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É provável que mulheres, homens e crianças tenham servido de alimento a outros humanos na região de Serra de Atapuerca, na Espanha, há 800 mil anos
por Frédéric Belnet
O arqueólogo britânico Paul Bahn costuma dizer com ironia que a prática do canibalismo na pré-história é uma hipótese difícil de engolir. Trata-se de um assunto delicado, um tabu, pois é difícil para nosso senso de ética assumir ancestrais antropófagos na árvore genealógica. Difícil também é o trabalho dos pesquisadores em identificar e catalogar os objetos de pesquisa, uma vez que são raros e sempre discutíveis, ou seja, são mais indícios do que provas formais.
Entre as evidências consideradas fracas estão as marcas de mordidas humanas em restos humanos. Seriam fruto de atos de canibalismo. Nos cemitérios de Zhoukoudian, na China, de Steinheim, na Alemanha, e no monte Circeo, na Itália, crânios com um furo no osso occipital (na região da nuca) suscitam uma outra questão: o cérebro teria sido retirado para servir de refeição?
Por outro lado, entre os indícios considerados como provas estão os ossos humanos quebrados e os que possuem traços de descarnamento, às vezes em parte calcinados e misturados a resíduos de origem animal. “A origem dessas práticas parece (...) bastante recuada no tempo. As ossadas humanas mais antigas que conhecemos na Europa, encontradas no sítio arqueológico de Gran Dolina, em Atapuerca, norte da Espanha, têm aproximadamente 800 mil anos, estavam misturadas a restos de animais e possuem marcas de decapitação, estrias de corte e fraturas provocadas pela ação humana, particularmente na região da medula óssea. Mulheres, homens e crianças provavelmente foram consumidos por outros humanos”, afirma Marylène Patou-Mathis, pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), na França, e especialista em pré-história.
Outros exemplos são do período Paleolítico, como o crânio quebrado do Homo erectus de Tautavel, encontrados na parte oriental dos Pireneus, em território francês, com idade estimada em 450 mil anos. Ainda existem muitos casos relacionados ao homem de Neandertal: “Entre 100 mil e 120 mil anos, seis neandertais, inclusive uma criança de 6 ou 7 anos e um adolescente de mais ou menos 15 anos, foram despedaçados como um animal caçado na região de Baume Moula-Guercy, em Ardèche”, diz Marylène Patou-Mathis. Podem-se citar também 12 espécimes encontradas em El Sidrón, na Espanha, com idade de 50 mil anos, ou os 13 neandertais descobertos na cidade de Krapina, na Croácia.
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Ossadas com marcas de corte encontradas na região do rio Caves, África do Sul, podem representar indícios de canibalismo
[continuação]
Entre os primeiros Homo sapiens também há evidências de canibalismo. Nas grutas do rio Klasies, na África do Sul, foram encontrados ossos humanos com cerca de 80 mil anos de idade, quebrados, queimados e com sinais de descarnamento. Em Maszycka, na Polônia, foram encontrados 16 maxilares que remontam ao período Magdaleniano (17 mil a 10 mil anos), aparentemente decapitados e desarticulados. Todos esses homens teriam sido devorados.
Às vezes, os indícios de canibalismo podem ser confundidos com um sepultamento em duas etapas: o depósito do corpo até a fase de decomposição e, depois, o enterro definitivo dos restos. Em Buran-Kaya, na Ucrânia, em um sítio arqueológico do período Paleolítico superior (cerca de 32 mil anos atrás), uma diferença nas marcas do corte entre os ossos de animais e os ossos humanos leva Sandrine Prat, do CNRS, a acreditar mais na existência de um ritual post mortem do que na prática antropofágica.
Segundo Paola Villa, da Universidade do Colorado (EUA), e Jean Courtin, do CNRS, quatro condições devem ser levadas em consideração para distinguir um sepultamento de um ato de canibalismo: um relatório do estado inicial de todos os indícios deve ser feito na pesquisa; o sítio não deve ter sofrido nenhuma mudança física; os restos humanos devem ser comparados aos dos animais, e as marcas que eles possuem devem ser muito bem analisadas. Um estudo experimental feito em conjunto por pesquisadores da Inglaterra e da Espanha, em 2010, buscou caracterizar a tipologia exata dos traços deixados por uma mandíbula humana nos ossos, e assim identificar melhor os casos de antropofagia.
