como "combatente irregular" para chamar seus prisioneiros de guerra, de forma que não fossem enquadrados na Convenção de Genebra - esse vácuo legal levou aos abusos de Abu Grahib e Guantánamo. Às vésperas de completarem 150 anos, podemos dizer que as Convenções de Genebra foram um fracasso? A Cruz Vermelha tornou-se uma instituição venerável, e o tratamento de prisioneiros de guerra é melhor hoje que nos tempos de Dunant (ele ganhou o primeiro Prêmio Nobel da Paz, em 1901, e a Cruz Vermelha outros 3). Mas, na prática, as guerras assimétricas modernas fazem a Convenção de Genebra parecer algo de tempos românticos. Não se espera que organizações terroristas tratem seus reféns segundo a Convenção de Genebra, assim como os militantes aprisionados não são tratados como combatentes militares. Como não há uma "polícia do mundo", as leis acabam valendo apenas para o lado perdedor.
Sanguessugas na Cruz Vermelha
Cada sociedade nacional da Cruz Vermelha internacional é independente para se financiar. ao redor do mundo, elas tiram seus fundos de doações, investimentos e alguns produtos e serviços, como kits de primeiros socorros e administração hospitalar. Quando ocorre uma catástrofe, campanhas são realizadas para doar para a cruz Vermelha, que transfere o dinheiro da sociedade local para a do país afetado. em 2011, a cruz Vermelha brasileira fez campanhas para ajudar as vítimas do tsnunami de 2011 no Japão, a fome na Somália e os deslizamentos de terra no rio.
Nada desse dinheiro chegou às vítimas. segundo reportagem da revista Veja de 6 de agosto, o presidente nacional da Cruz Vermelha desviava todas as doações e outras verbas para uma conta secreta no Maranhão. a denúncia veio de funcionários da própria cruz Vermelha no rio, que nunca viram as verbas da campanha dos deslizamentos - incluindo aí doações vindas do exterior. Grandes criminosos não surgem apenas nas guerras.
Fonte: Aventuras na História