29.1.13
Guerra do Chaco: no inferno verde
Poeira, pouca água e muito calor. Se há um lugar inóspito no mundo, ele fica no local onde Paraguai e Bolívia travaram a Guerra do Chaco
Ricardo Bonalume Neto
"Inóspito”. Pode procurar: na maior parte dos textos que falam da Guerra do Chaco entre Paraguai e Bolívia (1932-1935), a palavra vai aparecer na primeira frase, no primeiro parágrafo ou no primeiro capítulo – geralmente comentando como é difícil achar um local mais inóspito para se travar uma guerra.
O Chaco paraguaio já foi nada carinhosamente chamado de Inferno Verde, uma região meio floresta, meio deserto, meio cerrado, reunindo tudo de ruim que esses ambientes apresentam. Tem árvores altas e arbustos espinhosos que impediram a movimentação das tropas, é verde, mas tem pouquíssima água, tem poeira e calor; muito, muito calor. Está localizado a leste do rio Paraguai.
Quando o avião de transporte C-212 da Força Aérea paraguaia sobrevoava a região, a impressão é que nada parecia muito diferente ou fora do comum. Mas quando a tripulação abre a porta para os passageiros descerem no antigo quartel-general em Isla Poí, parece que alguém abriu a portinhola de uma caldeira. O bafo de ar quente invade o avião, criando uma imediata vontade de descer – literalmente, da frigideira para o fogo.
Apesar do nome, Isla Poí não é uma ilha cercada de água por todos os lados. Bosques de vegetação mais densa em meio ao campo aberto ou cerrado tinham esse nome, pois pareciam ilhas em um mar verde. Eram locais taticamente importantes, pois serviam de ponto forte razoavelmente protegido para as tropas.
No fim do mundo
Temperaturas batendo nos 40° C são comuns. A poeira logo invade sua roupa, seus olhos, sua boca. Como foi possível que os dois países mais pobres da América do Sul tenham passado três anos lutando por este fim de mundo? Como foi possível morrerem aqui 60 mil bolivianos e 31,5 mil paraguaios?
A Bolívia tinha então três milhões de habitantes e o Paraguai apenas um milhão, o que torna o número de mortos ainda mais impressionante. Como comparação, os Estados Unidos tinham cerca de 215 milhões de habitantes em 1975 – ano de encerramento da Guerra do Vietnã, na qual morreram em uma década 58 mil soldados americanos.
Mas não era só no número de potenciais recrutas que a Bolívia era superior. Sua economia também era três vezes mais rica, baseada na mineração de estanho e prata, em comparação com a frágil economia agropecuária do Paraguai. As Forças Armadas bolivianas estavam, portanto, muito mais bem equipadas do que as rivais no começo da guerra.
Petróleo e gás foram achados na Bolívia. Isso fez surgir o mito de que a Guerra do Chaco foi mais uma guerra pelo petróleo. Na verdade, a disputa territorial entre os dois países vinha da época colonial, pois uma fronteira entre dois vice-reinados espanhóis passava pelo Chaco sem ser bem-definida.
Os dois países independentes foram, aos poucos, criando pequenas povoações e fortins defensivos no Chaco, algo difícil dada a quase inexistente capacidade do local para a agricultura e a escassez de água na região.
A perda do território no litoral pela Bolívia na Guerra do Pacífico (1879-1883) contra o Chile despertou o desejo de uma saída para o mar através do navegável rio Paraguai. Mas para isso seria preciso tomar todo o Chaco.
IncompetÊncia militar
Os bolivianos mereciam então o título de os mais incompetentes militares das Américas. Mesmo com ajuda do Peru, foram derrotados pelo Chile. Bastaram colonos brasileiros, sem intervenção do Exército, para perderam o Acre para o Brasil no começo do século 20. Agora teriam a chance de redimir a “honra” vencendo o pequeno Paraguai. Mas, mais uma vez, foram derrotados.
Escaramuças tinham ocorrido em 1928. Mas, em 15 de junho de 1932, os bolivianos ocupam um pequeno fortim paraguaio perto do lago Pitiantuta, forçando a fuga do destacamento de exatos seis soldados. Ninguém morreu, mas foram os primeiros tiros da guerra. O fortim Mariscal Carlos Antonio López – homenagem ao ditador paraguaio, pai do Solano López da Guerra do Paraguai – foi logo retomado. Os bolivianos reagem tomando outros postos paraguaios em Corrales e Toledo e, principalmente, o forte de Boquerón.