Mesmo quando há provas de canibalismo, outra dúvida persiste: seria um simples ato alimentar ou um ritual? A etnologia oferece um campo de suposições aos estudiosos. Recentemente praticado por vários povos, dos iroqueses (tribo indígena norte-americana) aos samoiedas (que viviam na Eurásia), dos astecas (México) aos fores (habitantes da Papua-Nova Guiné), tanto o exocanibalismo (ato de comer um indivíduo morto em combate no intuito de apropriar-se de sua força) quanto o endocanibalismo (ato de comer um membro do próprio clã) são, salvo exceções, rituais. “A existência de um canibalismo ritual no período Paleolítico talvez seja verossímil, mas impossível de ser demonstrada”, garante André Leroi-Gourhan, especialista em pré-história, que vê no caso particular de Krapina uma antropofagia puramente alimentar, quase sistemática. Opinião contrária tem Marylène Patou-Mathis, que vê nesse caso um canibalismo ritual, à imagem daquele – muito codificado e muito social – praticado quase universalmente por povos contemporâneos ou recentes. “Alimentar ou ritual, o canibalismo não retira nem acrescenta nada à humanidade dessas populações pré-históricas”, conclui Marylène.
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Ossadas com marcas de corte encontradas na região do rio Caves, África do Sul, podem representar indícios de canibalismo
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Entre os primeiros Homo sapiens também há evidências de canibalismo. Nas grutas do rio Klasies, na África do Sul, foram encontrados ossos humanos com cerca de 80 mil anos de idade, quebrados, queimados e com sinais de descarnamento. Em Maszycka, na Polônia, foram encontrados 16 maxilares que remontam ao período Magdaleniano (17 mil a 10 mil anos), aparentemente decapitados e desarticulados. Todos esses homens teriam sido devorados.
Às vezes, os indícios de canibalismo podem ser confundidos com um sepultamento em duas etapas: o depósito do corpo até a fase de decomposição e, depois, o enterro definitivo dos restos. Em Buran-Kaya, na Ucrânia, em um sítio arqueológico do período Paleolítico superior (cerca de 32 mil anos atrás), uma diferença nas marcas do corte entre os ossos de animais e os ossos humanos leva Sandrine Prat, do CNRS, a acreditar mais na existência de um ritual post mortem do que na prática antropofágica.
Segundo Paola Villa, da Universidade do Colorado (EUA), e Jean Courtin, do CNRS, quatro condições devem ser levadas em consideração para distinguir um sepultamento de um ato de canibalismo: um relatório do estado inicial de todos os indícios deve ser feito na pesquisa; o sítio não deve ter sofrido nenhuma mudança física; os restos humanos devem ser comparados aos dos animais, e as marcas que eles possuem devem ser muito bem analisadas. Um estudo experimental feito em conjunto por pesquisadores da Inglaterra e da Espanha, em 2010, buscou caracterizar a tipologia exata dos traços deixados por uma mandíbula humana nos ossos, e assim identificar melhor os casos de antropofagia.
Mesmo quando há provas de canibalismo, outra dúvida persiste: seria um simples ato alimentar ou um ritual? A etnologia oferece um campo de suposições aos estudiosos. Recentemente praticado por vários povos, dos iroqueses (tribo indígena norte-americana) aos samoiedas (que viviam na Eurásia), dos astecas (México) aos fores (habitantes da Papua-Nova Guiné), tanto o exocanibalismo (ato de comer um indivíduo morto em combate no intuito de apropriar-se de sua força) quanto o endocanibalismo (ato de comer um membro do próprio clã) são, salvo exceções, rituais. “A existência de um canibalismo ritual no período Paleolítico talvez seja verossímil, mas impossível de ser demonstrada”, garante André Leroi-Gourhan, especialista em pré-história, que vê no caso particular de Krapina uma antropofagia puramente alimentar, quase sistemática. Opinião contrária tem Marylène Patou-Mathis, que vê nesse caso um canibalismo ritual, à imagem daquele – muito codificado e muito social – praticado quase universalmente por povos contemporâneos ou recentes. “Alimentar ou ritual, o canibalismo não retira nem acrescenta nada à humanidade dessas populações pré-históricas”, conclui Marylène.
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