5.9.12
O testemunho de Homero e a busca da virtude
Homero foi aconselhado a buscar através de façanhas inauditaso exercício da sua virtude
Foto: Wikimedia/Divulgação
É muito citado entre os estudiosos da ética dos gregos, o registro feito por Homero do testemunho do velho Nestor, o único idoso e sábio que acompanha os aqueus no sítio que moviam à cidade de Tróia, (Canto XI daIlíada), relatando um encontro que ele assistira um tanto antes da guerra, no palácio do rei Peleu, o pai de Aquiles. Na cerimônia em que o filho apresentava seus respeitos para ir acompanhar Agamêmnon e Menelau na missão de resgatar Helena das mãos dos troianos, o pai aconselhou-o "a ser sempre o melhor (aristeuein) e estar acima dos demais". Que o jovem buscasse através de façanhas inauditas, vir poder exercer a sua virtude (areté). Galgar algo que fosse merecedor do reconhecimento dos seus pares para, com isso, ter assento no reino dos heróis imortais, aqueles que jamais saíam da lembrança dos homens.
Viver é Combater
Aquela exortação do pai orgulhoso a um filho que parte para a guerra continha a essência dos objetivos de um nobre, de um fidalgo: devotar-se na busca da excelência, sobrelevar-se, tornar-se alguém memorável. Todo o Código do Cavaleiro que por séculos iria orientar a aristocracia helênica baseava-se apenas nisso: a obrigação de tentar ser alguém extraordinário, inesquecível, cuja fama correria o mundo. Nada mais podia vir a interessar um autêntico guerreiro, que para tanto devia ser provido de thymos, o ânimo, impulso que dará início a sua legenda. Tal como um tablado serve para um ator expor seu histrionismo, o campo de batalha serve como um amplo teatro onde, aos olhos dos demais valentes, ele demonstra suas habilidades e virtudes excepcionais; corajoso na refrega, magnânimo na vitória. O teste definitivo se dava em meio aos gritos lancinantes dos feridos, ao cheiro forte do sangue derramado, do relinchar selvagem dos corcéis, da gritaria geral de fúria, de horror ou de êxtase da soldadesca em meio ao Campo de Marte. O confronto singular era, por assim dizer, o exercício obrigatório que ele devia cumprir na conquista da areté. Viver é Combater!
Ressalte-se que a pugna somente merecerá o registro, só ficará na história e no canto do rapsodo, se ela se der entre os da mesma estirpe: um nobre de linhagem, de sangue aristocrático. É entre leões que se dá a embate. Só um deles merecerá os louros sagrados da vitória. Nenhum valor lhes seria acrescentado à fama enfiar uma lança num peito plebeu, gastar o fio da lâmina num infante qualquer, num anônimo que ninguém sabe de onde veio. Entre os tantos encontros na arena relatados por Homero ao longo da Ilíada (os que envolvem morte e ferimentos são mais de 140 registros, descritos um a um pelo gênio poético dele), merece a atenção o de Glauco (um jovem guerreiro lício, filho de Anfilioques, que lutava do lado troiano) com o enfurecido Diomedes (filho de Tideo, um espadachim terrível que veio junto com os gregos, e que além da ferocidade natural era protegido pela deusa Atena). Um pouco antes de chocarem suas carruagens, Glauco responde à indagação do rival sobre sua linhagem: expõe então ao inimigo em detalhes de como ele descendia de casa ilustre, como corria sangue puro em suas veias, herdado do sábio Belerofonte, o quanto ele se qualificava para aquele duelo mortal. Um bravo mais do que merecedor de estar ali na liça provocando o famoso Diomedes. (*)
(*) ...se queres ser bem informado acerca do meu nascimento, há uma cidade, Efira, num recanto de Argos, onde se criam cavalos, e ali foi a morada de Sísifo.....Hipoloco foi meu pai. Mandou-me a Tróia e recomendou-me muitas vezes que me destacasse e sobrepujasse os demais, e não envergonhasse a raça do meu pai, a mais valente em Efira e na vasta Lícia. Desta raça e deste sangue eu me orgulho de ser.¿(Diomedes então, reconhecendo que fora amigo daquela família, confraternizando com Glauco, propõe que eles apertem as mãos e façam uma trégua entre eles)Canto VI da Ilíada.