Ainda hoje é possível ver trincheiras e abrigos em Boquerón, local de uma das mais decisivas batalhas da guerra. Os combatentes usavam as resistentes árvores do Chaco para criar abrigos e bunkers protegidos contra fogo de artilharia. As árvores mais populares eram os quebrachos, palavra que deriva do espanhol para “quebra-machado”. São abrigos pequenos, escuros, cavados na terra e com toras servindo de cobertura. Dentro dele ,o soldado agacha-se, ouvindo a explosão dos obuses e o zunir dos estilhaços.
Vantagem paraguaia
Quando começou a guerra, os dois países tinham exércitos inacreditavelmente pequenos. A melhor armada Bolívia tinha um exército de 5 539 homens; o do Paraguai ostentava meros 4 026 homens. Os paraguaios tinham duas vantagens, contudo.
O teatro de operações estava então mais próximo, e tropas podiam ser transportadas por navio pelo rio Paraguai até Porto Casado, de onde seguiam por ferrovia até perto do QG em Isla Poí e da frente de batalha. Já os bolivianos tinham de marchar ou ser transportados por centenas de quilômetros nos poucos caminhões disponíveis. O calor e a falta de água tornavam quase impossível o uso de cavalos. As unidades de “cavalaria”, na verdade, tornaram-se infantaria desmontada.
E, em segundo lugar, o governo e os militares do Paraguai mobilizaram o país mais rapidamente. O governo da Bolívia queria evitar um dispendioso deslocamento em grande escala, por isso os reforços chegavam a conta-gotas para as tropas no teatro de operações. Só no final da guerra – quando isso já não importava mais –, os bolivianos conseguiram traduzir sua superioridade numérica de potencial para real.
Boquerón foi guarnecido pelos bolivianos com apenas 700 homens, mas os paraguaios conseguiram mobilizar 5 mil para expulsá-los dali. A resistência foi feroz, mas a derrota era inevitável, criando-se um precedente que caracterizaria o resto da guerra: a superior capacidade de manobra dos paraguaios cercaria unidades bolivianas, que se renderiam em massa, por falta de comida, munição e, principalmente, de água. Morreram cerca de 300 da guarnição boliviana de Boquerón – ainda hoje enterrados ali –, e outros 400 foram aprisionados em setembro de 1932.
Foi a primeira grande vitória do maior general da guerra, e certamente um dos principais nomes da história militar latino-americana: o paraguaio José Felix Estigarribia Insaurralde (1888-1940). Ele cometeu alguns erros táticos, e as inexperientes tropas paraguaias também. Em 8 de setembro, por exemplo, bastaram dois caças bolivianos metralhando uma coluna de tropas para causar pânico entre os paraguaios, que debandaram fugindo para o mato.
Mas Estigarribia e seus comandados aprendiam com os erros; mais ainda, sobreviviam para lutar de novo. Já os soldados bolivianos eram capturados em grande quantidade, sendo substituídos por recrutas bisonhos que não tinham um cadre de veteranos para treiná-los.
Um erro fatal
O governo da Bolívia cometeu então um dos seus maiores erros da guerra: convidou o general alemão Hans Kundt (1869-1939) para chefiar suas tropas. Kundt servira antes no país, onde, por exemplo, ajudara a organizar o exército como parte de uma missão de treinamento alemã antes da Primeira Guerra. Era um bom organizador, mas péssimo tático e pior estrategista. Continuou a tendência de pedir reforços por conta-gotas, praticamente só fazia ataques frontais, ignorava dados de inteligência como os de reconhecimento aéreo e não delegava autoridade.
Estigarribia tinha de lutar contra as dificuldades logísticas, a superioridade numérica e tecnológica do inimigo. Mas ele era um brilhante tático e estrategista. Planejava e executava batalhas de aniquilamento, envolvendo o inimigo pelos flancos, cercando suas tropas e forçando grande número a se render. Foi assim em Campo Vía, dezembro de 1933, sua maior vitória, quando os paraguaios capturaram 4 856 bolivianos (outros 2 686 foram mortos em combate). Ao final da guerra, os paraguaios tinham 23,5 mil prisioneiros bolivianos, contra meros 2 498 paraguaios aprisionados.
Com o avanço paraguaio chegando em 1935 a território indiscutivelmente boliviano, a guerra poderia ter mudado de caráter. Quanto mais longe de Assunção, maiores eram as dificuldades logísticas de Estigarribia. Mas os dois países estavam exaustos. A guerra sem sentido terminou com cessar-fogo em junho de 1935. Os paraguaios venceram. Ficaram com a maior parte do Chaco, onde hoje singelos monumentos relembram os sacrifícios de milhares de camponeses analfabetos, descalços e ignorantes dos motivos da guerra, mas inegavelmente corajosos.
Fonte: Aventuras na História