O homem excelente e o homem vulgar
A busca da areté é, portanto, um atributo exclusivo do homem de valor, do que se destaca e ascende entre tantos outros. Na ética guerreira de Homero não se cogitava que nascidos de ventre ordinário pudessem almejar tal prêmio. Ao de baixa origem era reservado um destino anônimo de um figurante sem brilho. Quando a morte o apanhava em meio ao tumulto da batalha não havia dor nem luto, era um simples ninguém que jamais seria incluído no Livro dos Heróis. Tudo era diferente quando um guerreiro invulgar, um notável reconhecido por todos, era abatido. Por vezes, até o combate cessava em sinal de sincero respeito frente à triste notícia de tamanha perda. Aquiles, em homenagem póstuma a Pátroclo, seu companheiro de aventuras, desaparecido do mundo dos vivos por obra do gládio de Heitor, príncipe de Tróia, decide honrá-lo na cerimônia final de cremação do corpo com jogos e disputas viris. Distribui entre os competidores vencedores, parte considerável do seu patrimônio: "caldeiras, trípodes, cavalos, mulas, bois, belas mulheres, armas e talentos de ouro" (Canto XXIII ¿ Os funerais de Pátroclo).
Alcançar a areté, a virtude que irá imortalizar o guerreiro, não é, pois, um apanágio de todos eles. O verdadeiro opositor do demandante não é nem nunca foi o homem comum (demiurgói), mas sim outro seu igual, nobre como ele. Ainda que pertençam a uma casta especial, tida como a dos melhores homens (aristói), somente uns poucos se qualificarão. Heitor, em seus derradeiros momentos, ao ver que a morte lhe chegava, disse: "Agora, meu destino encontrou-me. Que eu não pereça docilmente, sem bravura e sem glória, mas praticando um grande feito para os ouvidos das gerações que hão de vir" (Canto XXII, 304-5).
Nem o escravo nem aquele que algum dia foi homem de origem ilustre mas tornou-se escravo (pois os deuses removem dele o que lhe restara da areté), poderá sequer sonhar com tal aspiração. Esses pobres estão condenados ao esquecimento. A vida deles foi-se como uma folha ao vento, sem deixar saudades ou qualquer outra lembrança. É frente aos seus pares que o herói irá colher o "reconhecimento" e o "prestígio" que lhe é devido. Somente ao vitorioso é que poderemos chamar de monarca dos aristocratas, o eleito entre os eleitos, desde que ele tenha tido um porte intrépido aos olhos do deus Marte, e seus dois filhos, os demônios Fobos (o medo, o pânico, a fuga espavorida) e Deimos(o terror, o pavor personificado). (*)
(*) O tema de haver um duelo primeiro entre iguais que depois, conforme quem vença ou saia derrotado, irão se separar para sempre, um como senhor o outro como escravo, foi exposto por Hegel numa célebre passagem da "Fenomenologia do Espírito" (IV- A ¿ "A independência e dependência da consciência de si: Dominação e Escravidão", editada em 1807). O vitorioso, por sua vez, dali em diante, como "consciência para si", sempre terá que se mostrar, exibindo-se frente aos seus pares, os vitoriosos de outros duelos, "a outra consciência", para merecer deles o "respeito" e o "reconhecimento".
O modelo dos heróis
O que a ética de Homero propõe é o cultivo de um modelo, a do Homem Perfeito, o Homem de Bronze. Um ser raro que não se guia pela lei comum nem é obediente ao convencional; é o fora de série que não somente se sobressai entre os demais como faz ele mesmo as regras que pretende seguir. Não são os carneiros balindo em rebanho quem o inspiram, mas sim a solidão altiva do lobo e a bravura o leão. É um herói que, mesmo sem qualquer amparo dos deuses, deve responder sozinho aos desafios que surgem e vingar as desonras que por acaso o submetem. Ele é superior. Recebeu uma herança honrada, de escola, a qual precisa manter imaculada, sem as manchas da covardia e da deserção.(*)
O seu esforço era ampliar o nome herdado por meio de uma fama ainda maior dos que o antecederam. De estatura elevada, de notável vigor físico, belo, destro com as armas e com os cavalos, varonil, ágil e astuto, partilhando os despojos de guerra com os amigos, piedoso para com deuses e implacável para com os inimigos, servia como exemplo a todos. Devia sempre considerar que era melhor conquistar a celebridade numa só ação, numa proeza impressionante, ainda que correndo perigos mil, do que deixar correr o restante da vida sem um brilho, sem um feito, sem nada. Preferível viver pouco deixando legenda, como foi o caso de Aquiles, do que muito tempo e não ser ninguém. (**) Todos os demais cavaleiros deviam segui-lo nessa decisão. As gerações que se sucedem teriam sempre o seu nome na lembrança, invocando-o em meio à batalha, inspirando-se nos feitos de outrora. Essa era a verdadeira imortalidade que um herói poderia almejar. Jamais ele seria apagado da memória dos seus e na de todos os que o sucederão pelas idades ainda por vir.
(*) Nietzsche, filósofo contemporâneo, iria fazer reviver esse ethos aristocrático na construção do super-homem, o que estará "acima do bem e do mal", olhando com desprezo os vencidos e os fracos (ver "Assim Falou Zaratustra", 1883)
(**) "Quem está impregnado de estima própria antes quer viver em breve espaço no mais alto gozo que passar uma longa existência em indolente repouso; prefere viver um ano só por um fim nobre que uma larga vida por nada; escolhe antes escutar uma única ação grande e magnífica, a fazer uma série de pequenas insignificâncias."
Efeitos perduráveis
Werner Jaeger, um dos mais eruditos estudiosos da cultura grega antiga, assegurou que o verdadeiro objetivo da formação educacional grega, a Paidéia, desde aqueles tempos, foi imitar essa virtude dos antigos guerreiros. O fato de Atenas bem mais tarde ter implantado uma democracia não alterou profundamente a concepção de herói herdada dos tempos da Grécia Arcaica e de domínio aristocrático. Seus dois maiores filósofos, Platão e Aristóteles, educadores do Ocidente, por igual continuaram presos à ética arcaica do valentão nobre e destemido como um ideal a perseguir, sendo que o último a considerou como um norte aplicável à vida dos filósofos. Muito dela foi, por igual, absorvido pelos atletas olímpicos que mantiveram as pistas de corridas e os saltos de obstáculos como um pacífico substitutivo dos campos de batalha, mantendo ente si os mesmos princípios estabelecidos pelo Código dos Cavaleiros. Grande parte da retórica democrática continuou influenciada pelos mesmos ideais éticos, de fazer com que também na política os cidadãos seguissem as regras da convivência cavalheiresca, o mesmo acontecendo com os constantes duelos verbais travados entre os homens cultos contidos nos "Diálogos" de Platão ou ainda entre os grandes oradores da cidade.
Bibliografia
Aristóteles ¿ Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2000.
Camps, Victória (org.) Historia de la ética: 1 ¿ de los griegos al renacimiento. Barcelona: Editorial Crítica, 1987.
Finley, M.I. ¿ O mundo de Ulisses. Lisboa: Livraria Martins Fontes, 1972.
Finley, M.I. ¿ A política no Mundo Antigo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985.
Hegel, G.W.F. ¿ Fenomenologia do espírito.Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
Homero ¿ A Ilíada. São Paulo: Ediouro Publicações, 1998.
Jaeger, Werner ¿ Paidéia. São Paulo: Editora Herder, s/d.
Rowe, Christopher ¿ Introducción a la ética griega. México: Fondo de Cultura Económica.1979.
Fonte: VOLTAIRE SCHILLING